Num dos melhores momentos de uma carreira já reconhecida e
sedimentada, Rodrigo Amado não poderia deixar a sua marca da melhor maneira no
ano de 2023. Depois de discos relevantes como “The Field”, do Motion Trio e já
com a participação de Alexander Von Schlippenbach; “Let The Free Be Men” ou “A History of
Nothing”, com Joe McPhee, Kent Keesler e Chris Corsano; “Love Ghosts” do trio The Attic, ou mesmo do
seu disco solo “Refraction Solo (Live at Church of The Holy Ghost)”, entre
muitos outros, Rodrigo Amado apresenta agora uma nova formação, o quarteto
Rodrigo Amado The Bridge, com o disco “Beyond the Margins”, lançado em Outubro,
produzido pelo próprio e com produção executiva de Konstantin Drobil, mistura por
Joaquim Monte e Rodrigo Amado e masterização por David Zuchowski. Mais uma vez,
o saxofonista promove um encontro de músicos com diferentes origens e
experiências, que constroem um todo coeso, intrincado e explosivo.
Além da música, Rodrigo Amado tem um trabalho construído no
campo da fotografia, sendo a imagem um elemento que se destaca nas capas dos
seus discos, e que volta a sobressair agora. Com uma estética sempre muito
pensada, também definidora da sua essência como artista, a pintura de Miguel Navas
#122 da série “Uncertain Smile - Paisagens de um tempo incerto”, surge na capa
de “Beyond the Margins” a apresentar-se como um cartão de visita. À partida
pode dizer-se que qualquer capa poderá definir-se assim. Contudo, Rodrigo Amado
conseguiu construir aqui uma espécie de trilogia artística perfeita entre o
nome do quarteto, “The Bridge”, o título dado ao disco, “Beyond the Margins”, e
o título da pintura de capa, “Uncertain Smile – Paisagens de um tempo incerto”,
porque o disco “Beyond the Margins” demonstra que há mundos que podem unir-se
além das margens, que pontes podem ser construídas, mesmo que a incerteza
perdure e os sorrisos dúbios se instalem – é o constante desafio de arriscar
num tempo incerto, de vidas e mundos incertos e, simultaneamente, tendo a
certeza de que a incerteza também se alimenta pela procura constante e pela
recusa da acomodação.
O encontro do quarteto Rodrigo Amado The Bridge tem uma
importância significativa para a dinâmica do free jazz atual, quem sabe até
histórica no desenvolvimento deste gênero, o futuro assim o dirá, pois reúne
músicos de diferentes gerações, com percursos muito marcados, no bom sentido,
até determinantes, na construção da linguagem e estética do free jazz e da
música criativa e de improvisação livre. Analisando o surgimento e a história
do free jazz ao longo dos anos, conhece-se a sua origem e dinâmica nos EUA, bem
como o desdobramento e desenvolvimento de uma variante sua europeia. Ambas com
um tronco comum no que toca à liberdade criativa e à democracia na música, mas
com muitos elementos musicais distintos, como por exemplo a presença de alguma
estrutura na música, nomeadamente rítmica, ou a sua total abstração. Aqui se
vislumbra a importância do encontro deste quarteto, que se concretiza na gravação
deste disco, pois revela-se na união de músicos que contêm linguagens com forte
presença destas duas influências estéticas, que agora se unem: Rodrigo Amado no
saxofone tenor, Alexander Von Schlippenbach no piano, Ingebrigt Håker Flaten no
contrabaixo e Gerry Hemingway na bateria e voz. Todos estes músicos são
referências internacionais e já tocaram com grandes nomes dos gêneros musicais
referidos, sendo que Alexander Von Schlippenbach criou a Globe Unity Orchestra
nos anos 60, onde participou Peter Brötzmann, sendo uma das origens, se não a
principal, dessa variante europeia de free jazz.
Mesmo com toda esta combinação de elementos distintos, sobressai neste álbum, com bastante evidencia, a forte ascendência do jazz americano sobre a música de Rodrigo Amado. Inicia-se desde logo com a homenagem que faz a Sonny Rollins pelo nome dado a este quarteto, “The Bridge”, título de um disco deste saxofonista americano, bem como a revisitação na terceira faixa à música de Albert Ayler, “Ghosts”.
O disco contém três faixas, sendo a primeira, “Beyond the
Margins”, uma longa e rica viagem de pouco mais de 40 minutos que, por si só,
já poderia ser considerada um “tratado” musical, pois comporta em si,
conjuntamente, um pouco da estrutura de um bebop tardio (com todas as
influências prévias acumuladas), do free jazz e da música improvisada (talvez
para um ouvido mais atento, encontrar-se-á também presença de punk rock). De
uma forma aparentemente simples, dada a sua fluidez, mas com uma complexidade
muito densa, o álbum consegue aglutinar o mundo sonoro americano e europeu num
só. Há momentos em que se encontram ambientes com estruturas harmónicas, com
frases melódicas e rítmicas definidas, com esboços de temas musicais a
desenvolver, inclusive em ritmo de swing, mas que acabam por se desconstruir
para a liberdade total criativa. É a fuga do mundo tonal para a atonalidade, a
procura de pulso irregular e o largar do certo para caminhar no incerto. Há uma
busca constante pela construção e pela desconstrução. A procura do som, do
timbre, a interação, o diálogo com respeito, estão sempre lá, havendo momentos
de improvisação a evidenciar um solista e outros com espaço para improvisação
coletiva. Este ambiente perdura pelas duas faixas seguintes, agora bastante
menores e com um maior destaque para a condução e presença de Rodrigo Amado,
com o já característico som orgânico e simultaneamente vigoroso do seu
saxofone, bem como da sua inquietação musical habitual. A salientar novamente a
ousadia deste músico, com uma certa dose de saída da zona de conforto,
nomeadamente na terceira faixa, com a interpretação de “(Visiting) Ghosts”, a
surgir com abordagens mais desafiantes, na busca de uma maior radicalização da
textura da linguagem. Nenhum dos músicos sobressai de forma particular, embora,
destacando-se em coletivo na sua individualidade, pois encontram-se todos com
grande entrosamento, desde a polirritmia sensível da bateria, ao polimorfismo
denso do piano, ao fraseado ágil do contrabaixo, à interpelação técnica
desenvolta do saxofone. Tudo o que é difícil torna-se simples. “Beyond the
Margins” é uma teia complexa de caminhos, de uma intensidade tão desafiadora,
que a sua necessidade não é a busca de saída, mas sim o encontro da
possibilidade que nos permita mantermo-nos nela. É uma teia de margens, pontes,
caminhos, paisagens e possibilidades incertas, mas agradavelmente
transformadoras. Não será de todo exagerado afirmar-se que este disco surgirá,
muito provavelmente, como um dos melhores do ano de 2023.
Faixas:
1.Beyond
The Margins 40:30
2.Personal
Mountains 07:41
3.(Visiting) Ghosts 07:47
Músicos: Rodrigo Amado— saxofone tenor; Alexander von Schlippenbach— piano;Ingebrigt Håker Flaten— contrabaixo; Gerry Hemingway — bateria, voz
Fonte: SOFIA RAJADO (jazz.pt)
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