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quinta-feira, 7 de março de 2024

MARCELO DOS REIS & LUÍS VICENTE - (UN)PREPARED PIECES FOR GUITAR AND TRUMPET (Cipsela Records)

O dueto guitarra-trompete não é das configurações instrumentais mais habituais. Ainda assim, exemplos parecem não faltar: Dizzy Gillespie e Kenny Burrell, Philip Catherine e Chet Baker (e mais tarde Tom Harrell), Paolo Fresu e Ralph Towner, Ron Miles e Bill Frisell, Herb Robertson e Mark Solborg, Rob Mazurek e Jeff Parker ‎(não perder “Some Jellyfish Live Forever”, reeditado pela RogueArt em 2021), o duo Tin/Bag (Kris Tiner e Mike Baggetta) e, mais perto, Sei Miguel e Pedro Gomes (em “Turbina Anthem”, de 2011) ou Susana Santos Silva e Fred Frith no notável “Laying Demons To Rest”, já de 2023.

A este rol de excelência vem juntar-se agora o duo formado pelo guitarrista Marcelo dos Reis e pelo trompetista Luís Vicente, nomes muito ativos e com percursos de relevo no panorama nacional do jazz mais estimulante e das músicas improvisadas relacionadas, e com inúmeras ligações internacionais. Os caminhos dos dois músicos cruzaram-se pela primeira vez em meados de 2009, num festival de jazz realizado em Évora. Desde esse momento têm vindo a colaborar em diferentes projetos e contextos sonoros (por exemplo, September 5tet, Frame Trio, no quarteto In Layers ou no Evan Parker X-Jazz Ensemble, que gravou "A Schist Story"), mas sobretudo nos projetos Fail Better! e Chamber 4) – em mais de uma centena de concertos com vários grupos, dezenas de digressões e onze discos –, fazendo com que conheçam particularmente bem as características musicais um do outro.

Gravado durante uma residência de quatro dias no Grêmio Operário de Coimbra, em janeiro de 2022, mixado e masterizado pelo próprio Marcelo dos Reis, o novo álbum, “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”, editado pela Cipsela (recomenda-se um mergulho no catálogo desta editora sediada em Coimbra), é o registo de estreia do duo. A ideia de avançarem neste sentido já vinha de trás. «Na verdade, já tocamos em duo desde 2015, mas nunca atingimos a maturidade ou o som que queríamos para este formato, e foi durante esta residência onde solidificámos conceitos, compusemos muitos outros temas que ficaram fora do disco e que temos já tocado depois em algumas tours fora de Portugal e também por cá», explicam à jazz.pt. Mas só agora chegam ao entendimento da sua relação enquanto duo, num formato «complicado», admitem.

Durante esta residência encontraram a inspiração para mergulhar profundamente e encontrar uma voz enquanto duo, sem que se esbatam as vozes individuais. Esse é um dos grandes trunfos da música que se escuta em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”. Apesar das fortes ligações, que escutamos amiúde nos vários álbuns que documentam a colaboração entre ambos, nunca como agora os dois músicos estiveram tão próximos, dependendo apenas de si próprios para criar um universo sonoro muito peculiar. Mas esta ligação telepática jamais resvala para o conforto das soluções previsíveis ou de lugares-comuns, sendo bem perceptível um desejo de correr riscos e de desbravar novos caminhos, desafiando-se mutuamente. «Este disco marca um ponto de viragem na nossa interação enquanto duo, pois pela primeira vez deparamo-nos numa situação/residência onde pudemos pensar e imergir em ideias que cada um tinha, transformando, a nosso ver, a linguagem do duo para algo mais único e especial», sublinham. «Até hoje sempre tivemos trabalhos publicados com outros colegas a servir como uma espécie de agregadores das ideias que podemos ter; aqui isso não existe, é tudo mais delicado, transparente e sensível, por isso julgamos que a economia de material e de ideias que faz a nossa música funcionar, leva-nos para campos onde achamos que não é necessário grandes artifícios ou virtuosismos desnecessários, mas isso é natural, a música vive por ela, e é ela que nos guia.»

