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domingo, 25 de abril de 2021

RICARDO PINHEIRO WITH THEO BLECKMANN AND MÔNICA SALMASO – CARUMA (Inner Circle Music)

Quando, em 1809, esteve uma dezena de dias em Portugal, em plena invasão francesa e com a família real exilada no Brasil, Lord Byron não se encantou grandemente pelo caráter das gentes lusas. O que verdadeiramente o tomou de amores foi a bela e verdejante Sintra, a que se referiu como «glorioso Éden».

Foi também o que aconteceu com o guitarrista e compositor Ricardo Pinheiro (n. 1977), que no seu novo disco, “Caruma”, se deixou inspirar pela relação que estabeleceu com a beleza das paisagens sintrenses. «Tenho a sorte de viver no campo, no meio de um pinhal. A minha relação com a natureza é uma relação próxima e diária e é dela que nasce grande parte da minha energia criativa. Contemplar os pinheiros, a caruma, o mar e todos os restantes elementos que me rodeiam faz parte da minha rotina e achei que este era o momento certo para mostrar isso em forma de música», diz o músico à jazz.pt.

Pinheiro tem vindo a erigir um notável corpo de trabalho, não apenas enquanto instrumentista e compositor, mas também na qualidade de musicólogo e docente. Para além de registos importantes em nome próprio e enquanto membro de outras formações, tem demonstrado capacidade para se mover em diferentes áreas, sempre com o jazz como pilar central. Já este ano ofereceu-nos a estreia discográfica do projeto LAB, com o baixista Miguel Amado, o saxofonista Tomás Marques e o baterista Diogo Alexandre.

“Caruma” – que assinala a estreia do guitarrista no catálogo da Inner Circle Music, editora liderada por Greg Osby – destoa da anterior discografia do músico, tanto em termos de instrumentação, como de conceito e processo de composição. Integra oito peças para voz e guitarra, partilhadas equitativamente com duas figuras idiossincráticas: o germano-americano Theo Bleckmann e a brasileira Mônica Salmaso. «Achei que seria interessante construir estas canções e ambientes com uma voz masculina e uma voz feminina. Foram a minha primeira escolha. Fez-me sentido juntar o caráter mais improvisativo e de construção de ambientes do Theo com a capacidade fenomenal da Mônica para comunicar a mensagem das canções. Contactei-os, falei-lhes do conceito, mostrei-lhes a música, e eles aceitaram prontamente participar no projeto».

Bleckmann está no topo dos mais relevantes vocalistas da atualidade, sendo dono de uma profunda sensibilidade musical que transmite através da exploração das diferentes tonalidades, cores e dimensões da voz humana, a que frequente e consequentemente acopla efeitos eletrônicos. Eclético nas escolhas e nas abordagens, já trabalhou material de gente tão díspar como Charles Ives, Kate Bush, John Hollenbeck, John Zorn, Michael Tilson Thomas ou Laurie Anderson, apenas para referenciar alguns. Também a paulista Mônica Salmaso tem um percurso particularmente interessante, combinando um canto de matriz erudita com a música popular do seu país. Do seu pecúlio discográfico avultam títulos como “Afro-Sambas”, a partir da música de Baden Powell e Vinicius de Moraes, “Trampolim”, “Voadeira” ou “Noites de Gala”, no qual trabalhou o cancioneiro de Chico Buarque.

Não espanta, pois, que este seja um álbum feito de canções de recorte melancólico, devedoras dessa atmosfera mágica e em absoluto contraste com o bulício avassalador da vida contemporânea, ainda que refreado pela insidiosa pandemia (nota para a bela capa desenhada por Miguel Mira). «O disco foi composto neste período conturbado, em minha casa, em recolhimento. Senti a necessidade de mandar cá para fora, através da composição e da guitarra, toda uma panóplia de sentimentos que me invadiam e que são produto de um processo de introspeção e de questionamento sobre a nossa existência enquanto civilização. Esta pandemia fez-me refletir muito sobre o ser humano e o mundo que nos rodeia, sobre o quão pequenos somos, mas, ao mesmo tempo, o quão tóxicos podemos ser para a natureza e para os restantes seres humanos», acrescenta Ricardo Pinheiro.

Todas as composições de “Caruma” têm a melodia como pedra angular para o desenvolvimento criativo, servindo como principal guia estético e narrativo da música. O álbum abre logo com um dos seus melhores momentos, “Gratitude”, peça belíssima, feita de vozes assombradas em vários registos e de uma guitarra com efeitos discretos a sublinhar o motivo melódico base e suas variações. “Canção de Embalar a Isabel”, em formato de “standard”, que já conhecíamos do disco do projeto LAB, mantém a toada encantatória, com o dedilhar suave das cordas a que se junta a textura aveludada da voz de Salmaso. A fazer jus ao título, “Mar Picado”, outra peça repescada de LAB, tem “riffs” agitados, efeitos policamada e uníssonos voz-guitarra. Quem conhece a costa de Sintra reconhecê-la-á aqui.

“Quando Não Estiveres Aqui” é uma comovente canção de despedida dedicada ao avô, alguém que muito o marcou. A paisagem sonora intimista de “Ausência” muito deve ao canto diáfano de Bleckmann. O tema título, com Pinheiro em guitarra acústica, traz de novo a voz quente da brasileira, revisitando a ligação entre o jazz, a MPB e a música portuguesa. Dois dos melhores temas estão guardados para o fim: “Sesta”, construção simbiótica entre a voz de Bleckmann e a guitarra, e “Resina”, com a sua melodia balsâmica de largo espectro.

Eis um disco sereno e reconfortante, que nos afaga a alma em tempos estranhos.

 Faixas: Gratitude; Cancão de Embalar A Isabel; Mar Picado; Quando Não Estiveres Aqui; Ausência; Caruma; Sesta; Resina.

Músicos: Ricardo Pinheiro: guitarra; Theo Bleckmann: voz; Monica Salmaso: voz;Ricardo Pinheiro: efeitos, loops; Theo Bleckmann: efeitos, loops; Mônica Salmaso: efeitos.

Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=KqYWvCm2LcQ

Fonte: António Branco (jazz.pt/ Ponto de Escuta)

 

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