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segunda-feira, 9 de julho de 2018

LEITURAS DE UM BRASILEIRO: JACOB DO BANDOLIM SEGUNDO HAMILTON DE HOLANDA


O mais recente álbum do bandolinista Hamilton de Holanda, “Jacob10ZZ”, foi lançado em vinil e nas plataformas digitais no dia 20 de abril de 2018, e, em CD, no dia 6 de maio, no Teatro Oi Casa Grande, no Rio de Janeiro. O trabalho é uma homenagem a outro bandolinista célebre, Jacob Pick Bittencourt (1918-1969), o Jacob do Bandolim.

O trabalho do Hamilton de Holanda permanece excelente; não pretendo, por isso mesmo, me perder comentando as escolhas das músicas, a criatividade dos arranjos, o talento dos músicos: o contrabaixista Guto Wirtti e o percussionista Thiago da Serrinha, que dividem o trabalho com o bandolinista. Vou aproveitar, isto sim, para discorrer, ainda que brevemente, a respeito do choro, o gênero de composição preferido do homenageado Jacob Bittencourt, e de algumas relações do choro com a música brasileira.

O choro é contemporâneo do nascimento do jazz; Pixinguinha compôs na mesma época em que Louis Armstrong e Benny Goodman. Caberia indagar, por isso mesmo, o porquê do choro não haver se desenvolvido a ponto de se modernizar, gerando várias correntes e escolas como o jazz, em vez de permanecer reduzido aos grupos de especialistas. Efetivamente, o choro passou por mudanças em sua história musical; não é difícil, para quem acompanha a música brasileira, verificar isso nos trabalhos de Hermeto Pascoal, Paulo Moura, da banda A Cor do Som e do grupo ConSertão. Essas mudanças, porém, não tiveram o alcance merecido, por isso mesmo, são mais iniciativas pontuais; elas não se tornaram escolas de composição, como o hard bop ou o free jazz.

Um dos chorinhos mais conhecido por todos, “Carinhoso”, de Pixinguinha – outro chorão homenageado pelo Hamilton de Holanda no álbum “Mundo de Pixinguinha”, de 2012 – é uma música de inovação do gênero. Tradicionalmente, choros são compostos em três partes, geralmente dispostas na música em A-B-A-C-A. “Carinhoso”, entretanto, têm apenas duas partes, e isso já foi motivo de polêmicas; além do mais, suas curvas melódicas estão próximas do jazz – não é difícil imaginar “Carinhoso” na execução de uma big band –. “Lamentos”, outro chorinho célebre de Pixinguinha, também é inovador, basta observar como sua parte A é recortada ritmicamente, tornando-o bastante distinto de outras composições no gênero; já ouvi doutores em música discutindo a harmonização de “Naquele tempo”.

Se em sua natureza o choro é marcado por inovações e improvisos, o que se passou em suas evoluções? Hermeto Pascoal, além de inovações e subversões de gêneros musicais do nordeste brasileiro, como frevos, maracatus, baiões etc., também interferiu no choro; entre suas composições, está o inesquecível “Chorinho pra ele”, gravado pelo próprio Hermeto no álbum “Slaves Mass”, de 1977, e, anos depois, por Paulo Moura no álbum “Mistura e manda”, de 1984. Na gravação de Hermeto, ao lado das modificações na harmonia e nas linhas melódicas e rítmicas, há mudanças consideráveis no timbre do choro, tradicionalmente distribuído entre os timbres dos chamados grupos regionais, cuja formação é violão de sete cordas, violão, cavaquinho, pandeiro e o instrumento solistas, que pode ser flauta, bandolim, cavaquinho, saxofone. No arranjo de Hermeto, justamente com a flauta, tocada por ele mesmo, e do pandeiro (Airto Moreira), a execução conta com instrumentos de jazz: teclados (Hermeto), baixo acústico (Ron Carter), guitarra elétrica (David Amaro) e bateria (Airto). A gravação de Paulo Moura, por sua vez, dá timbres mais tradicionais às concepções de Hermeto Pascoal, valendo-se de um grupo regional de instrumentistas virtuoses: Zé da Velha (trombone); Rafael Rabello (violão); Joel do Nascimento (bandolim); Maurício Carrilho (violão); Jonas Pereira e Carlinhos do Cavaco (cavaquinho); Jorginho, Neoci de Bonsucesso e Joviniano (percussão); e o próprio Paulo Moura (clarinete).  

