“Seismic Shift” é o primeiro, e notabilíssimo, álbum em trio
do pianista britânico John Escreet, com Eric Revis no contrabaixo e Damion Reid
na bateria. Tem chancela da londrina Whirlwind. As ondas já foram captadas pela
jazz.pt.
O corpo de trabalho que o pianista e compositor John Escreet
(n. 1984) tem vindo a erigir não pode deixar ninguém indiferente. “Seismic
Shift”, acabado de sair na Whirlwind, é o seu nono álbum na condição de líder e
o primeiro à frente de um trio, e isto não é desperdício. É o próprio quem nos
esclarece em nota publicada na sua página no Bandcamp: «Adquiri um piano de
cauda realmente bonito. Todo este tempo a tocar neste belo instrumento num
espaço de trabalho dedicado significou que essencialmente me tornei um pianista
muito melhor.» O novo álbum foi desenvolvido neste quadro: «É por isso que
decidi gravar exclusivamente com o trio: finalmente senti-me forte o suficiente
para chegar-me à frente e liderar este grupo», acrescenta.
Um mergulho no seu percurso (e não apenas como pianista de
David Binney ou Antonio Sanchez), no qual avulta uma notável capacidade de
interação com quem musicalmente o rodeia, nas diferentes configurações
instrumentais, permite concluir como era importante preencher esta lacuna e
perceber como entende esta peculiar geometria sônica. Escreet integra o pelotão
dos mais interessantes pianistas dos nossos atribulados dias, ao lado de
ilustres como Jason Moran, Matthew Shipp, Craig Taborn, Kris Davis, Ethan
Iverson, Marilyn Crispell ou Kaja Draksler. A seu lado no novo disco estão
outros dois nomes com trajetórias mais do que reconhecidas, o contrabaixista
Eric Revis (companheiro de Branford Marsalis, Jeff Tain Watts, Andrew Cyrille e
Peter Brötzmann), há muito ligado à editora Clean Feed em discos como “City of
Asylum” (2013), “In Memory of Things Yet Seen” (2014), “Crowded Solitures”
(2016) ou “Sing Me Some Cry” (2017)) e o baterista Damion Reid (Steve Lehman,
Liberty Ellman, Robert Glasper), eles próprios líderes dos seus projetos e
formações e detentores de abordagens muitos marcadas e que formam uma dupla
rítmica de primeira linha.
Nascido no Reino Unido e baseado em Los Angeles desde o pico
da pandemia de covid-19, depois de muitos anos a viver no Brooklyn, Nova
Iorque, Escreet teve ensejo de tocar pela primeira vez com contrabaixista e
baterista num dos primeiros concertos pós-confinamentos, em 2021, e logo
descobriram uma sólida base para entendimentos, a partir da qual desenvolveram
uma linguagem partilhada e que agora dá os seus primeiros frutos. Os três têm uma
presença muito forte na cena da Big Apple, que lhes permitiu partir da tradição
para explorar novos caminhos sem abdicar das premissas fundamentais, nem deixar
que elas obnubilem o desejo de avançar.
Para a música do trio confluem elementos que vão de
harmonias pós-bop, a traços camerísticos e a terrenos mais avançados marcados
por indagações harmônicas, melódicas e rítmicas, adentrando-se amiúde na
atonalidade, dinamitando catalogações estéreis. Em entrevista a Filipe Freitas,
da revista Jazz Trail, em 2018, Escreet revelou que as influências lhe chegam
de todo o lado: «Tenho tantas influências diferentes de todo o espetro musical,
que tento destilar na minha própria visão pessoal. Realmente não gosto de
categorizá-las tão especificamente. Inspiro-me em Cecil Taylor, Evan Parker,
Herbie Hancock, Earth Wind and Fire, Stevie Wonder, George Duke, Autechre,
Messaien…»
A praxis pianística de Escreet tem sido sempre marcada pelas pontes que sabe estabelecer entre um requinte desafiador na esteira de históricos como McCoy Tyner ou Herbie Hancock, com rupturas tectônicas continuadoras dos reptos lançados por Thelonious Monk, Cecil Taylor ou Alexander von Schlippenbach. O rol de colaborações de relevo que tem vindo a empreender em diferentes momentos demonstra esta abrangência de horizontes e uma vincada pulsão para ousar: os contrabaixistas John Hébert, Eivind Opsvik e Matt Brewer, e os bateristas Tyshawn Sorey, Nasheet Waits, Eric Harland e Jim Black, entre outros. No campo dos sopradores, por exemplo, não esquecer as estabelecidas com o trompetista Ambrose Akinmusire (no disco “Consequences”, de 2008) ou, notavelmente, com o mestre saxofonista Evan Parker (em “Sound, Space and Structures”, de 2014). “The Unknown”, disco ao vivo de 2016, também é de audição obrigatória.
