A 24 de dezembro de 2020 a Al-Jazeera noticia que homens
armados desconhecidos montados numa motocicleta mataram uma mulher de 29 anos
(e o seu irmão) no distrito de Kohistan, província de Kapisa, a nordeste da
capital do Afeganistão, Cabul. Chamava-se Freshta Kohistani e era uma destacada
ativista dos direitos das mulheres, num país devastado por uma vaga de
violência brutal. Fora baleada não muito longe da casa onde vivia, em plena luz
do dia. Freshta era a segunda ativista a ser morta em dois dias, depois de uma
advogada defensora da democracia ter tido o mesmo cruel destino. Dias antes de
morrer, após pedir proteção às autoridades por estar a receber ameaças, tuitou:
«Amanhã pode ser a tua vez.» Durante o ano anterior, Freshta havia feito
campanha pelo candidato à presidência do Afeganistão Abdullah Abdullah,
ganhando reputação nas redes sociais e em eventos de defesa dos direitos das
mulheres em Cabul. O flautista alemão Mark Lotz (n. 1963) soube destes trágicos
acontecimentos pouco depois: «Quando recebi a encomenda de composição [por
parte da Vereniging Nederlandse Jazzpodia en Jazzfestivals – associação dos
principais festivais e salas de jazz nos Países Baixos) e da organização de
autores neerlandeses, BUMA], o Afeganistão estava sempre nos noticiários.
Então, eu quis dedicar as composições a eles. Pesquisei bastante e conheci a
história de Freshta e do irmão dela», começa por dizer Lotz à jazz.pt. «No
tempo em que vivi em Uganda, experimentei coisas durante a guerra (era
criança), bem como as minhas experiências na nossa indústria impiedosa»,
refere. «Não sou ativista pelos direitos das mulheres, nem a minha banda,
também a música instrumental não pode ser realmente ativista. Mas a minha
música transporta a mensagem de liberdade e do amor», sublinha Lotz. «Não
suporto injustiças.»
Mark Lotz integrou a direção da União Neerlandesa dos Músicos
de Improvisação durante mais de uma década; organiza concertos como “Mark My
Wor(l)ds”, com a participação de artistas de diferente proveniência geográfica
(em janeiro haverá música portuguesa) e um festival comunitário de músicas do
mundo (o VOLfest) num bairro carente da pequena cidade onde reside. Durante os
confinamentos pandêmicos, desenvolveu o festival Jazz On The Sofa apenas em
torno de artistas locais, atribuindo-lhes também tarefas de composição. E ao
mesmo tempo procurou lutar contra a «horrível indústria musical», recentrando a
atividade na escala humana e local, assente nos princípios da sustentabilidade,
durabilidade, do pensamento de economia circular e da arte comunitária. Depois
do seu regresso ao jazz, já este ano, com “Turn On, Tune In, Drop Out!”, em
trio, Mark Lotz reúne aqui uma formação mais alargada, com músicos de alto
quilate: o clarinetista Claudio Puntin, o violoncelista Jörg Brinkmann, o
pianista Jeroen van Vliet e o baterista Dirk-Peter Kölsch, todos capazes de
acrescentar camadas de complexidade – mas também emocionais – à música que
escrevera, ressaltando clara a química que se estabelece entre todos eles. A
sua ideia, desde o início, foi criar música contemporânea, profunda, a partir
da perspectiva de um cidadão europeu e do mundo. «A minha formação também é
parcialmente clássica moderna; sinto-me muito atraído pelo som e pela
instrumentação musical de câmara», acrescenta o flautista. A meio caminho entre
uma tal formação e um ensemble de jazz, com músicos que conhece bem, este grupo
serve bem os objetivos a que se propôs.
As onze peças de “Freshta”, o seu novo álbum, com selo da
ZenneZ, são dedicadas a mulheres ativistas, sobretudo do Afeganistão, Paquistão
e Índia, mas também de África. «Mergulhei nas suas personalidades e nas suas
histórias específicas e tentei incorporar isso na atmosfera das composições»,
explica Mark Lotz. Neste álbum, o flautista vê-se a si próprio mais como
compositor e menos como instrumentista. É também o primeiro onde aborda de
forma mais clara questões socialmente relevantes e molda o seu envolvimento em
conformidade com o momento globalmente inquieto em que vivemos. «Em tempos de
guerra, populismo e agitação social, como artista sinto a responsabilidade e o
desejo de espalhar ainda mais a mensagem de amor, respeito e liberdade como um
louco», afirma. Um dia de ensaios, um pequeno concerto de apresentação e dois
dias de estúdio. Gravações diretas, ao vivo, (quase) sem depurações ou acréscimos.
