sábado, 13 de dezembro de 2025

SARA SERPA - ENCOUNTERS & COLLISIONS (Biophilia Records)

Maya Angelou, sábia: «Cada vez que uma mulher se defende, sem o saber possivelmente, sem o reivindicar, está a defender todas as mulheres.» E foi isso que Sara Serpa (n. 1979) fez. Como cantora, compositora, improvisadora, ativista, mas também como mulher, mãe, imigrante. A portuguesa não teria como objetivo inicial criar uma obra tão autobiográfica como logra em “Encounters & Collisions”, o seu novo álbum. A sua intenção passava por adaptar a obra de outro escritor, à semelhança do seu aclamado álbum e performance multimídia “Intimate Strangers”, de 2021, uma colaboração com o escritor e crítico de arte nigeriano Emmanuel Iduma. O projeto revelou-se frustrante e, durante o processo, descobriu que as ideias a que estava a responder no trabalho de outros autores eram o reflexo do seu próprio percurso. «Começou como um exercício em que escrevi música para a história de outra pessoa, para me dar conta que na realidade estava a escrever sobre mim», começa por dizer Sara Serpa à jazz.pt. As voltas da vida levaram-na por outro caminho. E tudo mudou. «Este trabalho é fruto de uma reflexão sobre momentos que marcaram a minha vida nos últimos 20 anos, uma forma também de me posicionar como mulher, como imigrante nos Estados Unidos, como mãe, e todas as mudanças que daí advêm.» “Encounters & Collisions”, editado pela Biophilia Records e apresentado ao vivo no Roulette, em Brooklyn, a 9 de dezembro, retrata episódios da sua vida desde que se mudou da sua Lisboa natal para o outro lado do Atlântico para frequentar a Berklee College of Music, em Boston, tinha então 24 anos. Originalmente com a intenção de ficar um ano e depois regressar a casa, acabou por estabelecer um lar e uma família em Nova Iorque, onde se fixou em 2008, ao mesmo tempo que se tornou uma das vocalistas mais inventivas e reconhecidas do jazz do nosso tempo. Nesta história, os elementos com os quais mais se relacionou foram a «migração, estar num novo país, lidar com línguas, sentir saudades de casa, perder algum tipo de identidade e ter de construir uma nova», sublinha. «Depois, ao longo desse processo, tornar-se mãe com todas as vitórias e perdas que acompanham esse processo. Percebi que talvez estivesse a escrever sobre mim e não sobre outra pessoa, e começou a fazer sentido escrever sobre a minha história.»

Este é um testemunho de alguém que viveu e vive na pele as oportunidades e os choques a que o título alude, expondo e partilhando a sua trajetória de forma muito direta e pessoal. «Está é a minha história, mas é também a de tantas outras pessoas», diz Sara Serpa. «Temos muito mais coisas em comum do que a mídia e os políticos nos fazem crer e espero que possa servir como uma reflexão para nos tratarmos uns aos outros com mais generosidade e bondade.» A cantora admite que pensa muitas vezes na forma como lidamos com a mudança e a perda. «Desde a mudança para outro país, ao parto ou ao luto por um ente querido, as minhas diferentes reações surpreenderam-me muitas vezes. E, no entanto, a vida é uma mudança em si mesma. Por vezes drástica, na maioria das vezes sutil, todos nós passamos por mudanças constantes. Perdemo-nos a nós próprios, países, paisagens e cidades, entes queridos, pensamentos e emoções.» Isto num tempo em que as migrações estão no centro da agenda política e da polarização social em muitas partes do globo. «Em todas as conversas sobre migrações existe um processo brutal de desumanização, quando na realidade, todos nós temos histórias na nossa família de mudanças, migrações e viagens, adaptações», reflete. Em “Recognition”, álbum de 2020, Sara Serpa já havia mergulhado a fundo no sombrio legado da presença portuguesa em Angola, explorando o silêncio da sua própria família em torno dele. As palavras-chave eram ocupação, colonialismo, racismo, trabalhos forçados, violência, segregação, exploração, opressão. O novo álbum sucede a “Night Birds”, de 2023, em dueto com o marido, o guitarrista André Matos. A música sensível e intimista que escutamos em “Encounters & Collisions” dá continuidade e alarga essa lógica conversacional íntima e preciosa. Para isso muito contribuem os músicos que Sara Serpa convidou para este projeto: Ingrid Laubrock no saxofone e Erik Friedlander no violoncelo – colaboradores de longa data –, acompanhados pela pianista Angelica Sánchez. A cantora não só revela as suas experiências e emoções através das suas letras poéticas e impressionistas, como também relata a sua história através de um conjunto de pequenas narrações, que antecedem cada peça, bem como de um belo livro de ilustrações de sua autoria.

“Story 1” relata a história da sua chegada a uma Boston muito quente, 96% de umidade relativa. «De onde vens?», «Portugal!», «Oh, que fixe, bossa nova!», «Que língua falam, espanhol?», «Sara? Oh, Sarah!» “Language” prossegue a reflexão sobre a importância da língua (e da linguagem). A voz cristalina de Serpa, qual instrumento etéreo, com ou sem recurso a palavras (exímia nesta última forma), é aconchegada intimamente por saxofone, piano e violoncelo, numa recepção calorosa e serena. O uso do inglês revela, mais do que em qualquer outro momento, o seu real dom de se exprimir numa língua que não a materna. “Story 2”/“Visa” trata disso mesmo: vistos, formulários, entrevistas, burocracia, os múltiplos portões da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa (cujos ruídos se escutam), paredes, betão, guardas, ansiedade. «Tem entrevista marcada?», «É uma pessoa perigosa?», «Cometeu genocídio?», «Alien, non-citizen, alien, non-resident.» O contrabaixo e o saxofone sublinham a repetição, a desconfiança, a repetição, a vida em círculos, a confusão, o kafkiano de tudo aquilo. Em “Story 3”/“Things Must Move Quickly” é abordada a agitação do quotidiano numa cidade infinita, a falta de tempo, as rotinas opressivas (as notas do piano ilustram exemplarmente esta realidade), as relações enquanto transações. “Story 4”/“Between Two Worlds” fala da chegada do inverno, da chuva e do frio, das roupas quentes. O inverno deve ser a mais bela das estações do ano, mas a recém-chegada Sara ainda continuava a vaguear entre dois mundos. A música reforça essa dicotomia entre duas realidades completamente distintas, as notas secas do piano, a doçura do saxofone, o violoncelo a servir de fiel. Já “Story 5”/“Labor” reflete sobre a tensão do início do trabalho de parto, o trajeto até ao hospital, o taxista que não para à porta, a desconfiança na portaria, o médico brasileiro (alívio), a alegria imensa pela chegada ao mundo do filho, Lourenço. “Story 6”/“A Mother’s Heart” versa o papel das mulheres da família, em Angola, as dificuldades da maternidade, a perda de filhos. Belo diálogo entre a voz de Sara e o violoncelo, com piano e saxofone a juntarem docemente as suas vozes. Belíssimo solo de Laubrock. Em “Storty 7”/“Phone Call”, a visita cancelada, o telefonema a avisar do aneurisma do pai, que faleceria apenas dois dias depois, o choque, a dor imensa. As notas afiadas do piano, o saxofone sussurrante, o violoncelo a aditar pungente dramatismo. “Story 8”/“Music Makes Me Who I Am” aborda o papel da música, a primeira escola, a esnobe gata Matilde, a professora que só se vestia de vermelho, o conselho da pianista Paula Sousa, a frustração com o ensino da música clássica, a descoberta do jazz, o universo a expandir-se, big bang. A fechar esta intimíssima jornada, “Story 9”/“Two Cities, Many Homes” conclui sobre a dicotomia, as diferenças abissais entre dois países e duas cidades, tantas linguagens. «What’s real, what’s on my mind?» Memórias, experiências, liberdades. Encontros e colisões. A vida contada e cantada como ela é.

Músicos: Sara Serpa— voz, composições, letras, estórias, desenhos; Ingrid Laubrock— saxofone; Angelica Sánchez— piano; Erik Friedlander— violoncelo.

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

 

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