O novo álbum é assim uma súmula dos caminhos até agora trilhados pelos dois músicos, um concentrado que resulta da depuração das experiências de vida, síntese de uma miríade de vivências e emoções acumuladas ao longo dos anos. «Perguntas sobre o nosso relacionamento musical foram respondidas quando escrevemos e executamos as várias composições», escrevem nas notas para o disco. «Partimos para a residência com o objetivo de assentar ideias, pensar sobre a música, e de juntar algumas das nossas ideias musicais mais íntimas para este contexto, que é um campo talvez um pouco até introspetivo», esclarecem em conversa com a jazz.pt. A geometria instrumental coloca desafios especiais, com que os dois músicos se defrontaram: «O formato guitarra-trompete é para nós um formato algo complicado, daí as questões sobre qual seria a melhor estrutura sonora para o nosso duo.» Quanto a referências, admitem não ter colhido inspiração em nenhuma em particular, preferindo focar adiante: «A nossa opção foi seguir o nosso caminho sem olhar para trás, talvez a imaginação do Don Cherry seja aquela que mais nos deixa voar.»

Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet”, material composto coabita com improvisações, sem limitações impostas por linguagens ou referências (embora elas estejam lá, ainda que sub-reptícias), numa coleção de oito peças de natureza ampla, umas mais estruturadas e concretas, outras que evidenciam maior dose de abstração. A música não preparada permaneceria sem ser testada até o duo a tocar ao vivo após a residência. «Para além do tema “Cornelia”, que é um tema claramente composto, os restantes são a organização de ideias que muitas vezes assimilamos a música improvisada, e essas ferramentas são utensílios de composição, pode soar muitas vezes a improvisação livre pelo material que as músicas têm, mas as cabeças ou os motivos condutores têm ideias compostas, para além da improvisação obviamente muito presente», referem.

Na inaugural “Climbing Up the Mountain (Part 1)” os dedilhados suaves de dos Reis encontram aliado no sopro textural de Vicente, que exponencia as potencialidades sônicas do seu instrumento. Mais contemplativa é “Cornelia”, tema composto pelo guitarrista, com Vicente a desenhar uma linha melódica que se vai contorcendo e que o guitarrista acompanha não muito distante. “One Deer at a Car Window” assume contornos mais esdrúxulos, com o guitarrista a socorrer-se do arco para instalar uma tensão que o trompetista indaga. “Grizzly Bear” tem uma doçura especial, contrastando com “The Gray Car”, mais abstrata, com os dois músicos a fazerem uso de técnicas menos convencionais para construírem uma atmosfera intrigante e que nos deixa no limbo. “Whirlpool” traz uma melodia luminosa que vai adquirindo diferentes nuances e surpreendendo. “Rotterdam at Night” é tranquila e transportou-me mentalmente para um passeio na Ponte Erasmus ou pelas vielas de Delftsehof, antiga zona industrial particularmente imagética. “Climbing Up the Mountain (Part II)” encerra o álbum num caleidoscópio de sons em permanente metamorfose, com os dois instrumentos a comunicarem de forma próxima, agindo e reagindo, num jogo biunívoco de estímulos e contraestímulos.

Em “(Un)Prepared Pieces for Guitar and Trumpet” Luís Vicente e Marcelo dos Reis empreendem, juntos, uma interessantíssima jornada sonora, largamente recompensadora para quem nela embarca.

Faixas

1.Climbing Up the Mountain (Part I) 05:12

2.Cornelia 05:30

3.One Deer at a Car Window 03:22

4.Grizzly Bear 04:45

5.The Grey Car 07:16

6.Whirlpool 06:16

7.Rotterdam at Night 03:44

8.Climbing Up the Mountain (Part II) 10:25

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

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