O trompetista Luís Vicente gravou o novo disco, “House In
the Valley”, ao leme de um quarteto internacional com John Dikeman no saxofone
tenor, Luke Stewart no contrabaixo e Onno Govaert na bateria. Este novo álbum
foi editado pela Clean Feed e a jazz.pt já o escutou.
Para os amantes de free jazz, 2023 não poderia começar
melhor. Em janeiro, o trompetista e compositor Luís Vicente lançou o seu último
trabalho, desta vez em quarteto. “House In the Valley” é um disco marcado por
uma pandemia que assolou o planeta, e testemunha a vida de um artista num
momento de isolamento social, de arrefecimento do calor humano e de penetração
a todo o vapor no mundo digital. Serviu-lhe de inspiração a sua filha Luísa e a
natureza, a presente e a que guarda na memória de dias vividos na infância.
Mas, apesar de todas as condicionantes, Luís Vicente demonstra-nos novamente a
sua dinâmica e a capacidade de encontrar caminhos internacionais e juntar
músicos de diferentes origens e percursos.
O quarteto que agora podemos escutar junta alguns nomes
reconhecidos pela crítica, a nível internacional: John Dikeman no saxofone
tenor, Luke Stewart no contrabaixo, Onno Govaert na bateria e o próprio Luís
Vicente no trompete e composição. O encontro destes quatro músicos não foi
esporádico, evoluiu em várias apresentações em palco e foi gravado numa delas
por Ricardo Pimentel, na Igreja do Espírito Santo, nas Caldas da Rainha.
Misturado e masterizado por Marcelo dos Reis, foi editado pela Clean Feed.
“House In the Valley” é composto apenas por duas partes, cada uma delas juntando
duas composições. É um disco de personalidade forte, com influências do free
jazz inicial e, consequentemente, das origens da música africana, embora se
encontrem elementos do free jazz europeu mais tardio e mesmo da música
improvisada.
O disco inicia-se com “Anahata”, num ambiente intenso, com
grande destaque dos sopros que intervêm, logo de início, de forma melodiosa,
mas num tom agreste, bruto e cru. E embora a influência orgânica do free jazz
seja uma das colunas vertebrais no que a influências diz respeito, “House In
the Valley” revela uma mistura de diferentes estéticas e percursos, contendo em
si, mesmo que talvez de forma inconsciente, alguma da história do percurso do
jazz no seu todo e da música improvisada, também com alguns laivos de rock, com
momentos de algum fraseado melódico e outros de total liberdade de
improvisação. E isso é algo muito presente em todo o disco: a fluidez ao
caminhar por todas estas estéticas e linguagens. Se por um lado há momentos em
que escutamos uma estrutura mais livre, por outro como em “Little Dance”, por
exemplo, já nos deparamos com alguma da construção do jazz mais tradicional,
com uma aparente estrutura na forma ABA, ou seja, com um tema inicial, espaço
para improvisação e regresso ao tema inicial, levando-nos a crer que o que
seria à partida óbvio, não o é. Só por este impacto, as composições de Luís
Vicente já revelam forte qualidade.
Os executantes deste álbum são músicos maduros, cada um com
uma linguagem e identidade muito próprias que se juntam em camadas de sons e
frases para construir um todo muito consistente e, ao mesmo tempo, diverso. Há
momentos que nos levam a um sentimento puro, ancestral, de encontro com o lado
rude da natureza e do belo. A segunda parte deste disco aprofunda ainda mais esse
sentimento, com dinâmicas mais exploratórias de improvisação. E se há momentos em que o saxofone ou o
trompete parecem destacar-se, basta nos centrarmos a escutar o contrabaixo ou a
bateria e logo percebemos que estes estão a construir um suporte altamente
consistente, na maioria das vezes polirrítmico, ao encontro das raízes
africanas do free jazz.
“House In the Valley” contém intensidades diversas, mas claramente que, em termos de conjunto, os momentos mais puxados e enérgicos estão na segunda parte. É curioso como neste tipo de música as notas caminham em intervalos aumentados e diminutos e todas encaixam numa perfeição imperfeita. Os músicos revelam uma escuta ativa e com uma intervenção pertinente, mas destacam-se algumas situações particulares que demonstram a qualidade de cada um. No caso do trompete, Luís Vicente traz-nos a construção melódica e frásica que tem desenvolvido, nomeadamente a ideia de um certo tipo de stacatto muito próprio e sequências em saltos que podemos escutar logo em “Anahata”, também em forma de pontilhados e de escalada progressiva. John Dikeman, muito marcado pela estética americana, traz-nos um som intenso, mas sem ser ostensivo, num fraseado mais orgânico, percorrendo as notas de forma ansiosa, por vezes em formas de cromatismos, outras “gritando-as” também em harmônicos do instrumento. Algures a meio da primeira parte há um solo de bateria, salientando-se a técnica e musicalidade de Onno Govaert: para os ouvidos mais atentos, realça-se o início do solo com a brilhante conjugação dos diferentes ritmos que caminham em paralelo entre a caixa e os pratos de choque e posteriormente, com a tarola nunca perdendo a expressividade necessária. Para os mais distraídos, talvez este exercício pareça simples, mas é quase como dividir o cérebro em dois, para depois voltar a juntar num só.
Por último, quem neste disco tem o papel chave, enquanto
instrumentista, de suporte e continuidade, é Luke Stewart. Com um fraseado
constante, dedilhado e tecnicamente muito duro, em linha contínua no seu modo
ponteado, o contrabaixo vem realçar-se nos solos de “Little Dance” ou “Luisa’s
Laugh”, onde podemos também escutar a exploração de notas soltas e utilização
do arco. Luke Stewart é um contrabaixista que toca em “modo de piano”, com
várias vozes em simultâneo e com uma técnica impressionante.
Apesar de em parte ter sido criado em momentos de
isolamento, “House In the Valley” é um apelo à exaltação das emoções através da
liberdade musical e é um disco que vai contra ideias formatadas. Tal como o
nome nos sugere, a sua escuta faz-nos viajar para a casa do vale, no meio de
uma cordilheira com quatro montanhas, cada uma com um dos instrumentos no seu
cume e criando a sua sonoridade, sendo a sua beleza conjunta demasiado rica,
mas não esquecendo que cada uma delas tem o seu próprio momento de encontro com
a luz do sol.
Faixas
1.Anahata +
Little Dance 24:51
2.Luísa's
Laugh + House In The Valley
Músicos: Luís Vicente (trompete, composição); John Dikeman
(saxofone tenor); Luke Stewart (contrabaixo); Onno Govaert (bateria)
Fonte: Sofia Rajado (jazz.pt)
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