Houvesse um
lugar especial na Terra, onde se observasse a olho nu tudo o que existe para lá
da Via Láctea, em que anos-luz de distância desaparecessem e se pudesse olhar o
infinito em momento real, onde o vento fresco acariciasse a face e o calor do
sol aquecesse o rosto, talvez esse sítio fosse algures suspenso no ar, sobre o
manto de uma nuvem, daquelas em forma do que à imaginação aprouver. A abstração
correria solta para lá chegar, mas partiria de uma certeza: de que esse lugar
mágico estaria ao som de Themandus. Não é muito comum um disco tocar deste modo
o lugar imaginativo, mas Themandus fá-lo de forma impressionante.
Themandus é
um trio composto por Afonso Boucinha Silva, no saxofone alto e EWI, Eduardo
Carneiro Dias, na bateria, e Ricardo Alves, na guitarra, que lançou em junho de
2023 um disco com o mesmo nome, pelo Carimbo Porta-Jazz. Conta com a participação de Carlos Fonseca na
voz, foi gravado por Afonso Boucinha Silva e masterizado por Sérgio Valmont.
No panorama
português, este disco é de uma genuinidade espantosa. Não só pela forma como
aborda, explora e entrecruza várias estéticas musicais, mas também pelo tipo de
instrumentos que usa – além de não apresentar uma estrutura comum com, por
exemplo, o uso do contrabaixo, introduz o EWI (“Electronic Wind Instrument”),
um instrumento eletrônico de sopro, cujo sistema de dedos pode ser semelhante
ao da flauta ou saxofone e, dito de uma forma muito simples, associa um
controlador de sopro a um sintetizador. A sua sonoridade e versatilidade podem
escutar-se em “Landing on a Whorl” ou em “Wandering Voyage”, através da
admirável capacidade criadora e improvisadora de Afonso Boucinha Silva que,
usando conceitos do jazz, acrescenta uma outra perspectiva sonora à música
eletrônica.
Themandus
caminha no sentido da ideia de “interseccionalidade” de estéticas musicais, ao
ancorar-se em diferentes gêneros musicais e ambientes de som, ao misturá-los e
dissolvê-los sem que nenhum deles perca a sua essência para, a partir daí, dar
origem a algo genuíno e belo. Devido ao
percurso destes músicos, poderia esperar-se que o jazz, na sua vertente mais
tradicional, fosse o elemento crucial do disco, mas essa não é a realidade. Em
Themandus encontra-se jazz, mas também o mundo do drum and bass, indie
rock, da música eletrônica e experimental, por vezes a centrifugar para um
grito psicodélico. Se, por um lado, são escutados elementos de bebop, como no
solo de saxofone em “The Grandest of Twin Suns” ou “Blind in Space”, por outro
e em quase todo o disco, encontra-se a influência de bandas como Pink Floyd,
direta ou indiretamente.
Os três
músicos sintonizam-se em verdadeira consonância, mas esse equilíbrio nota-se
particularmente em “The Collision of Moons at Aphelion”, devido à sua excelente
capacidade de improvisação e técnica conjuntas, que aqui se revela de forma
muito rica, com o uso, por exemplo, de diferentes ritmos, através da mistura de
compassos fora da habitual estrutura quaternária ou binária, o que resulta na
variação dos tempos fracos e fortes. Além das referências a Afonso Boucinha
Silva, também se sublinha igualmente a excelente interpretação de Ricardo
Alves, na guitarra, com destaque para a faixa “Wandering Voyage” e de Eduardo
Carneiro Dias, na bateria, em “Zapper”.
Themandus é
uma viagem entrecruzada pela música improvisada em tempo real e pela música
escrita, numa combinação perfeita. A imaginação cria a música e a música
alimenta a imaginação. Para este trio, a imaginação de um universo onde o
diverso se concretiza em multiplicidades infinitas como a possibilidade de sóis
gêmeos existirem, serviu como explosão criadora. Para quem escuta, alimentará a
fantasia, quem sabe a verdadeira percepção da arte dos sons.
Faixas
1.The Grandest of Twin Suns 02:40
2.Landing
on a Whorl 04:46
3.Blind
in Space 05:22
4.The
Collision of Moons at Aphelion 05:04
5.Aftermath
03:54
6.I.T.O.
01:55
7.Zapper
03:16
8.Copper
River 04:48
9.Wandering
Voyage 05:25
Fonte: SOFIA RAJADO (jazz.pt)
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