Um disco titulado por uma sala e uma data fala-nos de um
momento no passado, “Culturgest 2007”. De uma morte que se vive, mas não se
aceita. Foi lançado na mesma sala, 14 anos e três meses depois. A sala
permanece, como é próprio da arquitetura. O pianista deixou-nos, mas não como é
próprio da vida. Este disco é por isso uma memória de uma noite, numa das salas
preferidas pelo músico, gravada por Nelson Carvalho, o engenheiro de som que
acompanhava todos os concertos de Sassetti. Foi um achado que apareceu impoluto
quando o técnico revia o seu acervo.
Em 2007 o trio de Bernardo Sassetti, com Alexandre Frazão na
bateria e Carlos Barretto no contrabaixo, estava no seu auge. Infelizmente o
trio gravou pouco (apenas "Motion" em 2010, "Ascent" de
2005 e "Nocturno" de 2002), apesar de Barretto e Frazão estarem quase
sempre presentes nas gravações e concertos de Sassetti. A Clean Feed é a casa
que o pianista escolheu para editar a maior parte da sua obra e por isso é
natural que seja agora quem edita este achado.
Em 2007 acompanhamos o trio com 12 anos de música em
conjunto e a tocar muito coeso e telepático. O pianista já tinha criado um
léxico próprio de canções e o trio tinha nesta fase uma voz própria, que se
caracterizava no modo como conseguiam desenvolver as músicas. A ligação entre o
piano e o contrabaixo é particularmente notável.
A “Abertura” dá-nos desde logo essa nota. Depois de um
momento textural que instala a música, surge a melodia escrita pelo pianista,
uma música natural, que sempre existiu e que só aguardava que alguém a
encontrasse. Com um certo sabor a fado entra o tema, laboriosamente
desenvolvido pelo grupo num andamento lento e pensativo.
“I’m Thru With Love”, o seguimento, entra em passo estugado;
a canção de 1931 mostra o grupo em forma, a acelerar e puxando uns pelos
outros, rapidíssimos, eficazes. Primeiro aquele walking bass
irresistível e Frazão nas escovas. O piano bate, percute. Surgem umas teclas
soltas. A música vai-se anunciando sem se instalar. O solo de Sassetti é livre,
enigmático, sempre a revelar e esconder. Frazão impecável a manter o passeio
quente. Depois de oito minutos e meio a melodia aparece a brilhar de tanto ter
sido polida. É neste tema aparentemente vulgar que vemos claramente a qualidade
deste grupo e encontramos um pianista que tem uma capacidade lírica notável e
ao mesmo tempo um conhecimento da música que lhe permite viajar facilmente para
um mundo muito abstrato e, magicamente, voltar.
Regressamos depois aos temas escritos pelo pianista, mais
introspetivos. “Reflexos” apareceu no disco "Nocturno" e é aqui relida
com um solo magnífico de Carlos Barretto. Frazão está sempre à procura de novos
recursos para colorir o ritmo. Em “Algumas Coisas Não Mudam” é o piano que
deslumbra, ao sair completamente fora da música e criar tantos mundos
paralelos. Até ao fim do disco encontramos em cada tema um mundo de surpresas.
“Um Dia Atrás do Vidro” volta às cadências rápidas e dançáveis. A gravação dá-nos os detalhes da batucada com
as mãos e pandeiro, em vez do prato de choques. Mais uma vez o piano está
faiscante, saindo completamente do que era expectável e mostrando-nos um
pianista genial.
Por alguma razão, mística ou não, esta gravação demorou 14
anos a aparecer. Está impecavelmente feita e mostra-nos a música e os músicos
com todos os detalhes, como se estivéssemos lá. Felizmente foi editada, pois é
um dos melhores discos da curta discografia de Sassetti e deste trio. Música
brilhante e genial.
Faixas
1.Abertura 09:01
2.I’m thru with love 10:44
3.Reflexos 15:34
4.Algumas coisas não mudam 13:20
5.Tristeza dos dois 05:08
6.Um dia através do vidro 07:49
7.Quando volta o encanto 15:59
Músicos: Bernardo Sassetti (piano); Carlos Barretto (contrabaixo); Alexandre Frazão (bateria e percussão)
Fonte: Gonçalo Falcão (jazz.pt)
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