playlist Music

sábado, 16 de março de 2024

JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA TRIO - THE RIVER (Arjunamusic)

Há uma famosa frase atribuída a Heráclito de Éfeso: «Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras.» Mas acabariam por ser as águas internas que ditaram a sorte do “pai da dialética”; no final da vida foi acometido por uma hidropisia, acumulação anormal de líquido nas cavidades do organismo. Assistido por médicos (cujos conhecimentos ridicularizava), perguntou-lhes se seriam capazes de transformar uma inundação em seca. Serve este proêmio para sintetizar muito do que se passa em “The River”, o segundo álbum que junta o pianista João Paulo Esteves da Silva, o contrabaixista Mário Franco e o baterista e percussionista Samuel Rohrer, com chancela da Arjunamusic, editora fundada em 2012 por Rohrer.

As oito peças do álbum são completamente improvisadas, ou «compostas instantaneamente», tal como é referido na ficha técnica, e mostram um trio num contínuo caudal de ideias fluido de forma natural, mudando em cada momento sem que aparentemente haja uma verdadeira transformação. O pianista recorre a estratégias da improvisação livre para a partir delas aprofundar, em tempo real, motivos que monta, desmonta e remonta. E fá-lo com o imenso lastro de saber que acumulou (também, diria, na condição de poeta), e em apertada partilha com os dois superlativos músicos que tem a seu lado, também eles mestres na difícil arte de fazer com que a matéria improvisada soe, amiúde, a composta. «Toda a música é totalmente criada no momento, não há pré-pensamentos ou ideias discutidas. Ambos os álbuns surgiram assim. Com a única diferença que para “The River”, fizemos alguns concertos antes de ir para estúdio», começa por dizer Samuel Rohrer à jazz.pt. Este é um aspeto que o baterista sublinha: «Também os concertos funcionam da mesma forma, tudo é totalmente improvisado.» «É uma forma de confiar verdadeiramente no momento e de nos ligarmos a um nível profundo uns com os outros, mas também com o desconhecido. Nos melhores momentos, é uma experiência verdadeiramente espiritual», acrescenta o suíço.

“The River” é demonstração do amadurecimento da parceria, que se funda nas características essenciais que reconhecemos nas personalidades musicais de cada um. «Os concertos ajudaram-nos a aprofundar as ligações, a construir confiança e uma linguagem comum. Afinal, é uma maneira muito intuitiva de tocar música juntos», reforça Rohrer. “O segundo álbum do trio não se afasta muito dos traços fundamentais que havíamos apreendido em “Brightbird”, o álbum inaugural da formação, de 2017. A música que nele escutamos caracteriza-se por abrir espaço ao silêncio que emerge entre as notas, tanto parecendo importar o que escutamos como o que não escutamos. No cômputo, resulta triunfal esse diálogo entre o perceptível e o imperceptível, numa lógica de partilha de abordagens e vocabulários, algo central para o que fazem em conjunto. Esse aspecto afigura-se-nos fundamental para compreender a música do trio, por vezes perpassada por uma ideia de canção, algo que o baterista corrobora: «Há momentos que criam uma base mais tipo canção, para construirmos sobre. Algumas são mais abstratas, mas sempre com uma ideia melódica em mente.»

De alguma forma reencarnando as premissas da “third stream”, encontramos em “The River” abundantes referências a vários quadrantes musicais, da tradição sefardita tão cara a Esteves da Silva, ao jazz e à livre improvisação. Mas em vez de nos concentrarmos em mapear tais marcos referenciais, ganhamos se, ao invés, nos focarmos nos jogos intrincadamente telepáticos que se estabelecem entre os arsenais técnicos e emocionais de cada um. O baterista reforça precisamente esta dimensão: «relacionamo-nos principalmente com a ligação que temos entre nós.»

A função inicia-se com “The House Behind”: notas etéreas do piano de Esteves da Silva a fluírem sem pressas, contrabaixo elegante e sempre atento, percussão detalhada, fazendo Rohrer um uso completo dos materiais à disposição. O baterista introduz o mais agitado “Loosing Memory”, com uma melodia que traz um longínquo eco blueseiro. Na sua cadência feita de notas judiciosamente convocadas, “City People” pouco tem de trepidante ou caótico, com Rohrer a propor um padrão rítmico que envolve o fraseado sereno de Esteves da Silva. A atmosfera mais enigmática de “Concerning the Ice” é-nos apresentada pelo baterista, a que se vem juntar um Franco que recorre ao arco para acrescentar uma solenidade pungente; as notas esparsas de piano deixam tudo em suspenso. Mesmo no final eleva-se uma melodia que parece anunciar uma insondável transformação química. De grande beleza, jamais óbvia, “Passing Wind” coloca em confronto a imaginação de quem escuta e aquilo que realmente acontece.

Com um título que parece aludir ao equilíbrio – pivotal na música do trio – entre razão e emoção, “Head/Heart” é uma peça mais nervosa, exponenciando os índices de interação entre os três músicos. “From Below” é um monumento melódico, esculpido com apurada sensibilidade pelo trio, a começar com o piano sublime de Esteves da Silva, ecoando algumas das suas referências mediterrânicas, impressionando a leveza da secção rítmica. “Lost Small Things”, de uma doçura nostálgica, revela também momentos onde o piano adquire uma notoriedade como que inescapável, imenso ímã que tudo atrai. “Smoke Signals” encerra o disco numa atmosfera positiva, parecendo querer alertar-nos para um dos grandes problemas do nosso tempo que é, paradoxalmente, a comunicação, ou a falta dela. Estamos permanentemente ligados, mas temos de voltar à brevidade essencial dos sinais de fumo.

Faixas

1.The House Behind 06:25

2.Loosing Memory 04:04

3.City People 06:07

4.Concerning The Ice 04:15

5.Passing Wind 03:34

6.Head, Heart 04:45

7.From Below 04:20

8.Lost Small Things 01:58

9.Smoke Signals 04:26

Músicos: João Paulo Esteves da Silva— piano; Mário Franco— contrabaixo; Samuel Rohrer— percussão.

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

Nenhum comentário: