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sábado, 3 de fevereiro de 2024

NUNO CAMPOS 4TET - SOMETHING TO BELIEVE IN (Carimbo Porta-Jazz)

Desta vez a espera não se tornou tão longa. “Something to Believe In”, o terceiro álbum do contrabaixista e compositor Nuno Campos (n. 1979) na condição de líder, surge três anos após o anterior “TaCatarinaTen”, que havia sido editado uma década após a estreia com “My Debut For the Ones Close to Me”, com chancela da Fresh Sound New Talent de Jordi Pujol. Se no começo tinha um pé no clássico e outro no jazz, a que acrescentou uma formação em teatro, como ator e encenador, optou por focar-se no jazz e no contrabaixo. Estudou em Barcelona com Mario Rossy, Toni Garcia Araque e Horacio Fumero, dentre outros. Como sideman tocou com Alex Fraile, Matteo Sacilotto, Paulo Gomes, Ricardo Barriga e a cantora Mariana Vergueiro (autora do texto de apresentação, onde se lê: «Somos tão pequenos na nossa finitude e tão audazes na sua superação.»)

“Something to Believe In”, de novo com edição do Carimbo Porta-Jazz, expande esse conceito pivotal, o desejo de chegar mais longe, de cruzar fronteiras e seguir em frente, «ao fato de que o ser humano necessita sempre algo em que acreditar», como explica Nuno Campos à jazz.pt. O músico portuense reitera o quarteto do anterior registro, que se completa com o saxofonista José Pedro Coelho, o pianista Miguel Meirinhos e o baterista Ricardo Coelho. Tudo radica numa viagem que o grupo fez ao Cairo, para um concerto. Foi escrito num período temporal curto, mas é ao mesmo tempo um álbum pensado. E o resultado dos temos da pandemia foi que o contrabaixista frequentou uma licenciatura (a sua terceira) em Composição. «Atualmente vivemos uma era massiva de informação e ao mesmo tempo de desinformação. Uma era que denota uma fragilidade psicológica muita grande. Uma falta enorme de tempo de convívio com o nosso interior e consequentemente a falta de desejo e sonho individualizado. Eu procuro o meu eu verdadeiro e algo em que acreditar.»

Após a viagem ao Egito, e partindo de um fascínio antigo pela história e cultura do país, começou a germinar uma vontade de compor em volta da mitologia egípcia. Nuno Campos revela um pouco da experiência: «Esta viagem foi um momento grande de diversão e conexão do grupo, até porque fomos com tempo para fazer turismo e conviver. Ao mesmo tempo coincidiu com momentos importantes da vida de alguns de nós.» Com muitas ideias na cabeça por explorar, procurou, durante o processo criativo, equilibrar composição e improvisação. «Apesar de a música estar largamente escrita, também há margem em muitos momentos para interação de grupo. Sempre com uma direção e premissas claras de improvisação e sempre em prol do material escrito», realça Campos. No final das contas, «confundir o ouvinte».

À volta da história de cada deus, o músico formulou um conjunto de ideias e conjeturas musicais que verteu nas composições. Seguiram-se alguns ensaios de leitura dos temas para clarificar as diretrizes de improvisação, uma gravação caseira, um concerto de teste e, por fim, o registro final no estúdio CARA (Centro de Alto Rendimento Artístico), em Matosinhos. Ao mesmo tempo que revelam complexidade rítmica, em muitos momentos numa linguagem quase atonal, destas composições avulta uma evidente dimensão melódica que se torna central no cômputo sonoro, para o qual os outros três músicos também contribuem de forma decisiva. «Sinto que somos todos muito diferentes e que de alguma forma conseguimos um balanço muito bom. A energia musical, sobretudo, é maravilhosa. Ensaiamos muito pouco e esse é o processo. A procura de espontaneidade entre músicos com uma grande dose de escuta e flexibilidade para poder seguir qualquer caminho.»

