O mais recente álbum do bandolinista Hamilton de Holanda,
“Jacob10ZZ”, foi lançado em vinil e nas plataformas digitais no dia 20 de abril
de 2018, e, em CD, no dia 6 de maio, no Teatro Oi Casa Grande, no Rio de
Janeiro. O trabalho é uma homenagem a outro bandolinista célebre, Jacob Pick
Bittencourt (1918-1969), o Jacob do Bandolim.
O trabalho do Hamilton de Holanda permanece excelente; não
pretendo, por isso mesmo, me perder comentando as escolhas das músicas, a
criatividade dos arranjos, o talento dos músicos: o contrabaixista Guto Wirtti
e o percussionista Thiago da Serrinha, que dividem o trabalho com o
bandolinista. Vou aproveitar, isto sim, para discorrer, ainda que brevemente, a
respeito do choro, o gênero de composição preferido do homenageado Jacob Bittencourt,
e de algumas relações do choro com a música brasileira.
O choro é contemporâneo do nascimento do jazz; Pixinguinha
compôs na mesma época em que Louis Armstrong e Benny Goodman. Caberia indagar,
por isso mesmo, o porquê do choro não haver se desenvolvido a ponto de se
modernizar, gerando várias correntes e escolas como o jazz, em vez de
permanecer reduzido aos grupos de especialistas. Efetivamente, o choro passou
por mudanças em sua história musical; não é difícil, para quem acompanha a
música brasileira, verificar isso nos trabalhos de Hermeto Pascoal, Paulo
Moura, da banda A Cor do Som e do grupo ConSertão. Essas mudanças, porém, não
tiveram o alcance merecido, por isso mesmo, são mais iniciativas pontuais; elas
não se tornaram escolas de composição, como o hard bop ou o free jazz.
Um dos chorinhos mais conhecido por todos, “Carinhoso”, de
Pixinguinha – outro chorão homenageado pelo Hamilton de Holanda no álbum “Mundo
de Pixinguinha”, de 2012 – é uma música de inovação do gênero. Tradicionalmente,
choros são compostos em três partes, geralmente dispostas na música em
A-B-A-C-A. “Carinhoso”, entretanto, têm apenas duas partes, e isso já foi
motivo de polêmicas; além do mais, suas curvas melódicas estão próximas do jazz
– não é difícil imaginar “Carinhoso” na execução de uma big band –. “Lamentos”,
outro chorinho célebre de Pixinguinha, também é inovador, basta observar como
sua parte A é recortada ritmicamente, tornando-o bastante distinto de outras
composições no gênero; já ouvi doutores em música discutindo a harmonização de
“Naquele tempo”.
Se em sua natureza o choro é marcado por inovações e
improvisos, o que se passou em suas evoluções? Hermeto Pascoal, além de
inovações e subversões de gêneros musicais do nordeste brasileiro, como frevos,
maracatus, baiões etc., também interferiu no choro; entre suas composições,
está o inesquecível “Chorinho pra ele”, gravado pelo próprio Hermeto no álbum
“Slaves Mass”, de 1977, e, anos depois, por Paulo Moura no álbum “Mistura e
manda”, de 1984. Na gravação de Hermeto, ao lado das modificações na harmonia e
nas linhas melódicas e rítmicas, há mudanças consideráveis no timbre do choro,
tradicionalmente distribuído entre os timbres dos chamados grupos regionais,
cuja formação é violão de sete cordas, violão, cavaquinho, pandeiro e o
instrumento solistas, que pode ser flauta, bandolim, cavaquinho, saxofone. No
arranjo de Hermeto, justamente com a flauta, tocada por ele mesmo, e do
pandeiro (Airto Moreira), a execução conta com instrumentos de jazz: teclados
(Hermeto), baixo acústico (Ron Carter), guitarra elétrica (David Amaro) e
bateria (Airto). A gravação de Paulo Moura, por sua vez, dá timbres mais
tradicionais às concepções de Hermeto Pascoal, valendo-se de um grupo regional
de instrumentistas virtuoses: Zé da Velha (trombone); Rafael Rabello (violão);
Joel do Nascimento (bandolim); Maurício Carrilho (violão); Jonas Pereira e
Carlinhos do Cavaco (cavaquinho); Jorginho, Neoci de Bonsucesso e Joviniano
(percussão); e o próprio Paulo Moura (clarinete).
