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domingo, 20 de dezembro de 2009

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O músico, compositor e arranjador carioca Francis Hime é um sujeito cujo trabalho é transformar imagens alheias em música. Autor de inúmeras melodias para letras de amigos, boa parte delas surgidas do ato de musicar poemas (como os de Geraldo Carneiro) ele também se dedica, há 40 anos, à realização de trilhas para cinema. Parte desse imenso material ele resgata em seu novo disco, o duplo O tempo das palavras... Imagem (Biscoito Fino). No primeiro CD do pacote, O tempo das palavras, Hime se dedica a lançar músicas novas, em parceria com Carneiro, Joyce Moreno, Edu Lobo, a esposa Olivia Hime, Paulo Cesar Pinheiro e o recém-chegado Paulinho Moska. Imagem, por sua vez, o mostra recordando 25 temas que compôs para os filmes Dona Flor e seus dois maridos, A estrela sobe (ambos de Bruno Barreto), O homem que comprou o mundo (Eduardo Coutinho), O homem célebre (Miguel Faria), A noiva da cidade (Alex Viany), Lição de amor (Eduardo Escorel), Marcados para viver (Maria do Rosário) e Marília e Marina (Luiz Fernando Goulart).

Não se trata apenas de comemoração por seus 40 anos de trilhas (e 70 de idade!) ou de uma simples antologia - a preocupação de Hime, conta o compositor ao Cinema.com.br, é trabalhar para a preservação de filmes brasileiros que se perderam. Dentre eles, alguns exemplares para os quais musicou cenas, e que se encontram musicalmente documentados no novo CD.

Como foi a escolha das músicas que entraram no segundo CD de O tempo das palavras... Imagem?
Francis Hime - Eu pensei em fazer uma viagem por essas trilhas. Seria uma espécie de reconstituição, baseada na minha memória, porque alguns dos filmes se perderam. Fui no meu baú de partituras e comecei a reconstituir essas imagens. Tem faixas que correspondem a determinado trecho do filme, mas com outra instrumentação. A abertura de Lição de amor, por exemplo, é aquilo, mas de outra forma. Para pegar os temas de Dona Flor e seus dois maridos reconstituí as cenas, trabalhei sobre os temas e também fiz um estudo sobre a adequação pianística dessas músicas. Porque tinha temas como os de A noiva da cidade, que não eram muito pianísticos.

Mas deve ter ficado muita coisa de fora, não?
Ah, sim. Eu gravei muito mais coisas, além das que foram para o disco. Mas tive que me ater aos limites físicos, né? Num CD não cabe mais do que setenta e poucos minutos de música. E optei por reagrupar os temas com relação aos filmes, de modo que ficasse mais fácil para o ouvinte. Mas nem quis pôr tudo em ordem cronológica. Comecei logo com Dona Flor e seus dois maridos...

Que por sinal foi o filme mais popular dentre as trilhas selecionadas para o CD.
Isso, com mais de um milhão de espectadores. Enfim, o processo foi esse. O disco foi aparecendo, surgiu de uma conversa que tive com o (jornalista) Tárik de Souza e com minha mulher Olivia Hime. O Tarik vai ser curador da minha caixa, com minha obra, prevista para o ano que vem. E entre os discos a fazerem parte dela, tinha algo referente às trilhas sonoras. Como a caixa ficou para mais tarde, tive a ideia de pegar essas trilhas e fazer um trabalho para piano solo. De fora, acabaram ficando, por exemplo, os temas de República dos assassinos, do Miguel Faria. Não achei temas tão interessantes lá para tocar ao piano.

Você guarda tapes das trilhas que faz em casa? Muita coisa não chegou a sair em vinil.
Tenho, tenho algumas coisas. A da própria República, os originais de A noiva da cidade. Tenho isso aqui comigo e preciso transcrever, porque esse material acaba se deteriorando. O principal, eu acho, é poder recuperar a memória desses filmes, porque muitos estão perdidos. O Luiz Fernando Goulart esteve no lançamento do disco e disse que queria tentar recuperar os negativos de Marília e Marina. Que é um filme até bem pouco conhecido. O Miguel Faria também não tem mais os originais de Um homem célebre. Deve ter algo de repente lá pelo Museu da Imagem do Som, mas muita coisa se perdeu. No show do CD, fizemos uns clipes com algumas imagens para acompanhar as músicas, o que é ideal para entender o som. Tocamos com tudo isso sendo projetado num telão atrás.

Muitas músicas que você fez para cinema se tornaram sucessos da MPB depois, já tendo ganho letras. É algo comum no seu trabalho?
Exato, isso aconteceu com Meu caro amigo. Foi um dos choros que compus para Um homem célebre (baseado no conto homônimo de Machado de Assis). O personagem principal, o Pestana (Walmor Chagas) era um compositor popular que queria fazer clássicos, daí surgem os choros que pus no disco. O Choro nº 1 ganhou letra do Chico Buarque algum tempo depois e virou Meu caro amigo. Tem uma parte que chamei de Temas clássicos, porque mostra o Pestana tentando compor sua grande obra. Ele não consegue ir além, para num acorde que a gente chama de sétima dominante. O curioso é que recentemente o Zelito Viana me convidou para fazer a trilha de um documentário sobre o (diretor de teatro) Augusto Boal, Augusto Boal e o teatro do oprimido, e o tema central é Meu caro amigo, anos depois.

