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quinta-feira, 2 de junho de 2022

THE WARRIORS OF THE WONDERFUL SOUND – SOUND PATH (Clean Feed)

“Influencers”. No presente esta palavra está associada aos que conseguem ter um grande número de seguidores nas redes sociais e fazer com que eles gostem / consumam aquilo que eles recomendam. Antes de terem chegado as redes sociais geridas pela inteligência artificial com o objetivo de vender, já existiam redes sociais e “influencers”, mas a lógica era completamente diferente. Muhal Richard Abrams criou uma rede social e influenciou uma geração de músicos. Alguns músicos são importantes não só pelo que inventaram e tocaram, mas também porque fizeram os outros inventar e tocar, e Muhal Richard Abrams é claramente um dos que estaria no topo da escala dos influenciadores, se a houvesse. A cidade de Chicago deve-lhe o ter construído uma comunidade musical jazzística negra e reconheceu-o declarando o dia 11 de Abril como o Muhal Richard Abrams Day.

O pianista e compositor faleceu a 29 de Outubro de 2017, precisamente há três anos. Fundou a AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians) e manteve-se na vanguarda da cena musical jazzística, criando música original e influenciando vários ​​músicos notáveis, dando-lhes as condições para que aprendessem, praticassem, tocassem e existissem como músicos. A associação, que tinha uma forma de organização quase tribal, contestou o individualismo do solista de jazz, o isolamento que favorece a falta de solidariedade e propôs uma visão coletivista, criando uma linguagem antissistema (“jazz-off”, como lhe chamou Jorge Lima Barreto). Abrams é um dos “gigantes” do jazz, uma figura catalisadora e um músico ainda hoje revolucionário.

A sua escrita para grandes grupos é aquela em que podemos ouvir o melhor das suas ideias musicais, políticas e sociais. Também por isso, recebemos com entusiasmo esta nova edição com música de Muhal Richard Abrams tocada pela The Warriors of the Wonderful Sound, da Filadélfia. O disco começa por impressionar pela qualidade do grupo: como é que se consegue manter - de 2001 até 2020 - uma “big band” a tocar? Um mistério insondável e estes Warriors não são propriamente uma orquestra de rádio alemã topa-tudo: inclui Marty Ehrlich, Steve Swell, Chad Taylor, Graham Haynes e Michael Formanek, entre outros. O tempo e o esforço para compor e fazer arranjos para 17 músicos de qualidade, capazes de cumprir pautas com exatidão e de improvisar com competência, pagar-lhes pelo seu trabalho e encontrar agendas compatíveis deveria ser, em princípio, impraticável... Ainda não pusemos o disco a rodar e já estamos em sentido com tantas impossibilidades juntas.

Vamos então à música que o saxofonista Bobby Zankel, o organizador, montou para este álbum. Em 2012, Zankel, sabendo que o compositor conhecia o trabalho que os Warriors tinham feito com as peças de Julius Hemphill, Rudresh Mahanthappa e Steve Coleman, encomendaram-lhe uma peça que viria a ser “SoundPath”, com 16 partes. Muhal assistiu aos primeiros ensaios. A obra foi tocada apenas duas vezes em público: na “première” em 2012 e depois em Outubro de 2018. Só então - alguns meses após o falecimento de Abrams - foi possível encontrar uma segunda oportunidade de a apresentar e gravar. Zankel convidou Marty Ehrlich (que trabalhou em estreita colaboração com Abrams) para maestro e alguns instrumentistas extra familiarizados com as visões musicais do mestre. O concerto recebeu duas ovações de pé e os 17 músicos foram para o estúdio no dia seguinte. Este é o documento dessa história. Se considerarmos que o primeiro colectivo para o qual Abrams compôs foi a Experimental Band de 1961, estamos a ouvir 50 anos de experiência e saber musicais.

 A orquestração, organizada em massas sonoras moduladas, evocam a ideia de viagem espacial criada por Sun Ra. São interrompidas por violentas improvisações de grupos dentro do ensemble maior, levando o jazz para a complexidade dos diálogos entre vários músicos. Ouvimos de Duke Ellington ao Willem Breuker Kollektieff, passando por Sun Ra, conscientes da sua ideia de que o avanço da música só pode acontecer se aprendermos com as lições da história (não com a história ou com as formas da história, mas com as lições da história).

A música é lindíssima. Os movimentos coletivos e os individuais estão descomunalmente bem distribuídos e seguem toda uma lógica. Os metais ondulam como plasticina a ser moldada em frases encantadoras e a bateria e o contrabaixo mantêm o motor ligado e a música em fuga: Chad Taylor e Michael Formanek são fundamentais! São eles que, com o piano de Tom Lawton, seguram um exército de 15 sopros, com seis saxofones, quatro trompetes e quatro trombones. Contudo, nunca sentimos que este é um disco de metais. O grupo toca com uma delicadeza ellingtoniana nas partes coletivas, onde posso jurar que ouço blues sem nunca conseguir detectar uma frase que o justifique. Sente-se a beleza do coletivo quando o grupo avança em conjunto. A tensão entre forma e liberdade é magnificamente planejada – são 50 anos – e lindíssima.

Todos nós que ouvimos jazz sabemos que a Europa desde cedo acolheu “a grande música negra” e a AACM também reverberou fortemente por cá.  E a Europa não se limitou a ouvir e tocar: também gravou e editou, e se todos admiramos o trabalho das americanas Blue Note, Impulse ou Fontana, não deixamos de nos surpreender com os discos da ECM, da Hat, da Actuel, da Black Saint, da Intakt e da Clean Feed. Muito do melhor que a América tem para oferecer no jazz foi editado em “labels” europeus. Se há uns anos dissessem aos pioneiros da divulgação do jazz em Portugal – Luís Villas-Boas, Jorge Lima Barreto, Manuel Jorge Veloso, por exemplo - que o nosso país daria cartas na edição do jazz mundial, certamente não acreditariam. Mas o número de músicos de jazz americanos da primeira divisão que já editaram na portuguesa Clean Feed é impressionante. A probabilidade de isto suceder era igual à da rainha da pop achar que Lisboa era um bom local para se mudar e criar os filhos ou de vermos Bruce Springsteen a cortar o cabelo num salão do Príncipe Real. Mas aconteceu. O disco faz justiça – da capa à gravação – a esta música notável que se ouve vezes sem conta e sempre com novas descobertas.

Músicos: Ehrlich (condução, saxofone alto); Bobby Zankel, Julian Pressley (saxofone alto); Robert DeBellis (saxofones tenor e soprano); Hafez Modirzadeh (saxofone tenor); Mark Allen (saxofone barítono); Dave Ballou, Dwayne Eubanks, Josh Evans (trompete); Graham Haynes (cornet); Steve Swell, Michael Dessen, Alfred Patterson (trombone); Jose Davilla (trombone baixo); Tom Lawton (piano); Michael Formanek (contrabaixo); Chad Taylor (bateria)

Nota: Este álbum foi considerado, pela DownBeat, como um dos melhores lançados em 2021 com a classificação de 4 estrelas.

 Fonte : Gonçalo Falcão (Jazz.pt)

 

 

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