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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Hermeto



Aos 75 anos e sempre renovando
Por Lucas Nobile - Agência Estado

Um mito só cai pelas mãos de outro. Nos anos 1970, como de costume,
Miles Davis chegava aos palcos de suas apresentações passando pelo meio
da plateia. O americano seguia decidido, passos firmes, sem nunca
dirigir olhares nem palavras a alguém do público. Abriu uma exceção
certa noite.
Encarou de perto a figura excêntrica de Hermeto Pascoal e soltou algumas
palavras em inglês, traduzidas pelo baterista e compositor Airto
Moreira, que na época integrava a banda de Miles e havia levado o
multi-instrumentista ao show.
Dias depois, Hermeto atendeu ao pedido e foi ao encontro do jazzista
para lhe mostrar algumas composições. A história é pitoresca, mas horas
depois de apresentar seus temas no violão, o brasileiro foi convidado
por Miles a enfrentá-lo ali mesmo, em um ringue de boxe de sua
propriedade. Como os olhos de Hermeto ficam sempre rodando e apontando
cada um para um lado, o americano foi surpreendido com um soco na cara e
desabou.
Miles levou na esportiva. Tempos depois, por falta de lisura de seus
agentes, de uma maneira ou de outra acabou devolvendo o golpe ao gravar
duas composições de Hermeto, Nem um talvez e Igrejinha, ocultando da
ficha técnica dos discos o devido crédito ao verdadeiro compositor das
músicas. O brasileiro não recebe direitos autorais relativo aos dois
temas até hoje, mas não reclama. Nunca criou guiado por caça-níqueis.
“Tem muita gente aí fazendo música com apelo comercial que deveria ser
presa. Cada nota musical deles é tão ruim que é como um tiro no peito da
gente. E não venha com desculpa de ter de pagar o aluguel. Eu prefiro
ficar devendo, como já fiz, do que fazer música ruim”, diz Hermeto.
O músico, nascido em Lagoa da Canoa, no município de Arapiraca, em
Alagoas, já viveu no Rio, em São Paulo e há sete anos e meio mora no
bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, com sua mulher e também
musicista Aline Morena. Um dos maiores revolucionários da música
brasileira, “100% intuitivo” e influenciando diversas gerações, seja no
piano, na sanfona, na flauta, na chaleira ou na bomba de encher bola,
Hermeto segue em plena efervescência criativa, aos 75 anos, comemorados
quarta-feira.
Os eventos relativos às sete décadas e meia de vida do Mago de Lagoa da
Canoa se estendem até o ano que vem. Desde o dia do aniversário, com a
ajuda do pianista Jovino Santos Neto, que durante anos fez parte da
banda de Hermeto, o site do multi-instrumentista passou a oferecer
gratuitamente 41 partituras de temas inéditos do compositor.
Depois, em outubro e novembro, Hermeto segue com seu grupo em turnê pela
Europa, onde a série de shows servirá de ensaios para a gravação de um
DVD, com lançamento previsto para 2012.
Nos próximos meses, ainda em trabalho de edição, deve chegar ao mercado
o DVD da gravação do show gratuito que Hermeto fez em outubro de 2009,
no Parque do Ibirapuera, com o bandolinista e compositor Hamilton de
Holanda e seu quinteto. “Hermeto é uma grande árvore em que as frutas
são músicas, ritmos, melodias, e harmonias. O tempo passa, essa árvore
fica mais forte, e mais gente – do mundo todo – quer se alimentar desses
frutos vistosos e com muito sabor”, diz Hamilton, que já havia lançado
no começo deste ano o belo disco Gismontipascoal, ao lado do pianista
André Mehmari, enriquecendo temas de Hermeto e Egberto Gismonti, além de
gravar composições próprias.
Ainda hoje a música de Hermeto se renova de maneira impressionante.
Conhecido como figura folclórica e encarado por muitos como um maluco,
não se pode negar que a música do autor de temas como Bebê, Forró
Brasil, Chorinho pra Ele, Santo Antonio e São Jorge faz a cabeça de
diversas gerações há mais de 50 anos. “Na década de 70, eu estava nos
Estados Unidos com o Airto (Moreira) e a Flora (Purim) para gravar. O
Tom tinha me convidado para gravar Quebra pedra no disco dele. Começou a
tocar Garota de Ipanema, ele passou a mão na cabeça e me disse: ‘Eu já
estou cansado dessa música’. Fiquei assustado. E ele falou: ‘Hermeto, eu
gostaria de fazer um som como o do Quarteto Novo, aquele grupo de
vocês’. Aí eu disse pro Tom passar mais tempo no Brasil. Depois de uns
três meses apareceu É pau, é pedra... Àguas de março. Eu pensei: ah,
isso é bem brasileiro, bem nordestino. Graças a Deus, o Tom escutou o
que eu falei”, lembra.
Tom não foi o único. Anos antes, em 1967, o também craque Edu Lobo
venceu o Festival da Canção com Ponteio. Qual a banda que o acompanhava,
ao lado de Marília Medalha? O Quarteto Novo, com Hermeto, Airto Moreira,
Théo de Barros e Heraldo do Monte. No exterior, despertou o mesmo
fascínio sobre nomes como Bill Evans, Ron Carter, Herbie Mann e o
próprio Miles Davis.
O legado que Hermeto segue construindo não para de aumentar. Sempre
pensando em inovar, não apenas musicalmente, o compositor tem escrito
ultimamente seus temas em telas de pintura. Em sua casa, hoje são mais
de 200 “partituras-quadro”. “Quando se fala de Hermeto, tudo é em grande
quantidade. Antes, ele compunha uma por dia, agora são duas, três, com
muita qualidade”, diz Aline Morena.

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