O que acontece quando se junta metade de um quarteto
norueguês fortemente tingido de Americana, blues, cowboy rock e moldura jazz, e
um duo de improvisadores japoneses, os Dōjō (koto elétrico e bateria)?
Certamente nada de antecipável e tudo de estimulante. Depois de mais de duas
décadas, seis álbuns e muitas atuações ao vivo, os Chrome Hill são parte de
leão nas vidas criativas do guitarrista Asbjørn Lerheim e do contrabaixista Roger
Arntzen (e também do saxofonista Atle Nymo e do baterista e vibrafonista
Torstein Lofthus, aqui ausentes). Na Clean Feed, já editaram “The Explorer” (2018) e “This is Chrome Hill”
(2021).
Mas puxemos atrás a fita do tempo. Em 2014, Lerheim e
Arntzen tiverem ensejo de se deslocar a Tóquio para frequentar o Hokuo Music
Fest, um evento para bandas nórdicas que procuravam entrar no sempre difícil
mercado nipónico; aproveitaram para lançar as sementes de uma futura digressão,
que viria a concretizar-se logo no ano seguinte. Nessa altura, partilharam um
concerto no clube SuperDeluxe, na culturalmente movimentada zona de Roppongi,
na capital, com a tocadora de koto elétrico (nas suas versões de 17 e 21
cordas), Michiyo Yagi, que então se apresentava em duo com o baterista (e
cantor), lenda do krautrock, Mani Neumeier, mais conhecido pelo seu trabalho
nos Guru Guru.
Impressionados com a prestação de Yagi, Lerheim e Arntzen
logo pensaram na possibilidade de incorporar a sua sonoridade muito especial na
música dos Chrome Hill, o que viria a acontecer em 2019, quando o grupo a
convidou e ao baterista Noritaka Tanaka (que conhecemos, por exemplo, do
quarteto do saxofonista Keefe Jackson, no excelente “Seeing You See”, de 2010)
para se lhes juntarem em palco, no Koen-Dori Classics em Shibuya, Tóquio. Está
bom de ouvir: dois bateristas a gerarem torrentes energéticas, três
cordofonistas e um saxofonista foi uma experiência de tal modo marcante que o
grupo escandinavo não quis deixar de continuar a explorar.
Em 2020, perante a impossibilidade de regressarem ao Japão
com a formação completa, os Chrome Hill optaram por se apresentarem em formato
redux, o Chrome Hill Duo, que funciona como uma espécie de versão de câmara do
quarteto. Uma vez que Tanaka se havia mudado para Kyushu, Yagi sugeriu o
baterista Tamaya Honda, seu cúmplice de longa data no duo Dōjō e noutros
projetos. O quarteto assim engendrado – Lerheim, Arntzen, Yagi, Honda –
apresentou-se duas vezes em Tóquio, em janeiro de 2020, mesmo antes de a
pandemia nos virar o mundo do avesso; primeiro no Koen-Dori Classics, e depois
no conhecido clube de jazz Aketa No Mise (onde, recorde-se, Michiyo Yagi já
havia gravado um disco com outro duo de noruegueses, o contrabaixista Ingebrigt
Håker Flaten e o baterista Paal Nilssen-Love, “Decayed - Live! at Aketa No
Mise”, em dezembro de 2015). Atrasos motivados pela situação que então se vivia
fizeram com que só em 2023 o disco visse a luz do dia, pela mão da Clean Feed.
Ambas as atuações consistiram em sets individuais pelo
Chrome Hill Duo e Dōjō, que aquecerem os motores para o que se seguiria: quando
os dois duos se juntaram e formaram um superquarteto (sem fusões ou
subordinações), os níveis energéticos subiram exponencialmente e aconteceu a
junção de universos sónicos aparentemente imiscíveis: cowboy meets japanese
psychedelia, atmosfera muito bem captada na capa assinada por Gonçalo Falcão. O
belíssimo som da guitarra de Lerheim – com reminiscências tanto de Ry Cooder
como de Hank Marvin – encontra comparsa ideal no koto elétrico de Yagi, tanto
em sublinhados como em admiráveis contrastes, sobretudo nas partes livremente
improvisadas. Também na componente rítmica tudo funcionou, com Arntzen e Honda
a revelar um entrosamento que tanto fornece o combustível que empurra o resto
grupo para a frente, como injeta quietude e magia.
Os oito minutos da peça de abertura, “Dust Devil”, remetem
para um ambiente inóspito, desértico, turbilhões de pó e tufos de erva morta,
uma lonjura seca; as guitarras planam, a percussão pontua, texturas em
permanente mutação: a rarefação inicial dá lugar a um ambiente sufocante. Ainda
com a função respiratória afetada, escutamos a lenta e arrastada “Country of
Lost Brothers”, da qual emerge uma melodia encantatória de um espaço e espaço
indefinidos. A atmosfera delicadamente inquietante de “Long Shadows” tem uma
guitarra esparsa de onde brotam notas lindíssimas e um contrabaixo a aditar uma
camada de dramatismo.
Mais intensa é “Ascend”, onde à guitarra em brasa se juntam
laivos da tradição oriental, contrabaixo e percussão agitados, massa sonora
fluindo diante dos nossos ouvidos. Com o seu psicadelismo incandescente, “What
Lies Beneath” é o momento da libertação das tensões que pressentíamos latentes,
guitarra solta, contrabaixo obsessivo, bateria flamejante. Num contraste que
serve de bálsamo, “10-4” é etérea, com a guitarra do mundo ocidental a aliar-se
ao koto japonês para construir um som misterioso e particularmente imagético. A
onírica “Clockwork” lembra algumas explorações floydianas da viragem de
sessentas para setentas, com a superior guitarra de Asbjørn Lerheim no centro
de tudo o que acontece. “Partly Particle” encerra o álbum num regime turbulento
de exploração livre, com os quatro músicos a contribuírem de forma equitativa
para o cômputo.
“Live at Aketa No Mise” é um álbum que espelha como poucos
essa indefinível surpresa causada pela espontaneidade e urgência da música
criada em tempo real. Ouçamo-la sem moderação.
Faixas
1.Dust
Devil 09:02
2.Country
of Lost Borders 09:32
3.Long
Shadows 06:24
4.Ascend
07:15
5.What
Lies Beneath 08:40
6.10-4 08:36
7.Clockwork 06:53
8.Partly Particle 04:34
Músicos :Chrome Hill Duo: Asbjørn Lerheim— guitarra barítono elétrica, eletrônica; Roger Arntzen— contrabaixo, eletrônica; Dōjō: Michiyo Yagi— koto elétrico de 21 cordas, eletrônica;Tamaya Honda— bateria.
Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)
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