Vale a pena mencionar um grupo significativo na história do
choro brasileiro; os então, nos finais da década de 70, mocinhos da banda “A
cor do som”: Dadi (baixo elétrico); Armandinho (guitarra baiana); Mu
(teclados); Gustavo Schroeter (bateria); Ary (percussão). O primeiro álbum, de
1977, é composto por músicas instrumentais, entre elas, o chorinho “Odeon”, de
Ernesto Nazareth, conforme a versão pop-rock da banda. O segundo trabalho, de
1978, é a gravação ao vivo da apresentação no Festival de Jazz de Montreux; trata-se
de um dos melhores álbuns de música instrumental brasileira. Entre suas faixas,
está “Brejeiro”, outro chorinho do Ernesto Nazareth, tocado com baixo, guitarra
e teclados eletrônicos, em ritmo próximo do rock.
Em 1981, alguns anos mais tarde, outra formação interessante
propôs reinterpretações do choro; refiro-me ao grupo ConSertão, formado por:
Elomar (violão e voz); Arthur Moreira Lima (piano); Heraldo do Monte (violão,
viola, guitarra elétrica); Paulo Moura (sopros). O grupo conheceu outras formações
no decorrer dos anos; esta, a que me refiro, apresentou o espetáculo ConSertão,
em 1981, no teatro municipal de São Paulo, cuja gravação foi lançada em álbum
no mesmo ano. Entre as faixas, chama atenção a interpretação dada pelo trio
Arthur Moreira Lima, Heraldo do Monte e Paulo Moura ao chorinho “Pedacinhos do
céu”, de Waldir Azevedo. A ressignificação da música passa por, pelo menos,
dois momentos: (1) o chorinho é interpretado apenas pelo pianista, que faz sua
leitura com base na composição erudita, expondo possíveis desdobramentos de
“Pedacinhos do céu” da música romântica à musica impressionista; (2) o chorinho
é interpretado por Paulo Moura, no saxofone alto, e Heraldo do Monte, na
guitarrista elétrica semiacústica, momento em que a música se aproxima dos
solos e improvisos de jazz.
Hamilton de Holanda, sem dúvida, dá continuidade a tudo
isso, seja na manutenção da memória da música brasileira, seja nas
transformações das formas tradicionais. Para dar exemplo apenas no gênero
choro, já que é disso que trata seu novo trabalho, quero comentar o mencionado
“Mundo de Pixinguinha” e, evidentemente, “Jacob10ZZ”. Se Paulo Moura e Heraldo
do Monte já propuseram diálogos entre o choro e o jazz, em o “Mundo de
Pixinguinha” Hamilton explicita isso interpretando composições de Pixinguinha
em duetos de bandolim com músicos de jazz, entre eles, o trompetista Wynton
Marsalis e o pianista Chucho Valdés. Choro e jazz são músicas instrumentais
caracterizadas por práticas de improvisos que, no entanto, são diferentes em cada
um dos dois gêneros: grosso modo, (1) no choro trata-se do improviso de
floreio, em que o músico percorre todas as partes da música dando, a cada uma
delas, toques pessoais aos respectivos perfis rítmicos e melódicos; (2) no
jazz, há o tema, em geral de breve duração, que é constantemente desenvolvido
em improvisos pelos músicos envolvidos na sessão. Assim, em “Mundo de
Pixinguinha”, músicos habituados ao segundo tipo de improviso colocam-se a
improvisar no primeiro, gerando resultados inusitados, além de expressar os
choros no swing de jazz, da salsa etc.
