O dueto guitarra-trompete não é das configurações instrumentais
mais habituais. Ainda assim, exemplos parecem não faltar: Dizzy Gillespie e
Kenny Burrell, Philip Catherine e Chet Baker (e mais tarde Tom Harrell), Paolo
Fresu e Ralph Towner, Ron Miles e Bill Frisell, Herb Robertson e Mark Solborg,
Rob Mazurek e Jeff Parker (não perder “Some Jellyfish Live Forever”, reeditado
pela RogueArt em 2021), o duo Tin/Bag (Kris Tiner e Mike Baggetta) e, mais
perto, Sei Miguel e Pedro Gomes (em “Turbina Anthem”, de 2011) ou Susana Santos
Silva e Fred Frith no notável “Laying Demons To Rest”, já de 2023.
A este rol de excelência vem juntar-se agora o duo formado
pelo guitarrista Marcelo dos Reis e pelo trompetista Luís Vicente, nomes muito
ativos e com percursos de relevo no panorama nacional do jazz mais estimulante
e das músicas improvisadas relacionadas, e com inúmeras ligações
internacionais. Os caminhos dos dois músicos cruzaram-se pela primeira vez em
meados de 2009, num festival de jazz realizado em Évora. Desde esse momento têm
vindo a colaborar em diferentes projetos e contextos sonoros (por exemplo,
September 5tet, Frame Trio, no quarteto In Layers ou no Evan Parker X-Jazz
Ensemble, que gravou "A Schist Story"), mas sobretudo nos projetos
Fail Better! e Chamber 4) – em mais de uma centena de concertos com vários
grupos, dezenas de digressões e onze discos –, fazendo com que conheçam
particularmente bem as características musicais um do outro.
Gravado durante uma residência de quatro dias no Grêmio
Operário de Coimbra, em janeiro de 2022, mixado e masterizado pelo próprio
Marcelo dos Reis, o novo álbum, “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”,
editado pela Cipsela (recomenda-se um mergulho no catálogo desta editora
sediada em Coimbra), é o registo de estreia do duo. A ideia de avançarem neste
sentido já vinha de trás. «Na verdade, já tocamos em duo desde 2015, mas nunca
atingimos a maturidade ou o som que queríamos para este formato, e foi durante
esta residência onde solidificámos conceitos, compusemos muitos outros temas
que ficaram fora do disco e que temos já tocado depois em algumas tours fora de
Portugal e também por cá», explicam à jazz.pt. Mas só agora chegam ao
entendimento da sua relação enquanto duo, num formato «complicado», admitem.
Durante esta residência encontraram a inspiração para
mergulhar profundamente e encontrar uma voz enquanto duo, sem que se esbatam as
vozes individuais. Esse é um dos grandes trunfos da música que se escuta em
“(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”. Apesar das fortes ligações, que
escutamos amiúde nos vários álbuns que documentam a colaboração entre ambos,
nunca como agora os dois músicos estiveram tão próximos, dependendo apenas de
si próprios para criar um universo sonoro muito peculiar. Mas esta ligação
telepática jamais resvala para o conforto das soluções previsíveis ou de
lugares-comuns, sendo bem perceptível um desejo de correr riscos e de desbravar
novos caminhos, desafiando-se mutuamente. «Este disco marca um ponto de viragem
na nossa interação enquanto duo, pois pela primeira vez deparamo-nos numa
situação/residência onde pudemos pensar e imergir em ideias que cada um tinha,
transformando, a nosso ver, a linguagem do duo para algo mais único e
especial», sublinham. «Até hoje sempre tivemos trabalhos publicados com outros
colegas a servir como uma espécie de agregadores das ideias que podemos ter;
aqui isso não existe, é tudo mais delicado, transparente e sensível, por isso
julgamos que a economia de material e de ideias que faz a nossa música
funcionar, leva-nos para campos onde achamos que não é necessário grandes
artifícios ou virtuosismos desnecessários, mas isso é natural, a música vive
por ela, e é ela que nos guia.»
