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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

KEITH JARRETT – PARIS/LONDON TESTAMENT (ECM)


Há certo tipo de música que sofre com o preconceito de que necessita de uma escuta atenta, comprometida. Caso contrário, dizem os especialistas, soa incompreensível, chata e confusa. Isso acontece sobretudo com as músicas instrumentais contemporâneas - e por contemporâneas entendam-se tanto a obra de György Ligeti e Philip Glass como os recitais de piano-solo de Keith Jarrett. Ora, nenhuma música deveria exigir pré-requisitos para ser, senão compreendida em sua plenitude, ao menos curtida por todo tipo de público. Isto é, música boa deveria usufruir o melhor dos dois mundos: ser entendida por sua profundidade por públicos mais especializados, mas também deixar-se degustar sem resistências por todos os ouvidos.

Essa é uma meta que raríssimos criadores alcançaram no decorrer da história da música. Mozart deixou isso claro em carta ao pai Leopold, dizendo-lhe que não se preocupasse, ele conquistaria todos os ouvidos parisienses escrevendo música compreensível tanto por jejunos como por iniciados.

O álbum triplo Paris/London Testament, do norte-americano Keith Jarrett, que chega agora ao mercado internacional em lançamento da ECM em comemoração aos seus 40 anos de existência, é a prova de que Mozart estava certo. Não só isso. É espantosa a qualidade da invenção musical de Jarrett nestas duas horas e meia de criação improvisada no chamado calor da hora, ali no palco, diante da plateia.

Não. Não torçam seus narizes. Desafios desta grandeza são para poucos. Jarrett consegue, aos 64 anos, improvisar com a mesma intensidade e qualidade artística que caracterizaram os mais adorados compositores do passado. Bach era genial improvisando ao órgão e em qualquer instrumento de teclado; Beethoven reclamava que via publicados nas semanas seguintes seus improvisos que ouvidos ladrões capturavam em suas janelas; e Mozart era o caso à parte, a ponto de escrever as partes de orquestra mas deixar em branco a parte solista num concerto de piano que estrearia, improvisando diante do público.

É preciso derrubar de uma vez por todas o preconceito de que música boa tem que ser música escrita. E a trajetória de Jarrett é a mais bem-sucedida arma de que dispomos para isso.

Ele introduziu o recital de piano-solo no reino do jazz em 1975 com Köln Concert. De lá para cá foram dezenas de registros de recitais de puro improviso sem temas conhecidos para embalar ouvidos mais acomodados. No álbum duplo Radiance, de 2002, parecia ter chegado ao clímax da abstração - com um resultado que bem poderia ser chamado de erudito, tamanha a sofisticação.

Foi mais longe ainda no álbum duplo The Carnegie Hall Concert (dois CDs ECM), de 2005. De um lado, uma incrível suíte em dez partes: a Parte 9, por exemplo, é um estudo a duas vozes que até Bach assinaria. Concluído o recital, e portanto a música que exige escuta mais atenta, mergulha no lúdico em quase meia hora incendiária ao alcance de todo tipo de público, com cinco extras, incluindo magníficas versões de True Blues, as líricas My Song e Time in My Hands.

O passo mais ousado, entretanto, fica com o recém-lançado Paris/London Testament. Não há mais refresco nem standards para deixar os ouvidos felizes em reconhecer melodias populares. Permanece apenas o abstrato, a pureza do improviso. O primeiro CD registra na íntegra o recital realizado em 28 de novembro do ano passado na Salle Pleyel em Paris. Possui oito partes, distribuídas por 70 minutos de música. São formas livres, algo como os "impromptus" que Schubert adorava improvisar nas noitadas regadas a vinho, mulheres e canções na Viena das primeiras décadas do século 19. Ou seriam estudos? Rapsódias, melhor qualificá-las com esta que é a forma mais livre nos muros eruditos. A Parte 1, aliás, tem um quê schubertiano em sua calma e sobretudo no modo de acariciar mudanças harmônicas (os discretos gemidos remetem a Glenn Gould); de repente, por volta dos 7"47, um tema angulosamente arisco sugere um novo clima, pontuado com admiráveis silêncios e um contraponto cerrado; nos 2 minutos finais, uma coda reinstaura o movimento inicial. É praticamente uma peça em três movimentos de mais de 13 minutos, com um nervoso intermezzo central entre dois adágios que às vezes soam próximos do Shostakovich dos prelúdios e fugas opus 87, que Jarrett gravou em 1991.

Como se vê, ninguém passa incólume por gigantes como Bach, Mozart e Shostakovich. Do primeiro, Jarrett gravou os dois livros do Cravo Bem Temperado, as Suítes Francesas e as Variações Goldberg; do segundo, vários concertos para piano, incluindo o K. 271, "Jeunehomme", e os celebrados K. 453 e 466 da plena maturidade; e de Shostakovich os citados prelúdios e fugas.

Um duplo aprendizado, sem dúvida, separa em duas fases bem diferenciadas sua trajetória. Na primeira fase, até meados dos anos 80, ele se assumia quase como um clone de Schubert ou Schumann. É provável que o próprio Jarrett sentisse certo esgotamento da fórmula por volta de 1985/6. Por isso, voltou-se para os clássicos, que gravou nos seis anos seguintes, entre 1987 e 1993. Não são, claro, gravações de referência de Bach, Mozart ou Shostakovich, mas representam passo decisivo para as obras-primas da última década.

Voltemos a Paris/London. É curioso como o recital de Paris é mais cabeça, pretensioso, no bom sentido; e o londrino é mais solto. Neste último, a Parte 1 é de um intenso lirismo, bem schumanniano. Não há climas contrastantes; são 11 minutos de um adágio de arrepiar. A Parte 4 é um estudo da região aguda do piano, bem abstrato. Ao todo, são 12 partes. As duas que fecham o segundo CD contrastam a abstração (nº 5) e o tom quase de hino protestante (6). O terceiro CD, que contém as seis partes finais, começa com uma figuração rítmica ostinato, sua fórmula preferida (é estranho para nós brasileiros o motivo melódico, parecido com uma musiquinha de Roberto Carlos dos anos 60, Negro Gato). A Parte 9 é quase um estudo de oitavas; a décima relembra o clima do Köln Concert nos acordes repetidos pulsando sob a melodia; a parte 11 poderia ser assinada por um Billy Strayhorn, o alter ego de Duke Ellington; e a parte final nos leva, já inteiramente seduzidos por esta maravilhosa viagem sonora, pelo universo de Schubert e Schumann.

No texto do folheto de Paris/London, Jarrett conta que dava recitais desde os 6 anos em locais como o Allentown Women"s Club, em Boston: "Os programas geralmente incluíam mestres como Mozart, Schubert, Chopin ou Debussy, mas sempre havia algo que "eu escrevi". Eu não colocava estas peças no papel. Rabiscava apenas motivos e melodias, em torno dos quais "decolava" e viajava. (...) Quando estudava piano em casa, com frequência eu mudava as notas das peças de algum compositor. Minha mãe sacava isso. E eu lhe dizia que não se preocupasse: eu tocaria apenas o que estava escrito no recital." Este é, afinal, o exercício de uma liberdade que fez a grandeza de Bach, Beethoven, Mozart... e de Keith Jarrett.

Fonte: ESP / João Marcos Coelho
Colaboração : Gileno Xavier

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