Muito se fala e se escreve sobre a polêmica de bambas que
colocou, cada um de um lado do ringue musical, os compositores Noel Rosa (na foto) e
Wilson Batista. Mas talvez haja poucos roteiros completos da contenda (o melhor
é feito pelos craques Henrique Cazes e Cristina Buarque, em disco que gravaram
juntos, chamado “Canções de Noel Rosa”) – tentativa que fazemos aqui agora.
A peleja começa em
1933, quando Wilson Batista lança um samba fazendo o elogio da malandragem e
colocando nas alturas o malandro. Tipo que, naqueles anos, no Rio de Janeiro
(onde Noel e Wilson viviam) desfilava e imperava pelas ruas da Lapa. O samba
chamava-se Lenço no pescoço, cuja letra está aqui transcrita na íntegra, para
facilitar a compreensão de todo o bate-boca sonoro:
Meu chapéu de
lado, tamanco arrastando
Lenço no pescoço,
navalha no bolsoEu passo gingando, provoco e desafio
Eu tenho orgulho de ser tão vadio
Sei que eles falam do meu proceder
Eu vejo quem trabalha viver no misere
Eu sou vadio porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança,
Tirava samba-canção
Comigo, não
Eu quero ver quem tem razão
Deixa de arrastar
o teu tamanco
Pois tamanco nunca
foi navalhaTira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha, que te atrapalha
(...)
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que tira todo o valor de um sambista
Eu fui à Vila ver
o arvoredo se mexer
E conhecer o berço
dos folgadosA luz nessa noite demorou muito
Me assassinaram um samba
Veio daí o meu pranto
Talvez não seja um
samba dos mais inspirados, mas serviu para provocar Noel Rosa, despertar seu
sentimento de desforra e fazer brotar, dessa vez sim, uma obra-prima: Palpite
infeliz:
Quem é você que
não sabe o que diz
Meu Deus do céu,
que palpite infelizSalve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem:
A Vila não quer abafar ninguém
(...)
A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz
Acuado no canto do
ringue, o grande Wilson Batista pegou pesado. Usou o que em gíria de boxe
chama-se de golpe baixo. Atacou com o violento Frankestein da Vila, fazendo
referências inclusive ao defeito físico que tanto incomodava Noel:
“Boa impressão
nunca se temQuando se encontra um certo alguém
Que mais parece um Frankestein”
O adversário não mais reagiu. Ou por uma atitude superior ou
por achar que a brincadeira estava beirando o baixo-nível. Não chamo a polêmica
de brincadeira por acaso. Tanto que ela se encerra exatamente com um samba em parceria.
Wilson escreveu a bela letra para o samba Terra de Cego. Noel Rosa aproveitou a
melodia e escreveu outra letra, tão bela quanto. Confiram as duas versões:
Terra de cego por
Wilson Batista:“Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba
És o abafa da Vila, eu bem sei
Mas em terra de cego
Quem tem um olho é rei
Para terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho à mão
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Para um bacharel brigar”
Deixa de ser
convencido
Todos sabem qual éTeu velho modo de vida
És um perfeito artista, bem sei
Também fui do trapézio
Até salto mortal no arame já dei
(muita medalha eu ganhei)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador
Serás a fera abatida
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé
Em amor de parceria
Como Noel Rosa não fazia fé em amor de parceria e Wilson
Batista também possivelmente não o fizesse, a parceria entre eles não passou
dessa. A polêmica também não.
Fonte : Outras notas musicais –
Revista Música Brasileira
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