Com chancela da austríaca Trost, “Refraction Solo” é o
primeiro registo a solo do saxofonista e improvisador Rodrigo Amado. Gravado ao
vivo na Igreja do Espírito Santo, nas Caldas da Rainha, é uma viagem solitária
e coletiva ao mesmo tempo, uma vênia aos mestres, um grito de liberdade.
Sonny Rollins disse em certa ocasião: «Eu não deveria estar
a tocar, a música deveria estar a tocar-me. Eu deveria estar ali com o
saxofone, movendo os meus dedos. A música deveria estar a chegar através de
mim; é quando realmente tudo acontece.» É dessa espécie de inefável comunicação
mediúnica que trata o primeiro registro solo do saxofonista e improvisador
(também fotógrafo e programador) Rodrigo Amado, alguém cujo trabalho é mais
reconhecido fora do retângulo do que dentro dele. Camões estava certo.
Ao longo dos anos, Amado tem vindo a erguer um edifício
sonoro muito peculiar, vertido em diferentes contextos e gravações: desde os
tempos dos saudosos Lisbon Improvisation Players, ao Motion Trio (com Miguel
Mira e Gabriel Ferrandini), Wire Quartet, This is Our Language Quartet (com
Chris Corsano, Kent Kessler e Joe McPhee), Refraction Quartet, The Bridge e
outros projetos mais ou menos pontuais.
A sua forma de tocar e o seu som estão verdadeiramente
fundados na história do jazz. Muito associado, por vezes em análises demasiado
simplistas ou preconceituosas, à tradição do free jazz, uma imersão mais
atenta na sua vasta produção permite concluir que muitas das suas raízes
acham-se em etapas anteriores, sobretudo no hard-bop. O músico lisboeta disse
em 2015 numa entrevista à jazz.pt: «É natural que a influência primária que
mais marcou e marca o meu discurso venha de grandes “fraseadores” do jazz como
Ornette Coleman, John Coltrane, Sonny Rollins, Archie Shepp, Wayne Shorter,
Booker Ervin ou Gerry Mulligan, entre muitos outros. Esta é uma influência
inconsciente, intuitiva, ligada a essa clareza de fraseado ou articulação.»
Somam-se, claro, influências mais conscientes e um acrescido
risco, embora Amado goste de sublinhar que a inspiração direta passa a ser os
músicos com quem está a tocar e que o foco está totalmente concentrado naquele
instante, único e irrepetível. E o que acontecerá quando está sozinho em palco?
Pela primeira vez em disco, “Refraction Solo” exibe Amado no mais solitário dos
contextos. «Resolvi fazer uma série de concertos solo para sublimar a energia e
as ideias com as quais vinha trabalhando durante todo o período de dois anos de
pandemia. Para mim, esses dois anos foram realmente interessantes e
inspiradores. Posso ser meio eremita e adoro (e às vezes preciso) ficar
sozinho. Então, todo aquele vazio, nas ruas, nas estradas, na praia, foi muito
interessante e até mágico de certa forma», revela o saxofonista em notas
pessoais que acompanham o disco. E acrescenta um elo a uma longa cadeia da
expressão solística no tenor, que tem em Coleman Hawkins e Sonny Rollins os
seus expoentes maiores. Ao interpelar a tradição, o músico torna-se parte dela;
ao interiorizá-la, contribui para a sua expansão, num jogo de dupla
significância.
