Quando, em 1809, esteve uma dezena de dias em Portugal, em
plena invasão francesa e com a família real exilada no Brasil, Lord Byron não
se encantou grandemente pelo caráter das gentes lusas. O que verdadeiramente o
tomou de amores foi a bela e verdejante Sintra, a que se referiu como «glorioso
Éden».
Foi também o que aconteceu com o guitarrista e compositor
Ricardo Pinheiro (n. 1977), que no seu novo disco, “Caruma”, se deixou inspirar
pela relação que estabeleceu com a beleza das paisagens sintrenses. «Tenho a
sorte de viver no campo, no meio de um pinhal. A minha relação com a natureza é
uma relação próxima e diária e é dela que nasce grande parte da minha energia
criativa. Contemplar os pinheiros, a caruma, o mar e todos os restantes
elementos que me rodeiam faz parte da minha rotina e achei que este era o
momento certo para mostrar isso em forma de música», diz o músico à jazz.pt.
Pinheiro tem vindo a erigir um notável corpo de trabalho,
não apenas enquanto instrumentista e compositor, mas também na qualidade de
musicólogo e docente. Para além de registos importantes em nome próprio e
enquanto membro de outras formações, tem demonstrado capacidade para se mover
em diferentes áreas, sempre com o jazz como pilar central. Já este ano
ofereceu-nos a estreia discográfica do projeto LAB, com o baixista Miguel
Amado, o saxofonista Tomás Marques e o baterista Diogo Alexandre.
“Caruma” – que assinala a estreia do guitarrista no catálogo
da Inner Circle Music, editora
liderada por Greg Osby – destoa da anterior discografia do músico, tanto em
termos de instrumentação, como de conceito e processo de composição. Integra
oito peças para voz e guitarra, partilhadas equitativamente com duas figuras
idiossincráticas: o germano-americano Theo Bleckmann e a brasileira Mônica
Salmaso. «Achei que seria interessante construir estas canções e ambientes com
uma voz masculina e uma voz feminina. Foram a minha primeira escolha. Fez-me
sentido juntar o caráter mais improvisativo e de construção de ambientes do
Theo com a capacidade fenomenal da Mônica para comunicar a mensagem das
canções. Contactei-os, falei-lhes do conceito, mostrei-lhes a música, e eles
aceitaram prontamente participar no projeto».
Bleckmann está no topo dos mais relevantes vocalistas da
atualidade, sendo dono de uma profunda sensibilidade musical que transmite
através da exploração das diferentes tonalidades, cores e dimensões da voz
humana, a que frequente e consequentemente acopla efeitos eletrônicos. Eclético
nas escolhas e nas abordagens, já trabalhou material de gente tão díspar como
Charles Ives, Kate Bush, John Hollenbeck, John Zorn, Michael Tilson Thomas ou
Laurie Anderson, apenas para referenciar alguns. Também a paulista Mônica
Salmaso tem um percurso particularmente interessante, combinando um canto de
matriz erudita com a música popular do seu país. Do seu pecúlio discográfico
avultam títulos como “Afro-Sambas”, a partir da música de Baden Powell e
Vinicius de Moraes, “Trampolim”, “Voadeira” ou “Noites de Gala”, no qual
trabalhou o cancioneiro de Chico Buarque.
Não espanta, pois, que este seja um álbum feito de canções
de recorte melancólico, devedoras dessa atmosfera mágica e em absoluto
contraste com o bulício avassalador da vida contemporânea, ainda que refreado
pela insidiosa pandemia (nota para a bela capa desenhada por Miguel Mira). «O
disco foi composto neste período conturbado, em minha casa, em recolhimento.
Senti a necessidade de mandar cá para fora, através da composição e da
guitarra, toda uma panóplia de sentimentos que me invadiam e que são produto de
um processo de introspeção e de questionamento sobre a nossa existência
enquanto civilização. Esta pandemia fez-me refletir muito sobre o ser humano e
o mundo que nos rodeia, sobre o quão pequenos somos, mas, ao mesmo tempo, o quão
tóxicos podemos ser para a natureza e para os restantes seres humanos»,
acrescenta Ricardo Pinheiro.
Todas as composições de “Caruma” têm a melodia como pedra
angular para o desenvolvimento criativo, servindo como principal guia estético
e narrativo da música. O álbum abre logo com um dos seus melhores momentos,
“Gratitude”, peça belíssima, feita de vozes assombradas em vários registos e de
uma guitarra com efeitos discretos a sublinhar o motivo melódico base e suas
variações. “Canção de Embalar a Isabel”, em formato de “standard”, que já
conhecíamos do disco do projeto LAB, mantém a toada encantatória, com o
dedilhar suave das cordas a que se junta a textura aveludada da voz de Salmaso.
A fazer jus ao título, “Mar Picado”, outra peça repescada de LAB, tem “riffs”
agitados, efeitos policamada e uníssonos voz-guitarra. Quem conhece a costa de
Sintra reconhecê-la-á aqui.
“Quando Não Estiveres Aqui” é uma comovente canção de
despedida dedicada ao avô, alguém que muito o marcou. A paisagem sonora
intimista de “Ausência” muito deve ao canto diáfano de Bleckmann. O tema
título, com Pinheiro em guitarra acústica, traz de novo a voz quente da
brasileira, revisitando a ligação entre o jazz, a MPB e a música portuguesa.
Dois dos melhores temas estão guardados para o fim: “Sesta”, construção
simbiótica entre a voz de Bleckmann e a guitarra, e “Resina”, com a sua melodia
balsâmica de largo espectro.
Eis um disco sereno e reconfortante, que nos afaga a alma em
tempos estranhos.
Faixas: Gratitude;
Cancão de Embalar A Isabel; Mar Picado; Quando Não Estiveres Aqui; Ausência;
Caruma; Sesta; Resina.
Músicos: Ricardo Pinheiro: guitarra; Theo Bleckmann: voz;
Monica Salmaso: voz;Ricardo Pinheiro: efeitos, loops; Theo Bleckmann: efeitos, loops;
Mônica Salmaso: efeitos.
Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo
abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=KqYWvCm2LcQ
Fonte: António Branco (jazz.pt/ Ponto de Escuta)
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