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quinta-feira, 13 de abril de 2023

THE ATTIC - LOVE GHOSTS (NoBusiness)

Gravado mesmo antes da pandemia chegar sem aviso, “Love Ghosts” é o terceiro álbum do trio The Attic, formado pelo saxofonista Rodrigo Amado, o contrabaixista Gonçalo Almeida e o baterista neerlandês Onno Govaert. Tem selo da lituana NoBusiness e a jazz.pt já o escutou.

O trio saxofone-contrabaixo-bateria é uma verdadeira instituição na história do jazz. Particularmente atenta a liberdades e explorações, esta é uma configuração – sem instrumento harmônico – que proporciona uma miríade de possibilidades de interação, elástica geometria sônica ao mesmo tempo íntima e vasta. Os trios de Lee Konitz (“Motion”, com Sonny Dallas e Elvin Jones, é pináculo) e Sonny Rollins (nomeadamente os com Ray Brown e Shelly Manne e com Henry Grimes e Pete La Roca), os raríssimos registros neste formato de Coltrane (revisite-se o magnífico “One Up, One Down”), o trio de Ornette Coleman (com David Izenzon e Charles Moffett) no Golden Circle de Estocolmo, os Air (Henry Threadgill, Fred Hopkins, Steve McCall), o trio de Charles Gayle “Touchin' on Trane”, “Spiritual Unity” de Albert Ayler (com Gary Peacock e Sunny Murray) ou o trio de Sam Rivers “The Quest”, com Dave Holland e Barry Altschul, integram um rol tão extenso quão emocionante de revisitar.

É por esta constelação referencial que se orienta, direta ou subliminarmente, o trio The Attic, formado pelo saxofonista Rodrigo Amado – há muito figura central do jazz mais aventuroso que se pratica em Portugal e o músico português a movimentar-se nestes domínios hoje mais reconhecido lá fora, e que já este ano nos deu um soberbo álbum a solo, “Refraction” , o contrabaixista Gonçalo Almeida (radicado nos Países Baixos, dividindo-se em projetos como Albatre, The Selva, Spinifex, Ritual Habitual ou Lama) e o baterista neerlandês Onno Govaert (também com outras fortes ligações à cena nacional: Hugo Costa, Luís Vicente, Marcelo dos Reis). À estreia homônima ainda com Marco Franco na bateria, em 2017, registo inicial, mas nem por isso menos interessante ou consistente, seguiu-se “Summer Bummer”, já com a formação atual, dois anos depois, um registo clássico ao vivo, revelando dinâmicas exponenciadas e intensas trocas energéticas com o público então presente no Festival Summer Bummer, realizado na cidade belga de Antuérpia. «A história do grupo tem sido de evolução orgânica», sublinha Rodrigo Amado em conversa com a jazz.pt.

Objeto totalmente diferente, “Love Ghosts”, editado pela lituana NoBusiness (recomenda-se mergulho atento no seu catálogo), é o terceiro registo do trio. Foi gravado num estúdio lisboeta no final de uma pequena digressão, em janeiro de 2020, mesmo antes de a pandemia entrar nas nossas vidas sem pedir licença. Amado recorda esses momentos: «Lembro-me que estávamos os três bastante cansados, mas felizes pela música que tinha acontecido nos dias anteriores. Num ambiente de calma total, com a assistência preciosa do Quim Monte (Namouche), entramos num espaço de concentração absoluta.» O trio apresenta um disco que encerra em si dois planos, um mais imediatamente apreendível, que revela uma considerável dose de tensão explosiva, e outro mais detalhado e contido, sempre interpelando as lógicas difusas da comunicação em tempo real entre músicos, construindo, desconstruindo e reconstruindo ideias rítmicas e melódicas, numa linguagem muito particular. «Recordo-me de ouvir pela primeira vez e ser surpreendido pela minha própria linguagem, pelo fraseado invulgarmente claro. É um disco que representa para mim um marco pessoal em termos de linguagem», reforça o saxofonista.

A riqueza da abordagem que aqui escutamos radica na conjunção dos distintos elementos individuais que os três músicos aportam e que coalescem sem se diluir no cômputo, em operações algébricas que desafiam convenções. «Este é um trio feito de três personalidades completamente diferentes. E isso passa para a música. Esse é aliás um dos meus grandes fascínios com a música improvisada – se os músicos têm diferentes personalidades, as linguagens musicais vão ser, também elas, igualmente diversas. Isso não acontece, na generalidade, com música composta. Neste caso, o trio The Attic é feito de equilíbrios, de um jogo de tensões que se vão reorganizando à medida que a música é tocada.» Trata-se não apenas de uma fuga ao redil harmónico, mas também, e sobretudo, de elaborar nos territórios abertos entre os instrumentos.

O álbum faz-se de quatro improvisações de duração compreendida entre os 12 e os 17 minutos, todas assinadas pelo trio. A peça de abertura, “New Tone”, assume uma toada pós-bop livre. Almeida e Govaert introduzem até que Amado entra em cena propondo um motivo telegráfico, que repete segundo diferentes perspectivas, que tanto apontam para luminárias do passado como para a frente. O saxofonista solta-se – com aquele ataque preciso que tão bem caracteriza a sua práxis – e o todo sonoro ganha densidade acrescida. A efervescência consequente da dupla rítmica (à propulsão conferida pelo contrabaixista, a aditar a tal tensão, junta-se o excelente trabalho de pratos do baterista), vai muito além de conferir mero suporte aos voos do saxofonista, motivando atenção especial por direito próprio. A certo momento, Amado e Almeida iniciam uma espécie de dança, até que tudo de desvanece em fumaça.

“Encounter” começa também com o saxofonista a lançar uma ideia aberta, com amplo espaço nos interstícios para que os outros dois músicos reajam com elegância e assertividade. Amado deambula, mais sinuoso, indagando a linha melódica, desafiando-se a si próprio e chamando os outros para a conversa, aumentando os níveis de intensidade sem perder aquela respiração primordial (os fantasmas de vários mestres parecem pairar por aqui). O saxofonista recua, então, e deixa Almeida e Govaert sozinhos, ficando depois o contrabaixista entregue a jornada solitária. O fio é retomado e a peça embala resolutamente para a reta final.

A peça-título inicia-se de forma mais exploratória, com um travo camerístico que decorre sobretudo da (soberba) utilização do arco por parte do contrabaixista. A peça mantém um pendor enigmático, talvez por isso mesmo sedutor, com microexplosões em muito espoletadas pelo baterista, que não se esquiva a injetar combustível, em estreita articulação com a solidez do contrabaixista. Amado assina uma intervenção plena de energia, ayleriana até ao âmago, que não deixa pedra sobre pedra. Na peça derradeira, “Outer Fields”, é o contrabaixista a dar mote, a que se juntam, primeiro, o baterista e depois o saxofonista, em toada de início lamentosa e eivada de uma espiritualidade própria que há muito existe no sopro do português, quase um hino. À medida que a improvisação progride as linhas adquirem maior espessura.

“Love Ghosts” é um álbum notável e um passo em frente no pecúlio de um trio em permanente evolução.

Faixas  

1.New Tone 12:12

2.Encounter 16:50

3.Love Ghosts 16:09

4.Outer Fields 13:25

Músicos: Rodrigo Amado (saxofone tenor); Gonçalo Almeida (contrabaixo); Onno Govaert (bateria).

Fonte: Antônio Branco (jazz.pt)

 

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