O novo álbum é assim uma súmula dos caminhos até agora
trilhados pelos dois músicos, um concentrado que resulta da depuração das
experiências de vida, síntese de uma miríade de vivências e emoções acumuladas
ao longo dos anos. «Perguntas sobre o nosso relacionamento musical foram
respondidas quando escrevemos e executamos as várias composições», escrevem nas
notas para o disco. «Partimos para a residência com o objetivo de assentar
ideias, pensar sobre a música, e de juntar algumas das nossas ideias musicais
mais íntimas para este contexto, que é um campo talvez um pouco até
introspetivo», esclarecem em conversa com a jazz.pt. A geometria instrumental
coloca desafios especiais, com que os dois músicos se defrontaram: «O formato
guitarra-trompete é para nós um formato algo complicado, daí as questões sobre
qual seria a melhor estrutura sonora para o nosso duo.» Quanto a referências,
admitem não ter colhido inspiração em nenhuma em particular, preferindo focar
adiante: «A nossa opção foi seguir o nosso caminho sem olhar para trás, talvez
a imaginação do Don Cherry seja aquela que mais nos deixa voar.»
Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”, material
composto coabita com improvisações, sem limitações impostas por linguagens ou
referências (embora elas estejam lá, ainda que sub-reptícias), numa coleção de
oito peças de natureza ampla, umas mais estruturadas e concretas, outras que
evidenciam maior dose de abstração. A música não preparada permaneceria sem ser
testada até o duo a tocar ao vivo após a residência. «Para além do tema
“Cornelia”, que é um tema claramente composto, os restantes são a organização
de ideias que muitas vezes assimilamos a música improvisada, e essas
ferramentas são utensílios de composição, pode soar muitas vezes a improvisação
livre pelo material que as músicas têm, mas as cabeças ou os motivos condutores
têm ideias compostas, para além da improvisação obviamente muito presente»,
referem.
Na inaugural “Climbing Up the Mountain (Part 1)” os
dedilhados suaves de dos Reis encontram aliado no sopro textural de Vicente,
que exponencia as potencialidades sônicas do seu instrumento. Mais
contemplativa é “Cornelia”, tema composto pelo guitarrista, com Vicente a
desenhar uma linha melódica que se vai contorcendo e que o guitarrista
acompanha não muito distante. “One Deer at a Car Window” assume contornos mais
esdrúxulos, com o guitarrista a socorrer-se do arco para instalar uma tensão
que o trompetista indaga. “Grizzly Bear” tem uma doçura especial, contrastando
com “The Gray Car”, mais abstrata, com os dois músicos a fazerem uso de
técnicas menos convencionais para construírem uma atmosfera intrigante e que
nos deixa no limbo. “Whirlpool” traz uma melodia luminosa que vai adquirindo
diferentes nuances e surpreendendo. “Rotterdam at Night” é tranquila e
transportou-me mentalmente para um passeio na Ponte Erasmus ou pelas vielas de
Delftsehof, antiga zona industrial particularmente imagética. “Climbing Up the
Mountain (Part II)” encerra o álbum num caleidoscópio de sons em permanente
metamorfose, com os dois instrumentos a comunicarem de forma próxima, agindo e
reagindo, num jogo biunívoco de estímulos e contraestímulos.
Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” Luís Vicente
e Marcelo dos Reis empreendem, juntos, uma interessantíssima jornada sonora,
largamente recompensadora para quem nela embarca.
Faixas
1.Climbing
Up the Mountain (Part I) 05:12
2.Cornelia
05:30
3.One
Deer at a Car Window 03:22
4.Grizzly
Bear 04:45
5.The
Grey Car 07:16
6.Whirlpool
06:16
7.Rotterdam
at Night 03:44
8.Climbing
Up the Mountain (Part II) 10:25
Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)
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