Vale a pena mencionar um grupo significativo na história do choro brasileiro; os então, nos finais da década de 70, mocinhos da banda “A cor do som”: Dadi (baixo elétrico); Armandinho (guitarra baiana); Mu (teclados); Gustavo Schroeter (bateria); Ary (percussão). O primeiro álbum, de 1977, é composto por músicas instrumentais, entre elas, o chorinho “Odeon”, de Ernesto Nazareth, conforme a versão pop-rock da banda. O segundo trabalho, de 1978, é a gravação ao vivo da apresentação no Festival de Jazz de Montreux; trata-se de um dos melhores álbuns de música instrumental brasileira. Entre suas faixas, está “Brejeiro”, outro chorinho do Ernesto Nazareth, tocado com baixo, guitarra e teclados eletrônicos, em ritmo próximo do rock.

Em 1981, alguns anos mais tarde, outra formação interessante propôs reinterpretações do choro; refiro-me ao grupo ConSertão, formado por: Elomar (violão e voz); Arthur Moreira Lima (piano); Heraldo do Monte (violão, viola, guitarra elétrica); Paulo Moura (sopros). O grupo conheceu outras formações no decorrer dos anos; esta, a que me refiro, apresentou o espetáculo ConSertão, em 1981, no teatro municipal de São Paulo, cuja gravação foi lançada em álbum no mesmo ano. Entre as faixas, chama atenção a interpretação dada pelo trio Arthur Moreira Lima, Heraldo do Monte e Paulo Moura ao chorinho “Pedacinhos do céu”, de Waldir Azevedo. A ressignificação da música passa por, pelo menos, dois momentos: (1) o chorinho é interpretado apenas pelo pianista, que faz sua leitura com base na composição erudita, expondo possíveis desdobramentos de “Pedacinhos do céu” da música romântica à musica impressionista; (2) o chorinho é interpretado por Paulo Moura, no saxofone alto, e Heraldo do Monte, na guitarrista elétrica semiacústica, momento em que a música se aproxima dos solos e improvisos de jazz.

Hamilton de Holanda, sem dúvida, dá continuidade a tudo isso, seja na manutenção da memória da música brasileira, seja nas transformações das formas tradicionais. Para dar exemplo apenas no gênero choro, já que é disso que trata seu novo trabalho, quero comentar o mencionado “Mundo de Pixinguinha” e, evidentemente, “Jacob10ZZ”. Se Paulo Moura e Heraldo do Monte já propuseram diálogos entre o choro e o jazz, em o “Mundo de Pixinguinha” Hamilton explicita isso interpretando composições de Pixinguinha em duetos de bandolim com músicos de jazz, entre eles, o trompetista Wynton Marsalis e o pianista Chucho Valdés. Choro e jazz são músicas instrumentais caracterizadas por práticas de improvisos que, no entanto, são diferentes em cada um dos dois gêneros: grosso modo, (1) no choro trata-se do improviso de floreio, em que o músico percorre todas as partes da música dando, a cada uma delas, toques pessoais aos respectivos perfis rítmicos e melódicos; (2) no jazz, há o tema, em geral de breve duração, que é constantemente desenvolvido em improvisos pelos músicos envolvidos na sessão. Assim, em “Mundo de Pixinguinha”, músicos habituados ao segundo tipo de improviso colocam-se a improvisar no primeiro, gerando resultados inusitados, além de expressar os choros no swing de jazz, da salsa etc.

