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segunda-feira, 1 de março de 2010

ONDE A BAHIA ENCONTRA NEW ORLEANS


A Bahia, estação primeira da identidade musical negra brasileira, ainda reserva muitas boas surpresas, apesar de ter a visibilidade castrada pela indústria do carnaval. Uma das criações mais geniais dos últimos tempos que veio à tona recentemente é o CD Letieres Leite (na foto) e Orkestra Rumpilezz, gravado no Teatro Castro Alves "a portas fechadas" e distribuído nacionalmente pela Biscoito Fino. É onde Salvador encontra New Orleans, ambos berços de tanta história e tanta musicalidade de matrizes africanas.Compositor, músico, maestro e criador da orquestra, Letieres criou uma obra inovadora unindo as bases sonoras do candomblé com o samba-reggae e o jazz. "Cada orixá tem um toque e cada nação tem o seu, então você pode ter toques diferentes para cada orixá, dependendo da nação do candomblé", explica o mestre numa mesa ao ar livre no Rio Vermelho, bairro que abriga a grande festa de Iemanjá, a rainha dos mares, no dia 2 de fevereiro. Ele porém, não reivindica para si a originalidade da ideia. Tanto é que dedica uma de suas composições, Anunciação, ao "grande mestre da bateria e da percussão" Antonio Ferreira da Anunciação, "um dos pioneiros no encontro da música da Bahia com o jazz".Outra pioneira a quem ele faz questão de dar crédito é a pesquisadora e etno-musicóloga Emília Biancardi, de quem foi "aluno indireto". "Ela é uma ex-baterista profissional, que se interessou pela música baiana uns 40 anos atrás, fez música para dança e criou os primeiros balés da Bahia. Muitos grupos daqui se inspiraram nela", lembra. "Em 1972 ela criou orquestras em três colégios públicos da Bahia, interessada em colocar música afro-baiana nas escolas, coisa que não existe hoje. E ela colocava na direção das orquestras músicos que tinham identificação com grupos percussivos, que fossem referência da Bahia. No caso, meu mestre foi Moa do Catendê."A orquestra da qual Letieres participou tinha naipes de atabaques, berimbau, balafon, caxixis. A partir daí, ele teve contato com o jazz de maneira mais organizada, aprendendo a função de cada tambor, e o interesse foi natural. Tempos depois, já como músico profissional, fez arranjos para vários grupos afro-baianos, e cada trabalho levava a uma nova pesquisa. Há anos, é músico da banda de Ivete Sangalo, cuja música nada tem que ver com essa história.Letieres dá um passo adiante juntando à mistura do "candomblezz" a modernidade do samba-reggae (a faixaTaboão é uma homenagem a Neguinho do Samba, que formatou a fusão), o ijexá e as diversas modalidades baianas de samba - como em O Samba Nasceu na Bahia, que, segundo o maestro reúne "o samba afro (Ilê Ayiê), samba duro, kabila (Angola) e chula (Recôncavo Baiano). "Grupos como Olodum são caules dessa grande árvore, cujo tronco é o candomblé", diz.A formação da orquestra, composta de 5 instrumentos de percussão e 15 de sopros, remete ao som das bandas de rua de New Orleans e aos arranjos do grande maestro Moacir Santos (1926- 2006). O compositor e cantor Ed Motta, que participa como convidado do CD e é autor da única faixa não assinada por Letieres, Balendoah, aponta: "Letieres é o discípulo direto de Moacir Santos. O santo Moacir passou o bastão desse afro-centrismo universal pra ele. Acho que desde os anos 60-70 não se faz um disco instrumental tão denso, tão verdadeiro quanto esse. Não digo isso nacionalmente mas worldwide", afirma Motta, cuja ligação com Moacir está no fundamento de sua música.Sobre essa provável influência, diz Letieres: "Moacir também procurou as matrizes africanas, isso é fato. Mas sou nascido e criado em Salvador, morei em bairros populares, que sempre teve muita percussão. Pra gente é natural a influência afro, não é uma coisa que eu precise buscar. Tenho naturalmente contato com o tambor na minha formação musical. Moacir, que era pernambucano, como maestro e compositor foi uma das maiores inspirações que eu tive. Sempre digo, quando você está triste ou alegre, bote Moacir Santos, que você vai resolver tudo. Pra mim é uma maravilha como melodista. Agora, a base rítmica dele, posso dizer com convicção, que não foi minha inspiração."Para ele, a base da Rumpilezz, é mais ligada à religião. O nome da orquestra aliás, é uma fusão dos nomes dos três atabaques do candomblé: rum (grave), pi (médio) e lé (agudo). Os dois zz vêm do jazz. A grande inspiração para a orquestra também "vem da música instrumental como um todo", incluindo as orquestras pernambucanas de frevo. Letieres reconhece também influência do alagoano Hermeto Pascoal como compositor e instrumentista. "Hermeto é o grande representante do baião e seus derivados. Se você for procurar na região, você vai encontrar o maracatu, o frevo, o coco, o xaxado. Todo esse material foi a base para estruturar o trabalho magnífico de Hermeto."Para Ed Motta, "desde Dorival Caymmi esse é o grande progressista do universo da música da Bahia. Assunto música e não comportamento, relativismos, etc." continua. "Mesmo para essa geração xenófoba da música instrumental brasileira atual a Rumpilezz é uma aula de estética universalista apesar de louvar muitos motivos regionais. É o único disco novo que eu escuto e aprendo a cada audição, uma aula de vida o que Letieres faz."

Fonte : OESP/ Lauro Lisboa Garcia, Salvador
Colaboração : Gileno Xavier

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