Compor música para cinema não deixa de ser uma parceria...
Realmente é algo muito estreito, é uma parceria sim. O diretor é quem comanda o espetáculo, ele é que é o grande idealizador de como aquele filme vai atingir o espectador. Em alguns filmes recebi o roteiro antes, mas em geral eram conversas já na moviola. A ideia é pensar na adequação da música à cena, tem cenas que você estraga se puser música. Eu preciso ver qual a sensação que o diretor quer que passe, onde ela começa, onde ela termina. E apesar do contato intenso, é sempre um certo mistério, uma certa apreensão, quando a gente vai apresentar a música para o diretor. Se ela não corresponde... Não é como no teatro, para o qual já fiz muitas músicas. No palco dá para mudar, mas no cinema, já está tudo gravado.

Quando você põe música numa letra, é comum que tente imaginar as palavras como uma "cena" na sua cabeça? Como é compor para as imagens dos outros?
Nos últimos anos tenho feito muito isso, até: musicado letras. A Ópera do futebol, que pretendo lançar em breve, tem um texto todo cantado (feito pela escritora e produtora Silvana Gontijo), a música foi feita a partir do texto. Nesse caso é um pouco diferente: tem um elemento dramático que interfere um pouco. No geral é um namoro que se faz com o texto. Verifica-se ele pode receber uma música, e que tipo de música. A métrica pode não ser determinante, porque tem textos bem simétricos que acabam revelando possibilidades de receber música. Mas é como um namoro mesmo, às vezes dá certo, às vezes não dá. No meu caso, pego um poema, tento musicar e pode ser que não consiga, algo não me satisfaz e mais para a frente, posso retornar e dar um bom resultado. É um processo de tentativa. Nesse disco metade das músicas são poemas musicados. Outros, fiz a música antes. No começo da minha carreira é que era comum que eu fizesse a música antes e depois botassem letra.

Era a época em que todos os compositores tinham parceiros fixos...
Isso. O Tom Jobim fazia mais coisas com o Vinicius de Moraes, depois mudou. Já eu sempre gostei de compor com muitos parceiros. O Geraldinho Carneiro até fala que eu sou o parceiro mais promíscuo da MPB.

Na década de 70 não era penoso fazer música para filmes com a censura? Podia acontecer de você fazer um tema e ele ser cortado porque toda uma cena era cortada...
Eu até que não sofri muito com isso, embora fosse realmente complicado. Mas para A noiva da cidade fiz Lindalva, com o Paulo Cesar Pinheiro, e a censura cortou o verso que falava em "nuzinhos em pelo". Quando gravei, não substituí nada, deixei como se fosse "em branco". Fiz Queima com o Ruy Guerra e a censura prendeu a letra. Um tempo depois mandamos com outro nome, Pouco me importa, e passou. Quando eu e Chico pegamos o Choro nº1 e ele virou Meu caro amigo, tivemos a ideia de mandá-la para a censura com algumas estrofes a mais. Na época, após uma letra passar pela censura, não se podia acrescentar nada nela, só tirar. Tentamos dar um outro sentido para a letra, como se fosse uma pessoa cobrando uma dívida.

Você estudou composição de trilhas para filmes na Califórnia. Como foi a experiência?
Foi bem interessante. Antes disso já havia feito a trilha de O homem que comprou o mundo, de Eduardo Coutinho (1969). No curso, o Lalo Schifrin e o Davi Raksin reuniam um pequeno grupo de 8 a 10 alunos e traziam músicas que eles fizeram para filmes. E propunham aos alunos que cada um fizesse uma música para determinada cena do filme. Ou então propunham: "agora escrevam uma música sobre o amarelo". O Hugo Friedhofer, autor da trilha de Os melhores anos de nossas vidas (de Wiliam Wyler, filme americano de 1946) também dava aulas para a gente e o mais legal é que ele não se prendia só a cinema, falava sobre música em geral. Tentei colocar esses conhecimentos em prática no Brasil.

No encarte do disco, os diretores dos filmes para os quais você compôs aparecem escrevendo sobre teu trabalho.
Pedi a cada um que escrevesse. O Bruno Barreto, eu inclusive estive com ele num festival de cinema na Polônia. Fiz uma apresentação musical e tocamos algumas coisas da trilha do Dona Flor, falamos em inglês para os poloneses sobre o filme, que foi exibido lá. E pedi a ele que fizese um texto. Ele é uma pessoa muito ligada à música, ele até brinca que é um compositor frustrado...

Por falar nisso, com tantas trilhas no currículo, você não se sente também um cineasta frustrado?
Eu? Nada, gosto mesmo é de fazer música. Além disso, não tenho uma vista muito boa, não. Sou muito míope. Não teria um bom aproveitamento visual para poder dirigir cenas.

Você citaria algum filme que tenha marcado sua vida?
Olha, são tantos... Tenho visto muita coisa do Fellini em DVD, do Bergman, do Godard. Gosto muito de cinema, de diferentes escolas, de imaginar uma música num filme. Às vezes ponho um filme no DVD, tiro o som e fico imaginando uma música dentro de uma cena...

Não dá uma frustração ver um filme e achar que a música nada tem a ver com a cena?
Não. Isso até acontece muito, mas é que depende da intenção do diretor. Pode ser que a música seja ruim, claro. Mas pode ser que o diretor ou o compositor queiram provar algo com a cena ou com a música. Ou então existe outro tipo de sentimento ali.


Fonte: Site Cinema.com.br

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