Em harmonia frenética, os dançarinos esticam e recolhem
pernas e braços, empunham sombrinhas coloridas e arriscam acrobacias. Os
foliões parecem ligados no 220 ao seguir o sopro eletrizante de trompetes e
trombones, as baquetas atacando o couro da caixa feito metralhadoras, no
compasso de tubas e surdos. O sangue parece ferver, e uma corruptela desse
verbo batiza o ritmo: frevo. A música e a dança são contundentes e se
manifestam tanto na cultura nordestina e do Brasil que acabaram sendo
reconhecidas como patrimônio imaterial da humanidade, com a chancela da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O frevo é o primeiro
bem brasileiro que entra na lista representativa da Unesco, depois de passar
pelo crivo da convenção realizada em 2003. “Nossas imagens são tão boas que uma
delas foi o cartão-postal de feliz 2013 da Unesco. Quer reconhecimento maior?”,
comemora Célia Maria Corsino, diretora do Departamento do Patrimônio Imaterial
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “O frevo
está forte e vibrante, e esse reconhecimento o fortalece para enfrentar
qualquer outra pasteurização que possa haver no carnaval pernambucano. Afinal,
nem só de trio elétrico e escola de samba vive o carnaval brasileiro.”
Para o antropólogo
Hermano Vianna, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a
importância do título é simbólica. “O registro como bem imaterial apenas
reconhece a importância daquela tradição cultural, e toda tradição evolui. E o
frevo realmente é uma obra-prima da humanidade. Uma música/dança incrível, que
continua evoluindo, vide o Micróbio do Frevo, de Silvério Pessoa, ou sua
importância decisiva na criação do ‘passinho’ do funk carioca”, avalia.
Como manifestação
cultural, o frevo surgiu no final do século 19, em Recife, em pleno carnaval,
como expressão das classes populares, numa época em que a capital pernambucana
começava a se urbanizar. O objetivo dos compositores e dos músicos era causar
maior animação e efervescência nos quatro dias de folia. Aos poucos, o frevo
foi desenvolvendo suas características. De acordo com o historiador José Teles,
autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, é uma música autenticamente brasileira,
pernambucana, e talvez a única que não veio do folclore nem tem origem negra.
“É o único gênero popular que não tem música de domínio público, tradicional.
Todo frevo tem autor. Só nisso já há uma imensa importância”, diz o
pesquisador. “Depois, pelo repertório acumulado nestes cento e poucos anos,
torna-se uma música superimportante. O complicado é que só tocam as mesmas
músicas. Existe pouco frevo novo, a não ser alguma coisa de Spok. Até porque o
instrumental não se faz sem saber música, orquestração. Então fica difícil”,
relata.
O ano inteiro
Inaldo Cavalcante de
Albuquerque, o Spok, nasceu em Igarassu e foi criado na vizinha Abreu e Lima,
na Grande Recife, onde começou a ouvir frevo com o pai boêmio e folião, seu
Nilo. Aprendeu a gostar de clássicos criados por compositores como Nelson
Ferreira (Evocação Nº 1 e Gostosão) e Levino Ferreira (Último Dia) e os
cantores Claudionor Germano e Expedito Baracho. “Eu me encantei com a música,
fui estudar e aí, sim, minha vida se tornou mais intensa. Mas, como todo
pernambucano, tenho ele presente em minha vida desde muito cedo. Eu tocava frevo
quatro dias por ano, hoje vivo de frevo todos os dias”, diz o músico. “Com a
orquestra, toco durante o ano inteiro pelo Brasil e pelo mundo, em festivais de
jazz e de música instrumental”, comemora.
Existem diferentes
tipos de frevo, como explica Spok. “Há o frevo-canção, que tem um bit
acelerado, com letra, poesia, com um cantor ou cantora na frente da orquestra;
o frevo de rua, instrumental; e o frevo de bloco, executado por uma orquestra
de pau e corda – violões, cavaquinhos, bandolins e flautas. Talvez o frevo
seja, junto com o choro, a única música instrumental genuinamente brasileira e,
sozinho, o único que nasceu para orquestra”, diz. “Moraes Moreira me contou que
o trio elétrico de Dodô e Osmar veio do clube Vassourinhas, de Recife, que
também passava por Salvador.”
