“Last Desert” é o quinto disco em nome próprio do
guitarrista e compositor Liberty Ellman (n. 1971), quarto na cada vez mais
inescapável Pi Recordings, sucedendo
ao excelente “Radiate”, de 2015. Antes, já nos havia oferecido “Orthodoxy”
(Noir, 1997), “Tactiles” (Pi, 2002) e “Ophiuchus Butterfly” (Pi, 2006). Nos
anos 1990, Ellman esteve ligado, em São Francisco, ao braço californiano do
movimento M-Base de Steve Coleman
O guitarrista tem vindo a inscrever a sua marca em projetos
próprios e, porventura sobretudo, alheios, entre os quais há a destacar a sua
longeva associação aos Zooid do
visionário Henry Threadgill. Tem integrado, entre outras formações, a Village
Rhythms Band e o Universal Jazz Ensemble de Joe Lovano, a Go: Organic Guitar
Orchestra de Adam Rudolph e os Snowy Egret de Myra Melford. Avultam também as
colaborações com Vijay Iyer, Nicole Mitchell, Rudresh Mahanthappa, Greg Osby,
Ches Smith e Jason Robinson, só para mencionar algumas.
A abordagem pouco convencional de Ellman, burilada desde há
mais de um quarto de século, exibe criatividade e intrepidez no desenvolvimento
de melodias e na criação de texturas. Enquanto compositor, continua a revelar
uma pena que tem tanto de sóbria e rigorosa como de espaçosa e dialogante com o
silêncio. Outro aspeto distintivo é a forma como astutamente se esquiva a
protagonismos excessivos (habituais em praticantes do seu instrumento),
preferindo assumir-se como organizador do xadrez tímbrico que tem à sua
disposição.
Neste novo registo, Ellman adota a máxima de que em equipe
que ganha não se mexe. O sexteto estelar que lidera assume a mesma configuração
instrumental e os mesmos intervenientes: à guitarra juntam-se o imperial
saxofone alto de Steve Lehman, o trompete luminoso de Jonathan Finlayson, a
tuba de Jose Davila e uma das mais excelsas duplas rítmicas do nosso tempo, a
que formam o contrabaixista Stephan Crump e o baterista Damion Reid. É desta
intrincada teia de relações que emana o lado “comunitário” da música que se
escuta.
“Last Desert” foi inspirado pela ultramaratona anual
conhecida como 4 Desertos, que percorre alguns trilhos extremamente duros nos
desertos de Atacama no Chile, de Gobi na China, do Saara no Egito e no “deserto
branco” da Antártida. Mais do que heroísmo, o guitarrista busca encontrar esperança
na tenacidade dos participantes.
A peça de abertura, “The Sip”, tem um início sereno,
reflexivo, com o dedilhado límpido da guitarra do líder a articular-se
tranquilamente com os três sopros, que ora parecem distantes, ora intimamente
próximos, com solos concisos e de grande beleza (Lehman e Finlayson revelam-nos
o seu lado mais contemplativo, enquanto Davila sopra notas telúricas).
Segue-se a suíte que dá título ao disco – diria que o seu
centro de gravidade –, dividida em duas partes, ambas com um estrutura aberta e
intervenções sintéticas que coalescem aqui e ali. No plano individual sobressai
Finlayson que conduz melodicamente, com Ellman a ruminar de forma discreta. A
entrada em cena de Crump e Reid (notáveis na atenção aos detalhes) cria a base
para o guitarrista migrar para o centro criativo da peça.
Na segunda parte é o saxofone assertivo de Lehman que começa
por tomar conta das operações, desafiado pela guitarra, com a dupla rítmica a
assegurar papéis muito mais relevantes do que os de mero suporte. Depois é a
tuba (solo notável) e de novo o trompete de Finlayson a marcar pontos. Mais
garrido é o arranjo de “Rubber Flowers”, com os instrumentos a funcionarem como
plataforma que serve de rampa de lançamento para solos vários, com particular
realce para os do saxofonista e do líder, que mais uma vez demonstram uma
capacidade empática decisiva. Os uníssonos que conduzem ao final são
deliciosos.
“Portals” traz-nos uma atmosfera camerística que, estando
presente em muitos outros momentos, alcança aqui a excelência. Ellman ergue a
coluna vertebral com solidez e eficácia. O contrabaixista tem uma vitrine como
não tivera até aqui e o baterista volta a ser exemplar na delicadeza com que
tricota uma impecável base rítmica. “Doppler” exibe a formação em dinâmicas
judiciosas e um balanço “groovy”, com pequenos apontamentos solísticos que
desembocam num delicioso “tutti”. A fechar a jornada, “Liquid” traz uma
tranquilidade organizada que jamais segue linha óbvia, até que um belo solo de
Ellman conduz à melodia final.
“Last Desert” é um disco com momentos muito interessantes e
capazes de recompensar incrementalmente a cada audição.
Faixas
1.The
Sip 05:16
2.Last
Desert I 07:30
3.Last
Desert II 07:39
4.Rubber
Flowers 05:56
5.Portals 08:34
6.Doppler 04:50
7.Liquid 05:17
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