Gravado no seu novo reduto californiano (Granada Hills, uma
zona de frequente atividade sísmica, sempre à espera do “the next big one”),
“Seismic Shift”, editado pela londrina Whrilwind, revela o modo como os
predicados de Escreet são exponenciados, sendo a presença de Revis e Reid
determinante para tal, numa lógica de desafio e complementaridade cujo cômputo
global revela-se superior à mera soma dos componentes. O pianismo intrincado
surge logo na peça inaugural, “Study No. 1”, donde se destaca, em jeito de
aviso ao sismólogo, o notável vigor do piano, com acordes densos, mão esquerda
percussiva, a direita fluida, desenhando figuras que se modificam a cada
instante, deixando o ouvinte atônito. Contrabaixo e bateria asseguram adequada
propulsão, num notável tricô. Como o título deixa antever, “Equipoise” (leitura
especial de um original do pianista Stanley Cowell, desaparecido no final de
2020; a versão referenciada é a de “Musa - Ancestral Streams”, disco solo de
1974) serve de contrapeso, com a sua atmosfera mais serena, dela avultando uma
bela linha melódica, da qual emerge um primeiro solo do contrabaixista, que
guinda a peça para um outro patamar de intensidade, sob o signo de Coltrane.
A livremente improvisada “Outward and Upward” começa com uma
linha hipnótica e evolui para terrenos mais repetitivos (Cecil Taylor vem à
mente), feita de clusters politonais e angulosidades. O contrabaixista aborda o
seu instrumento de forma pouco convencional, juntando-lhe a utilização do arco,
o que aporta um tom mais lamentoso à peça. Em “RD” (R de Revis e D de Damion,
os dedicatários) os níveis energéticos sobem aos píncaros, com os três músicos
em articulação apertada. “Perpetual Love” é tudo menos uma balada nos moldes
habituais, com o seu tempo médio; temos Reid a capturar Escreet e mais um solo
de Revis a dar o mote para o trio mudar de rumo, com os motivos rítmicos
propostos por piano e bateria a questionar tudo. “Digital Tulips”, introduzido
por Revis, é outra peça labiríntica, eivada de um swing esdrúxulo que radicará
no bop dos alvores transportado para a contemporaneidade (as mãos, de tal modo
independentes, parecem pertencer a músicos distintos).
A peça-título é enigmática, com Escreet a desenhar linhas
que constantemente mudam de direção e Revis a tanger as cordas com o arco,
conferindo dramatismo e gravitas; Reid faz muito mais do que suportar
ritmicamente, contribuindo de modo decisivo com o seu estupendo trabalho de
címbalos. “Quick Reset” é vinheta improvisada de pouco mais de minuto e meio, em
que Revis começa por propor um motivo repetitivo que o piano agarra e
desenvolve, funcionando como antecâmara para o notável clímax que é “The Water
is Tasting Worse”, com as linhas mais angulosas de travo monkiano no centro de
um turbilhão que atinge proporções impactantes.
Faixas: Study No. 1; Equipoise; Outward and Upward; RD;
Perpetual Love; Digital Tulips; Seismic Shift; Quick Reset; The Water Is
Tasting Worse
Músicos: John Escreet (piano); Eric Revis (contrabaixo);
Damion Reid (bateria)
Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=JCWdgtL_bn8
Fonte: António Branco (Jazz.pt)
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