Numa noite paulistana de maio, o pianista carioca Antônio
Adolfo toca jazz instrumental para uma plateia majoritariamente branca do Sesc
24 de Maio, no Centro de São Paulo. Na vizinhança, a juventude negra faz
explodir em samba, pagode e funk carioca os históricos calçadões que nos anos
1980 presenciaram o nascimento da cultura hip-hop.
Não parece haver conexão entre o jazzista branco Antônio e a
juventude black pop vizinha, até que
ele comece a tocar (e cantarolar) a toada Sá Marina (1967). Imediatamente a
plateia canta em coro, descendo a rua da ladeira, só quem viu pode contar/
cheirando a flor de laranjeira, Sá Marina vem prá dançar.
A nova guarda preta dança lá fora, a velha guarda branca
canta aqui dentro. Aos 71 anos, Antônio vai de Teletema (1969), e o coro se
eleva outra vez. Sá Marina foi sucesso estrondoso em 1968, na voz em bossa
negra de Wilson Simonal.
Teletema enviou o pop inspirado em Burt Bacharach às novelas
da então ascendente Rede Globo, e ganhou vida na voz de veludo negro de Evinha,
ex-garotinha iê-iê-iê do infanto-soul-juvenil Trio Esperança. Quem estava por
trás daquelas melodias hoje dispersas pelo vento, ao lado do letrista também
branco Tibério Gaspar (1943-2017), era um pianista e arranjador excêntrico que
se considera representante da “terceira geração” da bossa nova.
A dupla teve 53 parcerias gravadas por inúmeros intérpretes,
agora reunidas em partitura no Songbook Antônio Adolfo & Tibério Gaspar.
Entre elas estava BR3, graças à qual o futuro ator Toni Tornado venceu o
Festival Internacional da Canção de 1970 e passou a dividir com Simonal o
pioneirismo de forjar o black power brasileiro.
De punho cerrado num gesto que imitava o dos Panteras Negras
estadunidenses, Toni enfureceu os generais que comandavam o País, e o primeiro
levante funkeiro nacional foi dizimado tão rapidamente quanto havia surgido.
Filho da violinista Yolanda Maurity, Antônio profissionalizou-se
aos 17 anos, ao atuar como acompanhante do musical Pobre Menina Rica (1963),
dos bossa-novistas de primeira hora Carlos Lyra e Vinicius. Dali partiu com o
Trio 3D, de samba-jazz (ou sambalanço), uma das muitas designações em que a
bossa se esparramou nos anos 1960. Em 1967, o trio virou Conjunto 3D e lançou o
álbum Muito na Onda, cuja vocalista bossa-novista era Beth Carvalho. Foi ela
quem apresentou Antônio a Tibério.
“Com 18 anos comprei meu primeiro carro, um Gordini. Minha
família jamais teria dinheiro para comprar um carro”, lembra no saguão de um
hotel no Centro de São Paulo um Antônio Adolfo espantado com o excesso de
pobreza ao redor.
Nascido em Santa Teresa, ele morou com a mãe, separada do
pai, no bairro da Tijuca, reduto onde à mesma época vicejava a juventude
rock’n’roll, com Roberto, Jorge Ben, Tim Maia, Wilson Simonal e Erasmo Carlos.
Ninguém gosta, até hoje, de falar da branquitude praieira
classista e elitista da bossa nova, mas artistas como Antônio e Beth se
colocavam e/ou eram colocados à margem junto de bossa-novistas de pele negra,
como Johnny Alf, Leny Andrade, Eliana Pittman, e Agostinho dos Santos. Esse
último, egresso de geração anterior, vocalizou em 1967 o movimento Musicanossa,
em um disco com canções jovens de Milton Nascimento, Gilberto Gil, Edu Lobo,
Dori Caymmi, Guarabyra – e Caminhada, de Antônio Adolfo & Tibério. “Sabe
por que aconteceu o Musicanossa?
Porque com o sucesso da bossa nova houve uma debandada
grande de músicos para a Europa, Estados Unidos e também para o México. O
Brasil e o Rio, onde a gente morava, ficaram órfãos”. Participavam Milton,
Paulinho Tapajós, Arthur Verocai, Danilo Caymmi, o índio uruguaio Taiguara e
Marcos Valle.
O padrasto de Antônio tinha fazenda no interior fluminense,
e ali Antonio fermentou as bossas interioranas, suburbanas, que com o
Musicanossa foram batizadas de toadas modernas. A mais conhecida é Viola
Enluarada (1968), de Valle, cantada em duo com Milton. Andança, com Beth
Carvalho, perdeu o FIC de 1968 para o Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque e o Prá
Não Dizer Que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré. Travessia, que deu glória
a Milton no FIC de 1967, é para Adolfo uma toada moderna.
Em 1968, Simonal retrabalhou a toada moderna Sá Marina e
assim fundou outra subvertente de bossa negra, a pilantragem, irmã cinco
minutos mais velha da Tropicália. “A pilantragem foi, com todo respeito, um
subproduto desse movimento todo”, opina o autor. À custa de Sá Marina e BR3,
ele foi ao pódio e fez arranjos soul para Elis, e atraiu a ira dos “homens de
bem” da época.
“Fui chamado ao SNI. ‘Por que, em vez de BR-3, vocês não
fazem algo enaltecendo as obras do País? ’, diziam os generais”. Enquanto Elis
e Jair Rodrigues eram levados a cantar nas Olimpíadas do Exército, o grupo flower black power de Antônio, A
Brazuca, somou-se a caipiras e forrozeiros numa turma coagida a gravar em
louvor à Transamazônica.
“A gente foi mais ou menos sutilmente obrigado a fazer
aquilo”, conta. “Mas Tibério conseguiu, na letra de Transamazônica (1971), dar
uma fisgada nos caras: Os facões estão destruindo aquela selva/ calando o pio
do azulão”.
Antônio decidiu exilar-se. “Aquilo tudo me enojou muito.
Como estou enojado hoje”. De volta, lançou em 1972 um disco como cantor-solo,
que renega e proíbe de relançar. Seguiu arranjador, trabalhando para Magal e Rô
Rô , e instrumentista.
Segue sem cantar, o que interpreta como “o rompimento com a
coisa pop”. O jazz brasileiro de agora é mudo, mas a plateia paulista corre a
cantar em coral os versos de Sá Marina e Teletema, de que a juventude negra
vizinha nem toma conhecimento.
Fonte : Pedro Alexandre Sanches (CartaCapital)
Fonte : Pedro Alexandre Sanches (CartaCapital)
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