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sábado, 6 de janeiro de 2024

MARK LOTZ – FRESHTA (ZenneZ)

A 24 de dezembro de 2020 a Al-Jazeera noticia que homens armados desconhecidos montados numa motocicleta mataram uma mulher de 29 anos (e o seu irmão) no distrito de Kohistan, província de Kapisa, a nordeste da capital do Afeganistão, Cabul. Chamava-se Freshta Kohistani e era uma destacada ativista dos direitos das mulheres, num país devastado por uma vaga de violência brutal. Fora baleada não muito longe da casa onde vivia, em plena luz do dia. Freshta era a segunda ativista a ser morta em dois dias, depois de uma advogada defensora da democracia ter tido o mesmo cruel destino. Dias antes de morrer, após pedir proteção às autoridades por estar a receber ameaças, tuitou: «Amanhã pode ser a tua vez.» Durante o ano anterior, Freshta havia feito campanha pelo candidato à presidência do Afeganistão Abdullah Abdullah, ganhando reputação nas redes sociais e em eventos de defesa dos direitos das mulheres em Cabul. O flautista alemão Mark Lotz (n. 1963) soube destes trágicos acontecimentos pouco depois: «Quando recebi a encomenda de composição [por parte da Vereniging Nederlandse Jazzpodia en Jazzfestivals – associação dos principais festivais e salas de jazz nos Países Baixos) e da organização de autores neerlandeses, BUMA], o Afeganistão estava sempre nos noticiários. Então, eu quis dedicar as composições a eles. Pesquisei bastante e conheci a história de Freshta e do irmão dela», começa por dizer Lotz à jazz.pt. «No tempo em que vivi em Uganda, experimentei coisas durante a guerra (era criança), bem como as minhas experiências na nossa indústria impiedosa», refere. «Não sou ativista pelos direitos das mulheres, nem a minha banda, também a música instrumental não pode ser realmente ativista. Mas a minha música transporta a mensagem de liberdade e do amor», sublinha Lotz. «Não suporto injustiças.»

Mark Lotz integrou a direção da União Neerlandesa dos Músicos de Improvisação durante mais de uma década; organiza concertos como “Mark My Wor(l)ds”, com a participação de artistas de diferente proveniência geográfica (em janeiro haverá música portuguesa) e um festival comunitário de músicas do mundo (o VOLfest) num bairro carente da pequena cidade onde reside. Durante os confinamentos pandêmicos, desenvolveu o festival Jazz On The Sofa apenas em torno de artistas locais, atribuindo-lhes também tarefas de composição. E ao mesmo tempo procurou lutar contra a «horrível indústria musical», recentrando a atividade na escala humana e local, assente nos princípios da sustentabilidade, durabilidade, do pensamento de economia circular e da arte comunitária. Depois do seu regresso ao jazz, já este ano, com “Turn On, Tune In, Drop Out!”, em trio, Mark Lotz reúne aqui uma formação mais alargada, com músicos de alto quilate: o clarinetista Claudio Puntin, o violoncelista Jörg Brinkmann, o pianista Jeroen van Vliet e o baterista Dirk-Peter Kölsch, todos capazes de acrescentar camadas de complexidade – mas também emocionais – à música que escrevera, ressaltando clara a química que se estabelece entre todos eles. A sua ideia, desde o início, foi criar música contemporânea, profunda, a partir da perspectiva de um cidadão europeu e do mundo. «A minha formação também é parcialmente clássica moderna; sinto-me muito atraído pelo som e pela instrumentação musical de câmara», acrescenta o flautista. A meio caminho entre uma tal formação e um ensemble de jazz, com músicos que conhece bem, este grupo serve bem os objetivos a que se propôs.