A música que escutamos é sóbria e elegante, que vive muito da interação entre o trio piano-contrabaixo-bateria e o saxofone, criando diferentes atmosferas. Sobressaem as formas longas, como se se tratasse de uma suíte orquestral, onde se articulam várias camadas e vozes. Nuno Campos desenvolve: «A música estava programada e escrita para cada deus e os solos estão integrados como um desenvolvimento do tema escrito e ou motivo do tema, tal como se tivesse composto para uma orquestra em que os músicos tinham todos as suas partes escritas, mas no desenvolvimento improvisam.» A viagem começa com “The Beggining”, de linhas melódicas angulares e métrica não quadrada, com toda a formação a explanar a direção, ficando então o piano desacompanhado, a que se junta o saxofone, secção rítmica delicada, e a voz de João Pamplona, que recita um texto sobre Ra e outras figuras mitológicas. O maior dinamismo rítmico de “Ra” (deus do sol e de toda a criação; as seis partes em que a peça se reparte, derivadas umas das outras, reflete essa omnipresença) funda-se num motivo explanado em uníssono por piano e saxofone, com o contrabaixo carnudo do líder a adquirir proeminência num bom solo; uma secção em trio de piano-contrabaixo-bateria mostra como os três interagem com propósito e num crescendo de intensidade, com o saxofone a voar seguro. No estertor, tudo serena.

Peça quase integralmente escrita e de pendor de certa forma mais camerístico, “Anubis” – também uma homenagem a Béla Bartók, por via do uso de técnicas composicionais suas – é introduzida pelo piano misterioso, a que se junta o contrabaixo que Campos toca com arco, em linhas que se entrelaçam com as do saxofone, com o baterista a aditar delicadeza, numa peça de meticulosa arquitetura. En “Shu” (deus do ar, da paz, do vento) regressa a pura agitação rítmica, levando o quarteto para terrenos mais instáveis; de uma passagem mais calma, em trio (saxofone ausente), eleva-se uma intervenção valiosa do líder. José Pedro Coelho engendra então pujante solo, sob o signo coltraneano. Tema composto, mas não escrito, “Para Cátia” é um tributo emocional a alguém muito próximo. O baterista introduz “Nha Toi” (sem perder lugar no centro do que acontece nos seis minutos seguintes) e passa a palavra para uma peça luminosa, fundada nos diálogos entre piano e saxofone (o motivo-base retoma o da peça anterior), dedicada a um suposto deus do amor, não egípcio, mas universal.

História de amor e sacrifício (Osíris foi morto e esquartejado pelo irmão Seth, deus da desordem e da guerra, que queria governar o reino e Isis consegue reconstruir o corpo do marido e ainda gerar um filho), “Osiris and Isis” é sinuosa e de pulsação irregular, inquietante, com notas esparsas do piano e o saxofone a planar, sempre atento. A fechar, “Seth”, de contornos mais abstratos (notar a improvisação livre que lhe dá mote), com Campos de novo a recorrer ao arco, o piano econômico, o saxofone sussurrante, a bateria meticulosa; um interlúdio de contrabaixo dá início a uma segunda parte, de linhas mais claras, a evidenciar novamente a articulação entre Meirinhos e Coelho.

“Something to Believe In” é o disco mais ambicioso de Nuno Campos e certamente o mais recompensador, lançando pistas claras para o que os próximos, já na calha: um baseado no livro “O Cavaleiro da Armadura Enferrujada”, de Robert Fisher, com quinteto de jazz e quarteto de cordas, e um disco solo. E assim Nuno Campos consolida-se como um nome cujo trabalho há que continuar a acompanhar de perto.

Faixas

1 The Begining

2 Ra

3 Anubis

4 Shu

5 Para Cátia

6 Nha Toi

7 Osiris and Isis

8 Seth

Músicos :Nuno Campos— composição, contrabaixo; José Pedro Coelho— saxofone tenor; Miguel Meirinhos— piano; Ricardo Coelho— bateria; João Pamplona— voz em “The Beggining”

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

 

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