
Autodeclarado duro de
ouvido e incapaz de escrever ou ler partituras, Vanzolini compôs cerca de 70
músicas. “Meu professor foi o rádio.” Deleitava-se com os sambas de Noel Rosa
(“meu mestre de tudo”), Dorival Caymmi, Cartola, Nelson Cavaquinho, Geraldo
Filme, Paulo Nogueira, Dona Ivone Lara, Adoniran Barbosa e com as vozes de
Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Silvio Caldas. “Ouço esses compositores até
hoje, são essenciais.” Com Nelson Cavaquinho a relação ultrapassava a
admiração. “Éramos muito amigos. Tomávamos muita cerveja aqui em casa.” Com
Adoniran, companheiro assíduo de cachaça e conversa fiada, jamais houve
parceria musical. “Nossa conversa era cotidiana. Não rendeu música. Eu nunca
compus com ninguém, compuseram comigo”, dizia, riso satisfeito de quem não
perde a piada.
A casa do compositor no Cambuci, estrategicamente próxima da
adorada Escola de Samba Lavapés e na região “dos melhores bares da cidade”,
frequentados até recentemente para o sagrado ritual da cervejinha, foi ponto de
encontro da nata do samba: Roberto Silva, Paulinho da Viola, Eduardo Gudin,
Paulinho Nogueira, Martinho da Vila. Reuniam-se para cantar, tocar e
compartilhar causos, esporte em que Vanzolini era versado. Inconfidências
costumavam ser bem-vindas. Como a história do ciúme de Cacilda Becker em
relação a Mariinha, Tônia Carrero, por causa de Adolfo Celi. Na época,
Vanzolini namorava Cleide Yáconis, irmã de Cacilda. Nessas reviravoltas que a
vida dá, Tônia acabou por levar a melhor e se casou com Celi. A cena em que
Cacilda vai ao teatro tomar satisfações de Tônia é antológica, mas, a pedido do
entrevistado, fica como apimentada indiscrição cometida no calor da entrevista
e restrita a quem ali estava.
Filho de um professor
de estatística e economia da Escola Politécnica, o paulistano Vanzolini nasceu
“com um livro na mão”. Recitava poemas, lia de João Guimarães Rosa a Homero. A
medicina foi uma escada para o que realmente lhe interessava, a zoologia.
Tornou-se o mais notável especialista em répteis do País, embrenhou-se Amazônia
adentro em busca de exemplares, percorreu a América do Sul, vasculhou a
Patagônia. Relembrou com emoção o momento em que localizou na selva amazônica o
macaco descoberto por um aluno. “Pegamos o barco e fomos atrás. Achamos um
igarapé onde uma mulher lavava roupa. Perguntou o que estávamos vendendo.
‘Estamos nesse negócio do mico-de-cheiro. Tem aqui?’ ‘Depende, se vocês querem
o de cabeça preta é deste lado, o de cabeça vermelha é do outro’. Quase
desmaiei. O bicho foi batizado como Saimiri vanzolini.”
Surpreendia na
personalidade do cientista e poeta a capacidade de conciliar disciplina e
boemia. O pesquisador que trabalhou 47 anos no Museu de Zoologia, 31 dos quais
como diretor, era o mesmo que saía pelas madrugadas de uma São Paulo
poeticamente prateada pela garoa. O faro de caçador de bichos provou-se afiado
para talentos. Revelou artistas como Os Macambiras, Virgínia Rosa, Martinho da
Vila. Foi numa andança pelo Centro, ainda com patrulha do Exército, que
observou a cena inspiradora de Ronda. “Via as mulheres da vida entrar, olhar no
bar e ir embora. Fiquei pensando o que tinha por trás disso.”
Vanzolini não nutria
por Ronda o mesmo apreço do público que a abraçou como um dos hinos da cidade.
Achava que ninguém tinha entendido a ironia. “É uma piada. A mulher está atrás
do cara para desperdiçar um pente de revólver.” Entre suas favoritas estava
Longe de Casa Eu Choro (parceria com Eduardo Gudin), feita durante o doutorado
em Cambridge, nos EUA: (“...sinto falta de São Paulo/ De escutar na madrugada/
Uns bordões de violões/ E uma flauta a chorar prata/ Dor de amor não me magoa/
A saudade da garoa é que me mata”). E, bem ao seu estilo, gostava da
deliciosamente irreverente Juízo Final. Absolvido dos pecados (“no geral bem
pesados”), o poeta elevado aos céus observa satisfeito o panorama no andar
inferior: “Agora só toco harpa/ De camisola e sandália./ Espio pra ver lá
embaixo/ A quadrilha da fornalha./ Aquela ingrata hoje está/ Trabalhando de salsicha,/
Espetadinha no garfo/ Satanás fritando a bicha./ Ô demônio, capricha!”
Fonte: CartaCapital / Ana Ferraz
Foto: Gustavo Lourenção
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