Há uma famosa
frase atribuída a Heráclito de Éfeso: «Ninguém entra num mesmo rio uma segunda
vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já
serão outras.» Mas acabariam por ser as águas internas que ditaram a sorte do
“pai da dialética”; no final da vida foi acometido por uma hidropisia,
acumulação anormal de líquido nas cavidades do organismo. Assistido por médicos
(cujos conhecimentos ridicularizava), perguntou-lhes se seriam capazes de
transformar uma inundação em seca. Serve este proêmio para sintetizar muito do
que se passa em “The River”, o segundo álbum que junta o pianista João Paulo
Esteves da Silva, o contrabaixista Mário Franco e o baterista e percussionista
Samuel Rohrer, com chancela da Arjunamusic, editora fundada em 2012 por Rohrer.
As oito peças
do álbum são completamente improvisadas, ou «compostas instantaneamente», tal
como é referido na ficha técnica, e mostram um trio num contínuo caudal de
ideias fluido de forma natural, mudando em cada momento sem que aparentemente
haja uma verdadeira transformação. O pianista recorre a estratégias da
improvisação livre para a partir delas aprofundar, em tempo real, motivos que
monta, desmonta e remonta. E fá-lo com o imenso lastro de saber que acumulou
(também, diria, na condição de poeta), e em apertada partilha com os dois
superlativos músicos que tem a seu lado, também eles mestres na difícil arte de
fazer com que a matéria improvisada soe, amiúde, a composta. «Toda a música é
totalmente criada no momento, não há pré-pensamentos ou ideias discutidas.
Ambos os álbuns surgiram assim. Com a única diferença que para “The River”,
fizemos alguns concertos antes de ir para estúdio», começa por dizer Samuel
Rohrer à jazz.pt. Este é um aspeto que o baterista sublinha: «Também os
concertos funcionam da mesma forma, tudo é totalmente improvisado.» «É uma
forma de confiar verdadeiramente no momento e de nos ligarmos a um nível
profundo uns com os outros, mas também com o desconhecido. Nos melhores
momentos, é uma experiência verdadeiramente espiritual», acrescenta o suíço.
“The River” é
demonstração do amadurecimento da parceria, que se funda nas características
essenciais que reconhecemos nas personalidades musicais de cada um. «Os concertos
ajudaram-nos a aprofundar as ligações, a construir confiança e uma linguagem
comum. Afinal, é uma maneira muito intuitiva de tocar música juntos», reforça
Rohrer. “O segundo álbum do trio não se afasta muito dos traços fundamentais
que havíamos apreendido em “Brightbird”, o álbum inaugural da formação, de
2017. A música que nele escutamos caracteriza-se por abrir espaço ao silêncio
que emerge entre as notas, tanto parecendo importar o que escutamos como o que
não escutamos. No cômputo, resulta triunfal esse diálogo entre o perceptível e
o imperceptível, numa lógica de partilha de abordagens e vocabulários, algo
central para o que fazem em conjunto. Esse aspecto afigura-se-nos fundamental
para compreender a música do trio, por vezes perpassada por uma ideia de
canção, algo que o baterista corrobora: «Há momentos que criam uma base mais
tipo canção, para construirmos sobre. Algumas são mais abstratas, mas sempre
com uma ideia melódica em mente.»
De alguma
forma reencarnando as premissas da “third stream”, encontramos em “The River”
abundantes referências a vários quadrantes musicais, da tradição sefardita tão
cara a Esteves da Silva, ao jazz e à livre improvisação. Mas em vez de nos
concentrarmos em mapear tais marcos referenciais, ganhamos se, ao invés, nos
focarmos nos jogos intrincadamente telepáticos que se estabelecem entre os
arsenais técnicos e emocionais de cada um. O baterista reforça precisamente
esta dimensão: «relacionamo-nos principalmente com a ligação que temos entre
nós.»
A função
inicia-se com “The House Behind”: notas etéreas do piano de Esteves da Silva a
fluírem sem pressas, contrabaixo elegante e sempre atento, percussão detalhada,
fazendo Rohrer um uso completo dos materiais à disposição. O baterista introduz
o mais agitado “Loosing Memory”, com uma melodia que traz um longínquo eco
blueseiro. Na sua cadência feita de notas judiciosamente convocadas, “City
People” pouco tem de trepidante ou caótico, com Rohrer a propor um padrão
rítmico que envolve o fraseado sereno de Esteves da Silva. A atmosfera mais
enigmática de “Concerning the Ice” é-nos apresentada pelo baterista, a que se
vem juntar um Franco que recorre ao arco para acrescentar uma solenidade
pungente; as notas esparsas de piano deixam tudo em suspenso. Mesmo no final
eleva-se uma melodia que parece anunciar uma insondável transformação química.
De grande beleza, jamais óbvia, “Passing Wind” coloca em confronto a imaginação
de quem escuta e aquilo que realmente acontece.
Com um título
que parece aludir ao equilíbrio – pivotal na música do trio – entre razão e
emoção, “Head/Heart” é uma peça mais nervosa, exponenciando os índices de
interação entre os três músicos. “From Below” é um monumento melódico,
esculpido com apurada sensibilidade pelo trio, a começar com o piano sublime de
Esteves da Silva, ecoando algumas das suas referências mediterrânicas,
impressionando a leveza da secção rítmica. “Lost Small Things”, de uma doçura
nostálgica, revela também momentos onde o piano adquire uma notoriedade como
que inescapável, imenso ímã que tudo atrai. “Smoke Signals” encerra o disco
numa atmosfera positiva, parecendo querer alertar-nos para um dos grandes
problemas do nosso tempo que é, paradoxalmente, a comunicação, ou a falta dela.
Estamos permanentemente ligados, mas temos de voltar à brevidade essencial dos
sinais de fumo.
Faixas
1.The
House Behind 06:25
2.Loosing
Memory 04:04
3.City
People 06:07
4.Concerning
The Ice 04:15
5.Passing
Wind 03:34
6.Head,
Heart 04:45
7.From
Below 04:20
8.Lost
Small Things 01:58
9.Smoke
Signals 04:26
Músicos: João Paulo Esteves da Silva— piano; Mário Franco— contrabaixo; Samuel Rohrer— percussão.
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
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