Para comentar o “Jacob10ZZ”, gostaria de lembrar a gravadora
ECM e alguns brasileiros que lá atuaram: Airto Moreira, Flora Purim, Nana
Vasconcelos, Egberto Gismonti e Hamilton de Holanda. A ECM é uma gravadora de
jazz e de música erudita, porém, de registros muito específicos de ambos os
gêneros. Quanto ao erudito, a gravadora divulga a música contemporânea e
compositores como Morton Feldman e Sofia Gubaidulina; quanto ao jazz, busca-se
pela articulação de suas vanguardas com a música experimental de outros países,
como as parcerias de Egberto Gismonti, Jan Garbarek e Charlie Haden, ou o dueto
formado por Hamilton de Holanda e o pianista Stefano Bollani. Caracterizada
pela experimentação, a ECM promoveu encontros singulares de músicos geniais, em
que várias propostas foram articuladas. Naná Vasconcelos, por exemplo, combinou
berimbau e percussão brasileira com o soft rock de Pat Matheny e Lyle Mays;
seguindo por caminhos semelhantes, em “Jacob10ZZ”, que não é gravado pela ECM,
Hamilton não recorre a um conjunto regional tradicional, mas a contrabaixo
acústico e a percussão, cujos timbres destoam daqueles mais usuais dos choros,
como são os timbres do pandeiro com pele natural.
Por fim, resta retomar a indagação inicial: com tantos
músicos talentosos e compositores criativos, por que o choro não se
desenvolveu, gerando várias correntes e escolas, como aconteceu com o jazz?
Grupos de choro tradicional atualmente são raros, não há depuração do gênero
por meio de novas propostas, como o “Mistura e manda”, de Paulo Moura; a fusão
de choro e pop-rock morreu com o fim da Cor do Som, ninguém mais levou a ideia
adiante; aproximações entre choro e música erudita também são raras – não me
refiro a mostrar o quanto certos compositores de choro dialogam com o
repertório erudito, a ponto de serem incluídos nele, mas de não ouvir
composições de choros dodecafônicos, seriais, concretos, eletroacústicos –;
tampouco são comuns experiências com improvisos de jazz em meio aos improvisos
do choro. Todas dessas tendências, vale insistir, que estão presentes no jazz
de modo sistemático, gerando escolas e processos de composição inovadores,
podem também ser encontradas no choro, conforme busquei expor anteriormente;
todas elas, infelizmente, são pontuais, esparsas, pouco valorizadas e, por isso
mesmo, quase esquecidas.
Penso, em linhas gerais, em duas explicações para isso: as
banalizações da indústria cultural, sempre certeiras, e certos aspectos
conservadores da cultura brasileira, que, muitas vezes, não são devidamente
enfrentados. A indústria cultural tem mais penetração na cultura musical do
Brasil do que consideram os historiadores da MPB, antes preocupados em
enaltecer nossa música popular a qualquer preço do que fazer a ela críticas
menos apaixonadas e mais objetivas. Nesse contexto, nada revolucionário ou
sofisticado, como é o choro, consegue prevalecer, ainda mais em países de
terceiro mundo, com governantes sem preocupação culturais, eles mesmos,
bastante toscos. Os brasileiros, por sua vez, são mais conservadores do que se
imaginam: a mesma lentidão em avançar nos direitos civis verifica-se nos
avanços culturais; nossa MPB, por exemplo, está praticamente reduzida, do
tropicalismo à música sertaneja, aos filhos dos compositores mais antigos,
compondo ou cantando como seus pais. Em meio tão avesso à preservação de
qualquer cultura que não seja autorizada pela indústria cultural e, ao mesmo
tempo, refratário a inovações e subversões de seus costumes, é quase impossível
a sobrevivência, com suas muitas evoluções, de gêneros musicais como choro,
frevo, maracatu, repente, modas de viola, as muitas músicas dos muitos
terreiros de religiões afro-brasileiras...
Fonte: Antonio
Vicente Pietroforte (professor do
Departamento de Linguística da FFLCH-USP).
2 comentários:
Belo texto. Sempre me indago sobre essa questão (choro x escolas x sub-gêneros). Uma sugestão de audição: o grupo Quatro a Zero. Na minha opinião, além do HH, foram os que chegaram mais perto da "(r) evolução". Abraços, Luis.
Grato pela sugestão
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