“Influencers”.
No presente esta palavra está associada aos que conseguem ter um grande
número de seguidores nas redes sociais e fazer com que eles gostem / consumam
aquilo que eles recomendam. Antes de terem chegado as redes sociais geridas
pela inteligência artificial com o objetivo de vender, já existiam redes
sociais e “influencers”, mas a lógica era completamente diferente. Muhal
Richard Abrams criou uma rede social e influenciou uma geração de músicos.
Alguns músicos são importantes não só pelo que inventaram e tocaram, mas também
porque fizeram os outros inventar e tocar, e Muhal Richard Abrams é claramente
um dos que estaria no topo da escala dos influenciadores, se a houvesse. A
cidade de Chicago deve-lhe o ter construído uma comunidade musical jazzística
negra e reconheceu-o declarando o dia 11 de Abril como o Muhal Richard Abrams
Day.
O pianista e compositor faleceu a 29 de Outubro de 2017, precisamente
há três anos. Fundou a AACM (Association for the Advancement of Creative
Musicians) e manteve-se na vanguarda da cena musical jazzística, criando música
original e influenciando vários músicos notáveis, dando-lhes as condições
para que aprendessem, praticassem, tocassem e existissem como músicos. A
associação, que tinha uma forma de organização quase tribal, contestou o
individualismo do solista de jazz, o isolamento que favorece a falta de
solidariedade e propôs uma visão coletivista, criando uma linguagem antissistema
(“jazz-off”, como lhe chamou Jorge Lima Barreto). Abrams é um dos “gigantes” do
jazz, uma figura catalisadora e um músico ainda hoje revolucionário.
A sua escrita para grandes grupos é aquela em que podemos
ouvir o melhor das suas ideias musicais, políticas e sociais. Também por isso,
recebemos com entusiasmo esta nova edição com música de Muhal Richard Abrams
tocada pela The Warriors of the Wonderful Sound, da Filadélfia. O disco começa
por impressionar pela qualidade do grupo: como é que se consegue manter - de
2001 até 2020 - uma “big band” a tocar? Um mistério insondável e estes Warriors
não são propriamente uma orquestra de rádio alemã topa-tudo: inclui Marty
Ehrlich, Steve Swell, Chad Taylor, Graham Haynes e Michael Formanek, entre
outros. O tempo e o esforço para compor e fazer arranjos para 17 músicos de
qualidade, capazes de cumprir pautas com exatidão e de improvisar com
competência, pagar-lhes pelo seu trabalho e encontrar agendas compatíveis
deveria ser, em princípio, impraticável... Ainda não pusemos o disco a rodar e
já estamos em sentido com tantas impossibilidades juntas.
Vamos então à música que o saxofonista Bobby Zankel, o
organizador, montou para este álbum. Em 2012, Zankel, sabendo que o compositor
conhecia o trabalho que os Warriors tinham feito com as peças de Julius
Hemphill, Rudresh Mahanthappa e Steve Coleman, encomendaram-lhe uma peça que
viria a ser “SoundPath”, com 16 partes. Muhal assistiu aos primeiros ensaios. A
obra foi tocada apenas duas vezes em público: na “première” em 2012 e depois em
Outubro de 2018. Só então - alguns meses após o falecimento de Abrams - foi
possível encontrar uma segunda oportunidade de a apresentar e gravar. Zankel
convidou Marty Ehrlich (que trabalhou em estreita colaboração com Abrams) para
maestro e alguns instrumentistas extra familiarizados com as visões musicais do
mestre. O concerto recebeu duas ovações de pé e os 17 músicos foram para o estúdio
no dia seguinte. Este é o documento dessa história. Se considerarmos que o
primeiro colectivo para o qual Abrams compôs foi a Experimental Band de 1961,
estamos a ouvir 50 anos de experiência e saber musicais.
A música é lindíssima. Os movimentos coletivos e os
individuais estão descomunalmente bem distribuídos e seguem toda uma lógica. Os
metais ondulam como plasticina a ser moldada em frases encantadoras e a bateria
e o contrabaixo mantêm o motor ligado e a música em fuga: Chad Taylor e Michael
Formanek são fundamentais! São eles que, com o piano de Tom Lawton, seguram um
exército de 15 sopros, com seis saxofones, quatro trompetes e quatro trombones.
Contudo, nunca sentimos que este é um disco de metais. O grupo toca com uma delicadeza
ellingtoniana nas partes coletivas, onde posso jurar que ouço blues sem nunca
conseguir detectar uma frase que o justifique. Sente-se a beleza do coletivo
quando o grupo avança em conjunto. A tensão entre forma e liberdade é
magnificamente planejada – são 50 anos – e lindíssima.
Todos nós que ouvimos jazz sabemos que a Europa desde cedo
acolheu “a grande música negra” e a AACM também reverberou fortemente por
cá. E a Europa não se limitou a ouvir e
tocar: também gravou e editou, e se todos admiramos o trabalho das americanas
Blue Note, Impulse ou Fontana, não deixamos de nos surpreender com os discos da
ECM, da Hat, da Actuel, da Black Saint, da Intakt e da Clean Feed. Muito do
melhor que a América tem para oferecer no jazz foi editado em “labels” europeus.
Se há uns anos dissessem aos pioneiros da divulgação do jazz em Portugal – Luís
Villas-Boas, Jorge Lima Barreto, Manuel Jorge Veloso, por exemplo - que o nosso
país daria cartas na edição do jazz mundial, certamente não acreditariam. Mas o
número de músicos de jazz americanos da primeira divisão que já editaram na
portuguesa Clean Feed é impressionante. A probabilidade de isto suceder era
igual à da rainha da pop achar que Lisboa era um bom local para se mudar e
criar os filhos ou de vermos Bruce Springsteen a cortar o cabelo num salão do
Príncipe Real. Mas aconteceu. O disco faz justiça – da capa à gravação – a esta
música notável que se ouve vezes sem conta e sempre com novas descobertas.
Músicos: Ehrlich (condução, saxofone alto); Bobby Zankel,
Julian Pressley (saxofone alto); Robert DeBellis (saxofones tenor e soprano);
Hafez Modirzadeh (saxofone tenor); Mark Allen (saxofone barítono); Dave Ballou,
Dwayne Eubanks, Josh Evans (trompete); Graham Haynes (cornet); Steve Swell,
Michael Dessen, Alfred Patterson (trombone); Jose Davilla (trombone baixo); Tom
Lawton (piano); Michael Formanek (contrabaixo); Chad Taylor (bateria)
Nota: Este álbum foi considerado, pela DownBeat, como um dos
melhores lançados em 2021 com a classificação de 4 estrelas.
Fonte : Gonçalo Falcão (Jazz.pt)
Nenhum comentário:
Postar um comentário