Depois de um disco muito bem sucedido – o quinto na carreira
de Akinmusire - em que o trompetista criou uma mistura entre o hip-hop de
Kendrik Lamar e o jazz (estamos
conscientes de que chamar a música de Lamar hip-hop é uma simplificação; o
próprio Lamar já o cruzou com o jazz ), seria tentador repetir a fórmula bem
sucedida (esteve presente nas listas dos melhores do ano nas revistas Downbeat,
Jazz Times, Jazziz, NPR Music, entre outras). Contudo, Akinmusire resolveu
recuar, avançando.
O novo disco, na Blue Note (com uma capa paupérrima: como é
que o “label” não sente a responsabilidade de manter a herança de Francis Wolff
e Reid Miles?) é mais contido e clássico nas formações (quartetos, quintetos,
solo) e sem as batidas da moda. Vai-se o hip-hop, fica a música. E que grande
música! Ouvimos Ambrose num contexto mais clássico e dá vontade de ouvir mais.
Descobrimos que, por baixo do pop-jazz de “Origami Harvest”, há um músico de
enorme qualidade que gostávamos de ouvir ao vivo em trio num clube pequeno.
Repare-se que, normalmente, é ao contrário: quando retiramos
Kamasi, Nubya & etc. do estúdio e das perfeitas produções digitais e os
ouvimos ao vivo em trio ou quarteto a coisa descarrila para a banalidade. Neste
caso é ao contrário: parece que estamos a efetuar um polimento em uma pátina,
vernizes e “glitter” e a descobrir uma obra notável feita com materiais comuns.
Ambrose tem um excelente som de trompete, tem ótimas ideias,
escreve muito boa música e toca muito bem. Sabe de jazz e de outras músicas
(impossível não pensar que conhece o trabalho de Feldman ou Scelsi ao ouvirmos
“Hooded Procession (Read the Names Outloud)”). Sola bem e sabe escolher bons
músicos para o acompanhar. Neste disco, sem a parafernália rítmica, sem o
quarteto de cordas, sem “rappers”, tudo fica mais claro e tudo brilha.
Começa com uma frase incrível no trompete. Ficamos presos. A
frase é simples e complexa ao mesmo tempo e abre o espaço para uma entrada com
força do grupo. O núcleo duro dos músicos que participam no disco – constituído
por Sam Harris ao piano, Harish Raghavan nos baixos e Justin Brown na bateria –
forma com o trompetista um quarteto muito sólido (tocaram juntos, em 2016, no
Guimarães Jazz), ao qual se adiciona, pontualmente, voz e percussão. Entramos
numa linguagem de improvisação total que preambula a pauta. A bateria hiperativa
e o contrabaixo ocupam um espaço enorme. Em seguida, o piano e o trompete
atiram-se sem medo para esta voragem de rapidez e intensidade. Akinmusire tem
um enorme controle da dinâmica e com ela modela também os movimentos do
quarteto. Tem ainda um som limpo, quase sem vibrato.
Não é o disco que esperávamos da Blue Note, mas é um grande
disco, com grande música. Ficamos rendidos aos 5 minutos do primeiro tema. O
remanescente não nos desilude, muito pelo contrário. O percussionista / cantor
usa o Yorubá, uma língua do Noroeste da Nigéria que foi gravada pela primeira
vez no final dos anos 1950.
Segue-se uma canção lenta, exposta em uníssimo pelo piano e
pelo trompete. Aqui vemos com detalhe a técnica rigorosa, mas ao mesmo tempo
expressiva e intensa, de Akinmusire. O quarteto é excelente e o trompetista
acumula essa qualidade de saber identificar os músicos que importam e que
trazem não só qualidade como também uma voz original. Que boa, a bateria de
Justin Brown! A facilidade com que o grupo acelera ou sai e entra na escrita é
notável.
“An Interlude (That Get’ More Intense) ” começa com um longo
solo de contrabaixo. O som cheio e preciso de Harish Raghavan (que não é um
calouro, já tem uma carreira interessante) confirma o que antes lhe tínhamos
ouvido. Os quatro usam uma paleta muito alargada de soluções técnicas,
incorporando as “extensivas” trazidas pela improvisação total para o léxico dos
instrumentos. Em “Reset (Quiet Victories & Celebrated Defeats)” o trompete
transparente apresenta uma frase longa e lenta. Mas não é o virtuosismo técnico
que permite aquela clareza sonora que mais nos impressiona, e sim a beleza da
melodia e a originalidade das soluções.
Ambrose já toca assim desde “When the Heart Emerges
Glistening”, que é de 2010 e saiu na Blue Note. Mas foi preciso o “Origami
Harvest”(Nota :
Resenha publicada no blog da Sojazz em 15/04/2020) para o obrigar a
ouvir e para o catapultar para uma escala planetária. Ainda bem que aconteceu.
O predecessor continua a ser um disco que se ouve com imenso prazer, mas este
“On the Tender Spot of Every Calloused Moment” tem muito mais quilates e é de
enorme qualidade, inteligente, intenso, muito bem tocado e emocionante
(incluindo a excelente organização dos ambientes e das emoções na sequência dos
11 temas do disco). Um
ventilador numa época que precisa de oxigenação.
Faixas: Tide
of Hyacinth; Yessss; Cynical Sideliners; Mr. Roscoe (Consider The
Simultaneous); An Interlude (That Get' More Intense); Reset (Quiet Victories
& Celebrated Defeats); Moon (The Return Amplifies The Unity); Roy; Blues
(We Measure The Heart With A Fist); Hooded Procession (Read The Names Out
Loud).
Músicos: Ambrose Akinmusire (composição, Fender Rhodes,
trompete); Genevieve Artadi (voz); Sam Harris (piano, sintetizador); Harish
Raghavan (baixo elétrico, contrabaixo); Justin Brown (bateria); Jesús Diaz
(percussão, voz).
Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo
abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=IkE36ayEEs8
Fonte: Gonçalo Falcão (jazz.pt)
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