Gravado mesmo antes da pandemia chegar sem aviso, “Love
Ghosts” é o terceiro álbum do trio The Attic, formado pelo saxofonista Rodrigo
Amado, o contrabaixista Gonçalo Almeida e o baterista neerlandês Onno Govaert.
Tem selo da lituana NoBusiness e a jazz.pt já o escutou.
O trio saxofone-contrabaixo-bateria é uma verdadeira
instituição na história do jazz. Particularmente atenta a liberdades e
explorações, esta é uma configuração – sem instrumento harmônico – que
proporciona uma miríade de possibilidades de interação, elástica geometria sônica
ao mesmo tempo íntima e vasta. Os trios de Lee Konitz (“Motion”, com Sonny
Dallas e Elvin Jones, é pináculo) e Sonny Rollins (nomeadamente os com Ray
Brown e Shelly Manne e com Henry Grimes e Pete La Roca), os raríssimos registros
neste formato de Coltrane (revisite-se o magnífico “One Up, One Down”), o trio
de Ornette Coleman (com David Izenzon e Charles Moffett) no Golden Circle de
Estocolmo, os Air (Henry Threadgill, Fred Hopkins, Steve McCall), o trio de
Charles Gayle “Touchin' on Trane”, “Spiritual Unity” de Albert Ayler (com Gary
Peacock e Sunny Murray) ou o trio de Sam Rivers “The Quest”, com Dave Holland e
Barry Altschul, integram um rol tão extenso quão emocionante de revisitar.
É por esta constelação referencial que se orienta, direta ou
subliminarmente, o trio The Attic, formado pelo saxofonista Rodrigo Amado – há
muito figura central do jazz mais aventuroso que se pratica em Portugal e o
músico português a movimentar-se nestes domínios hoje mais reconhecido lá fora,
e que já este ano nos deu um soberbo álbum a solo, “Refraction” , o
contrabaixista Gonçalo Almeida (radicado nos Países Baixos, dividindo-se em
projetos como Albatre, The Selva, Spinifex, Ritual Habitual ou Lama) e o
baterista neerlandês Onno Govaert (também com outras fortes ligações à cena
nacional: Hugo Costa, Luís Vicente, Marcelo dos Reis). À estreia homônima ainda
com Marco Franco na bateria, em 2017, registo inicial, mas nem por isso menos
interessante ou consistente, seguiu-se “Summer Bummer”, já com a formação
atual, dois anos depois, um registo clássico ao vivo, revelando dinâmicas
exponenciadas e intensas trocas energéticas com o público então presente no
Festival Summer Bummer, realizado na cidade belga de Antuérpia. «A história do
grupo tem sido de evolução orgânica», sublinha Rodrigo Amado em conversa com a
jazz.pt.
Objeto totalmente diferente, “Love Ghosts”, editado pela
lituana NoBusiness (recomenda-se mergulho atento no seu catálogo), é o terceiro
registo do trio. Foi gravado num estúdio lisboeta no final de uma pequena
digressão, em janeiro de 2020, mesmo antes de a pandemia entrar nas nossas
vidas sem pedir licença. Amado recorda esses momentos: «Lembro-me que estávamos
os três bastante cansados, mas felizes pela música que tinha acontecido nos
dias anteriores. Num ambiente de calma total, com a assistência preciosa do
Quim Monte (Namouche), entramos num espaço de concentração absoluta.» O trio
apresenta um disco que encerra em si dois planos, um mais imediatamente
apreendível, que revela uma considerável dose de tensão explosiva, e outro mais
detalhado e contido, sempre interpelando as lógicas difusas da comunicação em
tempo real entre músicos, construindo, desconstruindo e reconstruindo ideias
rítmicas e melódicas, numa linguagem muito particular. «Recordo-me de ouvir
pela primeira vez e ser surpreendido pela minha própria linguagem, pelo
fraseado invulgarmente claro. É um disco que representa para mim um marco
pessoal em termos de linguagem», reforça o saxofonista.
A riqueza da abordagem que aqui escutamos radica na
conjunção dos distintos elementos individuais que os três músicos aportam e que
coalescem sem se diluir no cômputo, em operações algébricas que desafiam
convenções. «Este é um trio feito de três personalidades completamente
diferentes. E isso passa para a música. Esse é aliás um dos meus grandes
fascínios com a música improvisada – se os músicos têm diferentes
personalidades, as linguagens musicais vão ser, também elas, igualmente
diversas. Isso não acontece, na generalidade, com música composta. Neste caso,
o trio The Attic é feito de equilíbrios, de um jogo de tensões que se vão
reorganizando à medida que a música é tocada.» Trata-se não apenas de uma fuga
ao redil harmónico, mas também, e sobretudo, de elaborar nos territórios
abertos entre os instrumentos.
O álbum faz-se de quatro improvisações de duração
compreendida entre os 12 e os 17 minutos, todas assinadas pelo trio. A peça de
abertura, “New Tone”, assume uma toada pós-bop livre. Almeida e Govaert
introduzem até que Amado entra em cena propondo um motivo telegráfico, que
repete segundo diferentes perspectivas, que tanto apontam para luminárias do
passado como para a frente. O saxofonista solta-se – com aquele ataque preciso
que tão bem caracteriza a sua práxis – e o todo sonoro ganha densidade
acrescida. A efervescência consequente da dupla rítmica (à propulsão conferida
pelo contrabaixista, a aditar a tal tensão, junta-se o excelente trabalho de pratos
do baterista), vai muito além de conferir mero suporte aos voos do saxofonista,
motivando atenção especial por direito próprio. A certo momento, Amado e
Almeida iniciam uma espécie de dança, até que tudo de desvanece em fumaça.
“Encounter” começa também com o saxofonista a lançar uma
ideia aberta, com amplo espaço nos interstícios para que os outros dois músicos
reajam com elegância e assertividade. Amado deambula, mais sinuoso, indagando a
linha melódica, desafiando-se a si próprio e chamando os outros para a
conversa, aumentando os níveis de intensidade sem perder aquela respiração
primordial (os fantasmas de vários mestres parecem pairar por aqui). O
saxofonista recua, então, e deixa Almeida e Govaert sozinhos, ficando depois o
contrabaixista entregue a jornada solitária. O fio é retomado e a peça embala
resolutamente para a reta final.
A peça-título inicia-se de forma mais exploratória, com um
travo camerístico que decorre sobretudo da (soberba) utilização do arco por
parte do contrabaixista. A peça mantém um pendor enigmático, talvez por isso
mesmo sedutor, com microexplosões em muito espoletadas pelo baterista, que não
se esquiva a injetar combustível, em estreita articulação com a solidez do
contrabaixista. Amado assina uma intervenção plena de energia, ayleriana até ao
âmago, que não deixa pedra sobre pedra. Na peça derradeira, “Outer Fields”, é o
contrabaixista a dar mote, a que se juntam, primeiro, o baterista e depois o
saxofonista, em toada de início lamentosa e eivada de uma espiritualidade
própria que há muito existe no sopro do português, quase um hino. À medida que
a improvisação progride as linhas adquirem maior espessura.
“Love Ghosts” é um álbum notável e um passo em frente no
pecúlio de um trio em permanente evolução.
Faixas
1.New Tone 12:12
2.Encounter 16:50
3.Love Ghosts 16:09
4.Outer Fields 13:25
Músicos: Rodrigo Amado (saxofone tenor); Gonçalo Almeida (contrabaixo); Onno Govaert (bateria).
Fonte: Antônio Branco (jazz.pt)
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