Em “Rayuela”
(em Portugal com o título “O Jogo do Mundo”), livro publicado em 1963 por Julio
Cortázar, há algo de premonitório para o que aqui nos traz: «Há ausências que
representam um verdadeiro triunfo.» O grande escritor argentino estaria longe
de pensar que seis décadas depois esta sua frase assentaria como uma luva no
novo álbum solo de Camila Nebbia, sua compatriota e uma das figuras mais
destacadas da diáspora jazzística daquele país da América do Sul. Apesar da sua
juventude, a saxofonista, compositora, improvisadora e artista
multidisciplinar, atualmente radicada em Berlim, tem vertido a sua visão
idiossincrática em relação à música e ao instrumento através de um notável
conjunto de álbuns, como “A veces la luz de lo que existe resplandece solamente
a la distancia” (2017), “De este lado” (2019), “Aura” (2020) , “Corre el río de
la memoria” e “Presencias” (ambos de 2021) ou “Ritual para acercarse”, editado
em 2022, gravado por um quarteto em que também pontifica a trompetista
portuguesa Susana Santos Silva, outra voz em meteórica ascensão no plano
internacional. Já este ano editou também “La permanencia de los ecos”. Da sua
extensa lista de colaborações constam, entre outros, os nomes de Michael
Formanek, Andrea Parkins, Tom Rainey, Violeta García, Axel Filip, e da também
portuguesa Sofia Borges, compositora e percussionista, com quem se apresentou
em duo na edição de 2023 do Jazz no Parque, no Porto.
Neste seu
álbum solo “Una ofrenda a la ausencia”, com selo da Relative Pitch de Kevin
Reilly, Nebbia empreende um exercício de redução à essência, desacompanhada,
preferindo despojar-se de outros contributos para ir resoluta e diretamente ao
verdadeiro cerne da sua demanda artística, focada na improvisação e na
manipulação da matéria sonora. Consigo está apenas o saxofone tenor, embora
também recorra a efeitos eletrônicos e à utilização da sua própria voz, em modo
palavra falada. Em telegráfica nota de apresentação do álbum, refere que
pretende «explorar em profundidade a crueza, a aspereza e a rugosidade do som,
abraçando as expressões intensas e não filtradas que emergem da ausência.»
Fundada numa estética que radica no free jazz histórico, o certo é que a
saxofonista jamais se deixa acantonar por tais balizas; os marcos referenciais
são óbvios e estão muito presentes na abordagem da saxofonista, mas ela opta
por transcender premissas e por expressar-se através de uma ampla gama de
registos sonoros e, consequentemente, das emoções que estes veiculam. Um
saxofonismo poliédrico que tanto pode ser límpido e etéreo como feérico e
brusco, muitas vezes mudando numa fração de segundos, mantendo os sentidos de
quem escuta num alerta permanente. A sua música continua a ser tão cerebral
como vigorosamente física, num processo de construção e destruição de camadas,
de memórias e fantasmas, de presenças e ausências, como parece transparecer da
imagem espectral que ilustra o álbum.
Gravado em
dezembro de 2022, em Buenos Aires, “Una ofrenda a la ausencia” é uma coleção de
16 peças, sucintas e urgentes, a mais extensa das quais não chega aos quatro
minutos de duração, o que quer dizer muito no que respeita aos propósitos da
saxofonista. A auroral “Todo se borra” diz (quase) tudo: desde logo escutamos o
sopro rugosamente livre de Camila, ora mais diáfano ora mais áspero, tudo
mudando num instante breve. Nebbia entende e trata o instrumento como um todo.
Em “Dejo que me lleve” (não será a improvisação isso mesmo?), solta-se a rédea,
emergem fragmentos melódicos para logo o sopro se tornar altivo, e ao mesmo
tempo íntimo, escutando-se as chaves do instrumento, parecendo que a
saxofonista está ali mesmo, a tocar só para nós. Mais sussurrada é “Sobre la
función del olvido”, com a voz de Camila em registo declamado a dialogar com o
saxofone. A intensidade de “Irse” dá lugar à maior clareza de “Partículas de
metal en el agua”. De estrutura mais fragmentada, “Ruinas” deixa que o silêncio
se imiscua por entre os sons que emite, e em “Entremedio” regresso o discurso
poderoso e afirmativo. Em “Algunos huecos de la memoria quedan vacíos” a
saxofonista trabalha em torno de um núcleo-base, em torno do qual ziguezagueia,
se aproxima e afasta, num jogo de ação-reação consigo própria em tempo real.
“Ríos que se cruzan” é textural e abstrata, eletrônicas a dominar; “Todo estaba
inundado”, com Camila a explorar uma vertente mais lamentosa e pungente do seu
som. “Deshabitarse” é de novo flamejante, com ecos aylerianos, e “Atravesar el
tiempo sin quebrarse” traz um contrastante esquisso melódico. “Dejar” está
entre céu e inferno, num desafiante chiaroscuro sônico. “Estar y
desaparecer, desaparecer y estar” é espiral vertiginosa e “Desvio” deambulação
consequente que convoca uma miríade de referências. “Ofrenda al vacío” é áspero
epílogo que nos devolve ao início de tudo.
“Una ofrenda
a la ausencia” é um álbum mercurial e estimulante que reitera Camila Nebbia
como uma saxofonista essencial do nosso tempo.
Faixas
1.Todo se borra 01:53
2.Dejo que me lleve 03:19
3.Sobre la función del olvido 01:57
4.Irse 02:35
5.Partículas de metal en el agua 02:37
6.Ruinas 03:51
7.Entremedio 01:40
8.Algunos huecos de la memoria quedan vacíos 03:11
9.Ríos que se cruzan 02:20
10.Todo estaba inundado 01:32
11.Deshabitarse 01:53
12.Atravesar el tiempo sin quebrarse 02:34
13.Dejar 02:45
14.Estar y desaparecer, desaparecer y estar 02:28
15.Desvío 03:14
16.Ofrenda al vacío 03:47
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