Desta vez a espera não se tornou tão longa. “Something to
Believe In”, o terceiro álbum do contrabaixista e compositor Nuno Campos (n.
1979) na condição de líder, surge três anos após o anterior “TaCatarinaTen”,
que havia sido editado uma década após a estreia com “My Debut For the Ones
Close to Me”, com chancela da Fresh Sound New Talent de Jordi Pujol. Se no
começo tinha um pé no clássico e outro no jazz, a que acrescentou uma formação
em teatro, como ator e encenador, optou por focar-se no jazz e no contrabaixo.
Estudou em Barcelona com Mario Rossy, Toni Garcia Araque e Horacio Fumero, dentre
outros. Como sideman tocou com Alex Fraile, Matteo Sacilotto, Paulo
Gomes, Ricardo Barriga e a cantora Mariana Vergueiro (autora do texto de
apresentação, onde se lê: «Somos tão pequenos na nossa finitude e tão audazes
na sua superação.»)
“Something to Believe In”, de novo com edição do Carimbo
Porta-Jazz, expande esse conceito pivotal, o desejo de chegar mais longe, de
cruzar fronteiras e seguir em frente, «ao fato de que o ser humano necessita
sempre algo em que acreditar», como explica Nuno Campos à jazz.pt. O músico
portuense reitera o quarteto do anterior registro, que se completa com o
saxofonista José Pedro Coelho, o pianista Miguel Meirinhos e o baterista
Ricardo Coelho. Tudo radica numa viagem que o grupo fez ao Cairo, para um
concerto. Foi escrito num período temporal curto, mas é ao mesmo tempo um álbum
pensado. E o resultado dos temos da pandemia foi que o contrabaixista frequentou
uma licenciatura (a sua terceira) em Composição. «Atualmente vivemos uma era
massiva de informação e ao mesmo tempo de desinformação. Uma era que denota uma
fragilidade psicológica muita grande. Uma falta enorme de tempo de convívio com
o nosso interior e consequentemente a falta de desejo e sonho individualizado.
Eu procuro o meu eu verdadeiro e algo em que acreditar.»
Após a viagem ao Egito, e partindo de um fascínio antigo
pela história e cultura do país, começou a germinar uma vontade de compor em
volta da mitologia egípcia. Nuno Campos revela um pouco da experiência: «Esta
viagem foi um momento grande de diversão e conexão do grupo, até porque fomos
com tempo para fazer turismo e conviver. Ao mesmo tempo coincidiu com momentos
importantes da vida de alguns de nós.» Com muitas ideias na cabeça por
explorar, procurou, durante o processo criativo, equilibrar composição e
improvisação. «Apesar de a música estar largamente escrita, também há margem em
muitos momentos para interação de grupo. Sempre com uma direção e premissas
claras de improvisação e sempre em prol do material escrito», realça Campos. No
final das contas, «confundir o ouvinte».
À volta da história de cada deus, o músico formulou um
conjunto de ideias e conjeturas musicais que verteu nas composições.
Seguiram-se alguns ensaios de leitura dos temas para clarificar as diretrizes
de improvisação, uma gravação caseira, um concerto de teste e, por fim, o
registro final no estúdio CARA (Centro de Alto Rendimento Artístico), em
Matosinhos. Ao mesmo tempo que revelam complexidade rítmica, em muitos momentos
numa linguagem quase atonal, destas composições avulta uma evidente dimensão
melódica que se torna central no cômputo sonoro, para o qual os outros três
músicos também contribuem de forma decisiva. «Sinto que somos todos muito
diferentes e que de alguma forma conseguimos um balanço muito bom. A energia
musical, sobretudo, é maravilhosa. Ensaiamos muito pouco e esse é o processo. A
procura de espontaneidade entre músicos com uma grande dose de escuta e
flexibilidade para poder seguir qualquer caminho.»