No meio de todo este o processo, o músico tomou consciência
mais aguda das limitações do instrumento em que tocava e esta questão tornou-se
para si uma verdadeira obsessão. Tinha experimentado um Selmer Balanced
Action Tenor de 1945 e algo no seu som logo o surpreendeu. «Este
instrumento era do último ano da Segunda Guerra Mundial e dizia-se que o metal
usado para construí-lo era de sinos de igreja que foram derretidos para fazer
cápsulas de balas que também foram acumuladas e derretidas para fazer esses
saxofones. Difícil de confirmar, mas uma bela história», revela Amado. Comprou
esse saxofone, mas apesar de gostar do seu som havia algo com as chaves que não
o satisfez. Em julho de 2020, zênite pandémico, viajou para Paris (com mais
dois ou três passageiros em todo o avião) para experimentar, durante uma hora,
um outro tenor. Antes do regresso à capital portuguesa decidiu-se por um modelo
Super Balanced Action Selmer de 1951, instrumento que utilizou nesta
gravação (que teve lugar exatamente um ano depois) e desde então. «Sinto que
funciona como uma extensão orgânica das minhas ideias. Mudou a minha forma de
tocar no sentido de que me permite não me comprometer.»
A música que aqui se escuta foi gravada na Igreja do
Espírito Santo, nas Caldas da Rainha, a 4 de julho de 2021, logo após os
constrangimentos pandêmicos começarem a diminuir e os concertos a serem
novamente permitidos. Construído em meados de quinhentos e objeto de
reconstrução no século XVIII, a arquitetura do templo combina elementos
maneiristas e barrocos, e revela uma acústica essencial para a pureza do som
(nota para a excelente captação, sendo possível discernir tudo, inspirações e
expirações e o som das chaves do instrumento). Amado pega deixas dos mestres
(Coleman, Cherry, Rivers, Monk e Rollins), processa-as e integra-as no seu
discurso livre, mas ao mesmo tempo claramente norteado por essa constelação
referencial. “Refraction Solo”, com selo da austríaca Trost, é resultado de um
labor oficinal de desmontagem de temas clássicos do jazz que fazem parte das
suas raízes como músico. «Um processo de refração começou a acontecer e pude
ouvir esses traços de raízes primitivas misturando-se com a minha própria
linguagem improvisada, transformando-a», diz Amado.
O seu saxofonismo idiossincrático, tão mercurial quão
focado, encontra aqui uma especial montra, permitindo ao ouvinte descortinar
todos os recantos da sua abordagem ao instrumento e à música. “Sweet Freedom”,
improvisação inicial, é uma vênia tanto a “Freedom Suite” de Rollins como a Joe
McPhee (cujo espectro paira por todo o disco, pela sua «capacidade de se
abandonar totalmente à música e também pela sua forma de equilibrar as raízes
mais primitivas e puras com uma autêntica vibração espiritual»), através de
“Sweet Freedom, Now What”. Com mais de duas dezenas de minutos, revela
inicialmente uma melodia relaxada, que se aproxima e afasta, adquirindo adiante
outra espessura, num contínuo processo de transfiguração. Momentos mais
flamejantes alternam com mais passagens eivadas de uma particular
espiritualidade, bem detectável, aliás, noutros momentos da obra do
saxofonista. Mas a influência primária aqui é claramente o autor de “Saxophone
Colossus” (como na citação a “St. Thomas”, uma dedicatória de Rollins à terra
de onde era originária a mãe; comummente creditado ao saxofonista, o tema é
baseado no tradicional caribenho “Sponger Money” e este na canção inglesa “The
Lincolnshire Poacher”) como alertas para ulteriores indagações, como que
disputando um jogo de perguntas e respostas de frente dúplice, consigo próprio
e com quem o escuta.
“A Singular Blow” parte também em modo respirado, ganhando
subitamente rugosidade para logo voltar a um registo fluido e de pendor blueseiro
tão caro a Amado. “Shadow Waltz”, curta e hipnótica, evolui em torno de um
motivo central perscrutado sob diversos ângulos, até terminar num sopro
primordial.
Marco no percurso singular de Rodrigo Amado, “Refraction
Solo” é um registo indispensável para melhor se compreender a relojoaria íntima
de toda a sua obra, grito individual que se desdobra numa miríade de ecos.
Faixas
1.Sweet Freedom 20:54
2.A Singular Blow 08:05
3.Shadow Waltz 04:42
Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=6LEPTwDs8qE
Fonte: Antônio Branco (jazz.pt)
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