Para esta música confluem elementos de vários territórios sonoros, em que Lotz
se tem movimentando ao longo dos anos, estudando diferentes tradições, cruzando
fronteiras, colaborando com músicos de múltiplas áreas. «Isso molda o que sou
hoje. É impossível excluir partes da minha identidade. Ainda assim, o fio
condutor é o jazz, a música humana e social na improvisação.»
Em “Freshta”, porém, quase não há jazz, pelo menos com um
suíngue de matriz norte-americana; tudo é interpelado segundo uma perspectiva
europeia, mesmo quando musicalmente se acomodam elementos de outras geografias.
Da peça de abertura, “Durgas Lalit”, dedicada a Durga Gawde (artista, ativista
e pessoa não-binária), emerge uma aura misteriosa, mas energética, com as notas
límpidas da flauta, usando uma escala indiana, depois esta em uníssonos e
contrapontos com o piano, entrando então em cena a dupla rítmica. Lotz usou o
raga “Lalit”, «um raga muito forte e que mostra muitas faces». A música
transporta-nos para um lugar distante, mas ao mesmo tempo tão próximo. “For
Viji”, introduzida pelo violoncelo, é uma peça de recorte elegante, com a
flauta a elevar-se. Mais enérgica e buliçosa é a peça que dá título ao álbum,
curta, mas eloquente, com um balanço instável; “Frouzan” começa lenta,
adquirindo depois outro nervo (tal como Freshta Kohistani, Frouzan Safi foi
executada pelos talibãs em Mazar-e-Sharif.) “Hasina” é de um balanço leve e
planante, com o violoncelo no centro do que acontece. “Isabel” é de novo
introduzida pelo violoncelo, que lança um profícuo diálogo entre flauta e
clarinete, dele emanando, primeiro, uma soberba declaração da loquaz flauta de
Lotz; depois, é o clarinete que também diz o que lhe vai na alma. No final, os
dois instrumentos juntam-se numa vívida dança. Em “Mahbouba” estamos no centro
de um jardim com plantas frondosas, fontes de água corrente e pássaros, numa
peça que remete para a polifonia europeia. (Mahbouba Seraj, jornalista, é uma
mulher forte, educada e inteligente. Uma guerreira silenciosa a lidar com
questões complexas, traços refletidos no entrelaçamento de três melodias e no
final repentino, retratando o vazio que se segue.) Esse lado é também
potenciado pelo arranjo solene, mas fluido, de “Malala”, onde Lotz assina um
dos melhores solos do álbum; a dois minutos do seu ocaso, a peça adquire um tom
mais pungente, com uma bela melodia desenhada pelo piano. “Malalai” é ritmicamente
mais vibrante, com um balanço que guia as deambulações cruzadas de clarinete e
flauta, que solam à vez, pegando em ideias mútuas e esticando-as q.b. (notável
solo do clarinetista). “Nasrin” é mais sombria e dramática – com o piano a soar
mais jazzístico, bateria com escovas – uma balada fumarenta de recorte vintage
tingida por elementos da tradição musical erudita. A encerrar o álbum, uma
homenagem ao poder das mulheres africanas: “Wangari” (a queniana Wangari Muta
Maathai foi a primeira mulher africana a ganhar o Prémio Nobel da Paz em 2004
pela sua contribuição para o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz)
é uma peça profundamente imagética assente numa célula lenta, estável e quieta,
a antítese do mundo turbulento e perigoso em que (ainda) habitamos.
Faixas
1.Freshta 02:44
2.Malalai 04:05
3.Malala 06:39
4.Durga's Lalit 08:06
5.Nasrin
05:04
6.Isabel
05:52
7.Wangari
07:38
8.Frouzan
05:41
9.Mahbouba
03:25
10.Hasina
06:47
11.For
Viji 04:16
Músicos: Mark Lotz (flauta, efeitos); Claudio Puntin (clarinetes, outros instrumentos); Jörg Brinkmann (violoncelo, efeitos); Jeroen van Vliet (piano, efeitos); Dirk-Peter Kölsch (bateria).
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