A música que escutamos é sóbria e elegante, que vive muito da interação entre o trio piano-contrabaixo-bateria e o saxofone, criando diferentes atmosferas. Sobressaem as formas longas, como se se tratasse de uma suíte orquestral, onde se articulam várias camadas e vozes. Nuno Campos desenvolve: «A música estava programada e escrita para cada deus e os solos estão integrados como um desenvolvimento do tema escrito e ou motivo do tema, tal como se tivesse composto para uma orquestra em que os músicos tinham todos as suas partes escritas, mas no desenvolvimento improvisam.» A viagem começa com “The Beggining”, de linhas melódicas angulares e métrica não quadrada, com toda a formação a explanar a direção, ficando então o piano desacompanhado, a que se junta o saxofone, secção rítmica delicada, e a voz de João Pamplona, que recita um texto sobre Ra e outras figuras mitológicas. O maior dinamismo rítmico de “Ra” (deus do sol e de toda a criação; as seis partes em que a peça se reparte, derivadas umas das outras, reflete essa omnipresença) funda-se num motivo explanado em uníssono por piano e saxofone, com o contrabaixo carnudo do líder a adquirir proeminência num bom solo; uma secção em trio de piano-contrabaixo-bateria mostra como os três interagem com propósito e num crescendo de intensidade, com o saxofone a voar seguro. No estertor, tudo serena.
Peça quase integralmente escrita e de pendor de certa forma
mais camerístico, “Anubis” – também uma homenagem a Béla Bartók, por via do uso
de técnicas composicionais suas – é introduzida pelo piano misterioso, a que se
junta o contrabaixo que Campos toca com arco, em linhas que se entrelaçam com
as do saxofone, com o baterista a aditar delicadeza, numa peça de meticulosa
arquitetura. En “Shu” (deus do ar, da paz, do vento) regressa a pura agitação
rítmica, levando o quarteto para terrenos mais instáveis; de uma passagem mais
calma, em trio (saxofone ausente), eleva-se uma intervenção valiosa do líder.
José Pedro Coelho engendra então pujante solo, sob o signo coltraneano. Tema
composto, mas não escrito, “Para Cátia” é um tributo emocional a alguém muito
próximo. O baterista introduz “Nha Toi” (sem perder lugar no centro do que
acontece nos seis minutos seguintes) e passa a palavra para uma peça luminosa,
fundada nos diálogos entre piano e saxofone (o motivo-base retoma o da peça
anterior), dedicada a um suposto deus do amor, não egípcio, mas universal.
História de amor e sacrifício (Osíris foi morto e
esquartejado pelo irmão Seth, deus da desordem e da guerra, que queria governar
o reino e Isis consegue reconstruir o corpo do marido e ainda gerar um filho),
“Osiris and Isis” é sinuosa e de pulsação irregular, inquietante, com notas
esparsas do piano e o saxofone a planar, sempre atento. A fechar, “Seth”, de
contornos mais abstratos (notar a improvisação livre que lhe dá mote), com
Campos de novo a recorrer ao arco, o piano econômico, o saxofone sussurrante, a
bateria meticulosa; um interlúdio de contrabaixo dá início a uma segunda parte,
de linhas mais claras, a evidenciar novamente a articulação entre Meirinhos e
Coelho.
“Something to Believe In” é o disco mais ambicioso de Nuno
Campos e certamente o mais recompensador, lançando pistas claras para o que os
próximos, já na calha: um baseado no livro “O Cavaleiro da Armadura
Enferrujada”, de Robert Fisher, com quinteto de jazz e quarteto de cordas, e um
disco solo. E assim Nuno Campos consolida-se como um nome cujo trabalho há que
continuar a acompanhar de perto.
Faixas
1 The Begining
2 Ra
3 Anubis
4 Shu
5 Para Cátia
6 Nha Toi
7 Osiris and Isis
8 Seth
Músicos :Nuno Campos— composição, contrabaixo; José Pedro Coelho— saxofone tenor; Miguel Meirinhos— piano; Ricardo Coelho— bateria; João Pamplona— voz em “The Beggining”
Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)
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