As onze peças de “Freshta”, o seu novo álbum, com selo da ZenneZ, são dedicadas a mulheres ativistas, sobretudo do Afeganistão, Paquistão e Índia, mas também de África. «Mergulhei nas suas personalidades e nas suas histórias específicas e tentei incorporar isso na atmosfera das composições», explica Mark Lotz. Neste álbum, o flautista vê-se a si próprio mais como compositor e menos como instrumentista. É também o primeiro onde aborda de forma mais clara questões socialmente relevantes e molda o seu envolvimento em conformidade com o momento globalmente inquieto em que vivemos. «Em tempos de guerra, populismo e agitação social, como artista sinto a responsabilidade e o desejo de espalhar ainda mais a mensagem de amor, respeito e liberdade como um louco», afirma. Um dia de ensaios, um pequeno concerto de apresentação e dois dias de estúdio. Gravações diretas, ao vivo, (quase) sem depurações ou acréscimos. Para esta música confluem elementos de vários territórios sonoros, em que Lotz se tem movimentando ao longo dos anos, estudando diferentes tradições, cruzando fronteiras, colaborando com músicos de múltiplas áreas. «Isso molda o que sou hoje. É impossível excluir partes da minha identidade. Ainda assim, o fio condutor é o jazz, a música humana e social na improvisação.»

Em “Freshta”, porém, quase não há jazz, pelo menos com um suíngue de matriz norte-americana; tudo é interpelado segundo uma perspectiva europeia, mesmo quando musicalmente se acomodam elementos de outras geografias. Da peça de abertura, “Durgas Lalit”, dedicada a Durga Gawde (artista, ativista e pessoa não-binária), emerge uma aura misteriosa, mas energética, com as notas límpidas da flauta, usando uma escala indiana, depois esta em uníssonos e contrapontos com o piano, entrando então em cena a dupla rítmica. Lotz usou o raga “Lalit”, «um raga muito forte e que mostra muitas faces». A música transporta-nos para um lugar distante, mas ao mesmo tempo tão próximo. “For Viji”, introduzida pelo violoncelo, é uma peça de recorte elegante, com a flauta a elevar-se. Mais enérgica e buliçosa é a peça que dá título ao álbum, curta, mas eloquente, com um balanço instável; “Frouzan” começa lenta, adquirindo depois outro nervo (tal como Freshta Kohistani, Frouzan Safi foi executada pelos talibãs em Mazar-e-Sharif.) “Hasina” é de um balanço leve e planante, com o violoncelo no centro do que acontece. “Isabel” é de novo introduzida pelo violoncelo, que lança um profícuo diálogo entre flauta e clarinete, dele emanando, primeiro, uma soberba declaração da loquaz flauta de Lotz; depois, é o clarinete que também diz o que lhe vai na alma. No final, os dois instrumentos juntam-se numa vívida dança. Em “Mahbouba” estamos no centro de um jardim com plantas frondosas, fontes de água corrente e pássaros, numa peça que remete para a polifonia europeia. (Mahbouba Seraj, jornalista, é uma mulher forte, educada e inteligente. Uma guerreira silenciosa a lidar com questões complexas, traços refletidos no entrelaçamento de três melodias e no final repentino, retratando o vazio que se segue.) Esse lado é também potenciado pelo arranjo solene, mas fluido, de “Malala”, onde Lotz assina um dos melhores solos do álbum; a dois minutos do seu ocaso, a peça adquire um tom mais pungente, com uma bela melodia desenhada pelo piano. “Malalai” é ritmicamente mais vibrante, com um balanço que guia as deambulações cruzadas de clarinete e flauta, que solam à vez, pegando em ideias mútuas e esticando-as q.b. (notável solo do clarinetista). “Nasrin” é mais sombria e dramática – com o piano a soar mais jazzístico, bateria com escovas – uma balada fumarenta de recorte vintage tingida por elementos da tradição musical erudita. A encerrar o álbum, uma homenagem ao poder das mulheres africanas: “Wangari” (a queniana Wangari Muta Maathai foi a primeira mulher africana a ganhar o Prémio Nobel da Paz em 2004 pela sua contribuição para o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz) é uma peça profundamente imagética assente numa célula lenta, estável e quieta, a antítese do mundo turbulento e perigoso em que (ainda) habitamos.

Faixas

1.Freshta 02:44

2.Malalai 04:05

3.Malala 06:39

4.Durga's Lalit 08:06

5.Nasrin 05:04

6.Isabel 05:52

7.Wangari 07:38

8.Frouzan 05:41

9.Mahbouba 03:25

10.Hasina 06:47

11.For Viji 04:16

 Músicos: Mark Lotz (flauta, efeitos); Claudio Puntin (clarinetes, outros instrumentos); Jörg Brinkmann (violoncelo, efeitos); Jeroen van Vliet (piano, efeitos); Dirk-Peter Kölsch (bateria).

 Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

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