O aspecto que primeiramente nos capta a atenção é a
configuração instrumental deste trio, em especial devido à ausência de
contrabaixo. Tenhamos presente os relevantes trios de saxofone-piano-bateria
que despontaram nos anos mais recentes: Fieldwork, com Vijay Iyer, Steve Lehman
e Tyshawn Sorey; Paradoxical Frog, com Sorey, Kris Davis e Ingrid Laubrock; ou
o trio formado por Ivo Perelman, Matthew Shipp e Gerald Cleaver. A presença do
contrabaixo poderia, porventura, acrescentar uma camada de som mais profundo,
novas acentuações rítmicas e, sem dúvida, uma linha de vida. Sem ela pode-se
esperar um som mais livre e fluido.
O próprio Chad Taylor (n. 1973) – baterista/percussionista,
compositor e pedagogo que se deu a conhecer ao mundo em Chicago e que reside
atualmente na Filadélfia – não é alheio ao formato, tendo, por exemplo, formado
com o pianista norueguês Håvard Wiik e o saxofonista e clarinetista Ken
Vandermark o trio Side A, que nos ofereceu o mui recomendável “A New Margin”,
na Clean Feed, em 2011. Muito ativo, Taylor, para além de liderar os seus
próprios grupos, fundou com Rob Mazurek os seminais Chicago Underground
(formação de dimensão variável que evoluiu em múltiplas direções) e tocou com
luminares como Pharoah Sanders, Fred Anderson, Nicole Mitchell, Matana Roberts,
Darius Jones, Marc Ribot, Derek Bailey, Peter Brötzmann, Jeff Parker e Eric
Revis, para apenas nomear alguns.
Em “The Daily Biological”, Taylor aliou esforços ao
saxofonista Brian Settles, que, entre outras, integra formações lideradas por
Tomas Fujiwara, Michael Formanek e Jonathan Finlayson, e ao pianista Neil
Podgurski, que conhecemos ao lado de Nicholas Payton, Eric Alexander e Orrin
Evans, retomando uma amizade que remonta aos tempos da New School, em meados
dos anos 1990.
Os três apresentam uma música cuidadosamente estruturada,
mas ao mesmo tempo fresca e desafiante, que evidencia os seus predicados
enquanto instrumentistas e improvisadores de alto nível. A ausência do
corpulento cordofone é compensada a espaços pelos papéis que os três
desempenham, de forma diversa, na cobertura dos registos graves. Em notas de
apresentação, Taylor esclarece: «Todas as nossas peças exploram maneiras
diferentes de utilizar um trio sem contrabaixo. Tens de ser realmente forte na
tua forma de tocar. Eu penso que uma das coisas mais importantes acerca deste
trio é tentarmos ser muito independentes uns dos outros».
A abrir, “The Shepherd”, peça da autoria do saxofonista,
funciona com uma carta de intenções do trio, no seu dinamismo exposto em
diferentes secções, seja nas linhas sinuosas desenhadas pelo saxofone, no piano
borbulhante (belos uníssonos no final) ou na bateria nutrida de detalhes.
“Prism” assenta-se num vívido diálogo entre piano e bateria, que remete para o
travo caribenho do bebop de um Elmo Hope, até que o saxofone entra em cena
carreando a peça para outros territórios.
Mais aventurosa nas suas múltiplas componentes, “Swamp”
conta com um longo solo do saxofonista, que desenvolve motivos serpenteantes,
até que a dupla rítmica toma de novo conta das operações, com o pianista a
desenvolver linhas angulosas e o baterista a intervir muito para além da mera
função de acompanhamento. “Resistance”, da autoria do pianista, começa por
exibir o lado mais sereno da música do trio, assente num fragmento melódico que
paulatinamente se vai transmutando, num crescendo de intensidade.
Com o seu pendor “free”, “Matape”, original do baterista
(que, aliás, já o registou em dueto com o saxofonista James Brandon Lewis), conta
com uma prestação vigorosa de Settles sobre as ruminações do pianista e as
acentuações sempre certeiras de Taylor. “Birds, Leaves, Wind, Trees” é um dos
momentos mais intrigantes do disco, com a exponenciação dos jogos a três. De
“Recife”, peça escrita por Taylor a pensar em Geri Allen, avulta o contraste
entre o discurso quase tratável do saxofone e uma incrível tensão polirrítmica.
A jornada encerra com a sua peça mais extensa, “Between
Sound and Silence”, cujo início remete para as explorações interestelares de
Coltrane e Ali e termina num registo quase camerístico, depois dos muitos
ziguezagues dados no ínterim. O epílogo ideal para um disco muito interessante
que realça a atenção que devemos a Taylor também enquanto compositor dotado de
uma visão musical própria.
Faixas
1 The
Shepherd 5:45
2 Prism 5:09
3 Swamp 7:20
4 Resistance
6:58
5 Matape
6:09
6 Birds,
Leaves, Wind, Trees 8:42
7 Untethered
5:23
8 Recife
2:47
9 Between
Sound and Silence 12:10
10 Digital
Booklet: The Daily Biological
Músicos: Brian Settles (saxofone tenor); Neil Podgurski (piano); Chad Taylor (bateria)
Nota: Este álbum foi considerado, pela JazzTimes, como um dos
30 melhores lançados em 2020.
Fonte: António Branco (Jazz.pt/ Ponto de Escuta)
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