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sábado, 30 de março de 2024

CAMILA NEBBIA - UNA OFRENDA A LA AUSENCIA (Relative Pitch)

Em “Rayuela” (em Portugal com o título “O Jogo do Mundo”), livro publicado em 1963 por Julio Cortázar, há algo de premonitório para o que aqui nos traz: «Há ausências que representam um verdadeiro triunfo.» O grande escritor argentino estaria longe de pensar que seis décadas depois esta sua frase assentaria como uma luva no novo álbum solo de Camila Nebbia, sua compatriota e uma das figuras mais destacadas da diáspora jazzística daquele país da América do Sul. Apesar da sua juventude, a saxofonista, compositora, improvisadora e artista multidisciplinar, atualmente radicada em Berlim, tem vertido a sua visão idiossincrática em relação à música e ao instrumento através de um notável conjunto de álbuns, como “A veces la luz de lo que existe resplandece solamente a la distancia” (2017), “De este lado” (2019), “Aura” (2020) , “Corre el río de la memoria” e “Presencias” (ambos de 2021) ou “Ritual para acercarse”, editado em 2022, gravado por um quarteto em que também pontifica a trompetista portuguesa Susana Santos Silva, outra voz em meteórica ascensão no plano internacional. Já este ano editou também “La permanencia de los ecos”. Da sua extensa lista de colaborações constam, entre outros, os nomes de Michael Formanek, Andrea Parkins, Tom Rainey, Violeta García, Axel Filip, e da também portuguesa Sofia Borges, compositora e percussionista, com quem se apresentou em duo na edição de 2023 do Jazz no Parque, no Porto.

Neste seu álbum solo “Una ofrenda a la ausencia”, com selo da Relative Pitch de Kevin Reilly, Nebbia empreende um exercício de redução à essência, desacompanhada, preferindo despojar-se de outros contributos para ir resoluta e diretamente ao verdadeiro cerne da sua demanda artística, focada na improvisação e na manipulação da matéria sonora. Consigo está apenas o saxofone tenor, embora também recorra a efeitos eletrônicos e à utilização da sua própria voz, em modo palavra falada. Em telegráfica nota de apresentação do álbum, refere que pretende «explorar em profundidade a crueza, a aspereza e a rugosidade do som, abraçando as expressões intensas e não filtradas que emergem da ausência.» Fundada numa estética que radica no free jazz histórico, o certo é que a saxofonista jamais se deixa acantonar por tais balizas; os marcos referenciais são óbvios e estão muito presentes na abordagem da saxofonista, mas ela opta por transcender premissas e por expressar-se através de uma ampla gama de registos sonoros e, consequentemente, das emoções que estes veiculam. Um saxofonismo poliédrico que tanto pode ser límpido e etéreo como feérico e brusco, muitas vezes mudando numa fração de segundos, mantendo os sentidos de quem escuta num alerta permanente. A sua música continua a ser tão cerebral como vigorosamente física, num processo de construção e destruição de camadas, de memórias e fantasmas, de presenças e ausências, como parece transparecer da imagem espectral que ilustra o álbum.

Gravado em dezembro de 2022, em Buenos Aires, “Una ofrenda a la ausencia” é uma coleção de 16 peças, sucintas e urgentes, a mais extensa das quais não chega aos quatro minutos de duração, o que quer dizer muito no que respeita aos propósitos da saxofonista. A auroral “Todo se borra” diz (quase) tudo: desde logo escutamos o sopro rugosamente livre de Camila, ora mais diáfano ora mais áspero, tudo mudando num instante breve. Nebbia entende e trata o instrumento como um todo. Em “Dejo que me lleve” (não será a improvisação isso mesmo?), solta-se a rédea, emergem fragmentos melódicos para logo o sopro se tornar altivo, e ao mesmo tempo íntimo, escutando-se as chaves do instrumento, parecendo que a saxofonista está ali mesmo, a tocar só para nós. Mais sussurrada é “Sobre la función del olvido”, com a voz de Camila em registo declamado a dialogar com o saxofone. A intensidade de “Irse” dá lugar à maior clareza de “Partículas de metal en el agua”. De estrutura mais fragmentada, “Ruinas” deixa que o silêncio se imiscua por entre os sons que emite, e em “Entremedio” regresso o discurso poderoso e afirmativo. Em “Algunos huecos de la memoria quedan vacíos” a saxofonista trabalha em torno de um núcleo-base, em torno do qual ziguezagueia, se aproxima e afasta, num jogo de ação-reação consigo própria em tempo real. “Ríos que se cruzan” é textural e abstrata, eletrônicas a dominar; “Todo estaba inundado”, com Camila a explorar uma vertente mais lamentosa e pungente do seu som. “Deshabitarse” é de novo flamejante, com ecos aylerianos, e “Atravesar el tiempo sin quebrarse” traz um contrastante esquisso melódico. “Dejar” está entre céu e inferno, num desafiante chiaroscuro sônico. “Estar y desaparecer, desaparecer y estar” é espiral vertiginosa e “Desvio” deambulação consequente que convoca uma miríade de referências. “Ofrenda al vacío” é áspero epílogo que nos devolve ao início de tudo.

“Una ofrenda a la ausencia” é um álbum mercurial e estimulante que reitera Camila Nebbia como uma saxofonista essencial do nosso tempo.

Faixas

1.Todo se borra 01:53

2.Dejo que me lleve 03:19

3.Sobre la función del olvido 01:57

4.Irse 02:35

5.Partículas de metal en el agua 02:37

6.Ruinas 03:51

7.Entremedio 01:40

8.Algunos huecos de la memoria quedan vacíos 03:11

9.Ríos que se cruzan 02:20

10.Todo estaba inundado 01:32

11.Deshabitarse 01:53

12.Atravesar el tiempo sin quebrarse 02:34

13.Dejar 02:45

14.Estar y desaparecer, desaparecer y estar 02:28

15.Desvío 03:14

16.Ofrenda al vacío 03:47

 Fonte: ANTÔNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

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