Moraes diz ter se
apaixonado cedo pelas orquestras de frevo e, desde que saiu dos Novos Baianos,
passou a representar o frevo baiano, com uma influência fortíssima do
pernambucano, começando com Pombo Correio. “É o frevo pernambucano com o trio
elétrico de Dodô e Osmar. É o metal com o elétrico, mistura fantástica que
tenho feito ao longo dos meus trinta e tantos carnavais na Bahia. Sou
considerado o primeiro cantor do trio e o frevo está na minha vida. E tive a
sorte de fazer sucesso com muitos deles, como Bloco do Prazer e Festa do
Interior”, comenta Moraes Moreira.
Falta escola
Jacob do Bandolim,
Chico Buarque e Caetano Veloso foram outros três compositores que também
criaram frevos, em Sapeca, Frevo Diabo e Frevo Rasgado, como lembra o músico
Antonio Nóbrega. Já na década de 1970, Nóbrega gravou dois frevos com o
Quinteto Armorial, do qual fez parte. Depois foi o primeiro a incluir violino
nos arranjos e, em 2007, no centenário do frevo, lançou dois CDs, um DVD e um
espetáculo com o título 9 de Frevereiro. “O ritmo, mais que uma manifestação, é
uma instituição cultural, porque se exterioriza através de uma dança, de uma
música instrumental e de um gênero cantado. E ainda tem um primo ou prima, que
é o frevo de bloco”, define.
Segundo Nóbrega, a
música instrumental do frevo requer um compositor-orquestrador. “Não basta ser
um cancionetista, e, com isso, não o estou diminuindo. O dançarino de frevo é
muito hábil e versátil. É a dança popular mais rica. Por tudo isso, o frevo tem
uma grandeza especial e talvez seja a manifestação de dança e música
brasileiras que mais nos represente”, comenta. Para ele, no entanto, o ritmo
poderia ter um papel mais presente em nossa cultura. “Em São Paulo, Levino
Ferreira, Nelson Ferreira e Zumba são desconhecidos e, no entanto, têm uma obra
tão rica quanto Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Moacir Santos. Que bom seria
se tivéssemos nas nossas instituições ligadas à música um lugarzinho para
estudar a obra desse pessoal. A dança poderia ser mais assimilada na educação
corporal dos jovens brasileiros”, lamenta.
Essa carência parece já estar sendo enfrentada em
Pernambuco, segundo a pesquisadora Mariangela Valença, autora do livro 100 Anos
de Frevo – Aula Espetáculo. Seu estudo destaca o Plano de Salvaguarda, feito
por vários órgãos oficiais pernambucanos, em parceria com o Ministério da
Cultura e o Iphan. O plano inclui a criação do Paço do Frevo, com objetivos
como tornar disponíveis documentação histórica, ensino da dança e da música;
produzir catálogos para internet, CDs e DVDs; publicar e distribuir livros e
reeditar obras raras; criar programas de rádio; e elaborar uma exposição
itinerante sobre o frevo para ser levada a instituições educacionais diversas.
“Se não fosse o povo
nas ruas, lutando pela sobrevivência desse ritmo frenético, não estaríamos,
hoje, comemorando o título de patrimônio imaterial da humanidade. No final do
século 19 e início do 20, o frevo era muito marginalizado, desprezado pela
elite recifense. Mas o povo, o pai do frevo, não permitiu. E até hoje continua
lutando para mantê-lo vivo”, afirma Mariangela. “Todo pernambucano carrega o
frevo nas veias e no coração. Então só me resta convidar seus leitores a dar um
pulinho aqui, na terra do frevo, e verificar a importância dele”, diz a pesquisadora.
Fonte: Revista do
Brasil / Guilherme Bryan
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