Para comentar o “Jacob10ZZ”, gostaria de lembrar a gravadora ECM e alguns brasileiros que lá atuaram: Airto Moreira, Flora Purim, Nana Vasconcelos, Egberto Gismonti e Hamilton de Holanda. A ECM é uma gravadora de jazz e de música erudita, porém, de registros muito específicos de ambos os gêneros. Quanto ao erudito, a gravadora divulga a música contemporânea e compositores como Morton Feldman e Sofia Gubaidulina; quanto ao jazz, busca-se pela articulação de suas vanguardas com a música experimental de outros países, como as parcerias de Egberto Gismonti, Jan Garbarek e Charlie Haden, ou o dueto formado por Hamilton de Holanda e o pianista Stefano Bollani. Caracterizada pela experimentação, a ECM promoveu encontros singulares de músicos geniais, em que várias propostas foram articuladas. Naná Vasconcelos, por exemplo, combinou berimbau e percussão brasileira com o soft rock de Pat Matheny e Lyle Mays; seguindo por caminhos semelhantes, em “Jacob10ZZ”, que não é gravado pela ECM, Hamilton não recorre a um conjunto regional tradicional, mas a contrabaixo acústico e a percussão, cujos timbres destoam daqueles mais usuais dos choros, como são os timbres do pandeiro com pele natural.

Por fim, resta retomar a indagação inicial: com tantos músicos talentosos e compositores criativos, por que o choro não se desenvolveu, gerando várias correntes e escolas, como aconteceu com o jazz? Grupos de choro tradicional atualmente são raros, não há depuração do gênero por meio de novas propostas, como o “Mistura e manda”, de Paulo Moura; a fusão de choro e pop-rock morreu com o fim da Cor do Som, ninguém mais levou a ideia adiante; aproximações entre choro e música erudita também são raras – não me refiro a mostrar o quanto certos compositores de choro dialogam com o repertório erudito, a ponto de serem incluídos nele, mas de não ouvir composições de choros dodecafônicos, seriais, concretos, eletroacústicos –; tampouco são comuns experiências com improvisos de jazz em meio aos improvisos do choro. Todas dessas tendências, vale insistir, que estão presentes no jazz de modo sistemático, gerando escolas e processos de composição inovadores, podem também ser encontradas no choro, conforme busquei expor anteriormente; todas elas, infelizmente, são pontuais, esparsas, pouco valorizadas e, por isso mesmo, quase esquecidas.

Penso, em linhas gerais, em duas explicações para isso: as banalizações da indústria cultural, sempre certeiras, e certos aspectos conservadores da cultura brasileira, que, muitas vezes, não são devidamente enfrentados. A indústria cultural tem mais penetração na cultura musical do Brasil do que consideram os historiadores da MPB, antes preocupados em enaltecer nossa música popular a qualquer preço do que fazer a ela críticas menos apaixonadas e mais objetivas. Nesse contexto, nada revolucionário ou sofisticado, como é o choro, consegue prevalecer, ainda mais em países de terceiro mundo, com governantes sem preocupação culturais, eles mesmos, bastante toscos. Os brasileiros, por sua vez, são mais conservadores do que se imaginam: a mesma lentidão em avançar nos direitos civis verifica-se nos avanços culturais; nossa MPB, por exemplo, está praticamente reduzida, do tropicalismo à música sertaneja, aos filhos dos compositores mais antigos, compondo ou cantando como seus pais. Em meio tão avesso à preservação de qualquer cultura que não seja autorizada pela indústria cultural e, ao mesmo tempo, refratário a inovações e subversões de seus costumes, é quase impossível a sobrevivência, com suas muitas evoluções, de gêneros musicais como choro, frevo, maracatu, repente, modas de viola, as muitas músicas dos muitos terreiros de religiões afro-brasileiras...

Fonte:  Antonio Vicente  Pietroforte (professor do Departamento de Linguística da FFLCH-USP).






2 comentários:

Saci Pererê disse...

Belo texto. Sempre me indago sobre essa questão (choro x escolas x sub-gêneros). Uma sugestão de audição: o grupo Quatro a Zero. Na minha opinião, além do HH, foram os que chegaram mais perto da "(r) evolução". Abraços, Luis.

Edson Santos disse...

Grato pela sugestão