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sábado, 13 de abril de 2024

FOCA – FOCA (Timbuktu)

Foca? Estávamos em 2021 quando este grupo se deu a conhecer ao mundo, na edição desse ano da Festa do Jazz, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. E que grupo, logo pensamos: ao leme, o guitarrista André Fernandes, Mário Laginha ao piano, José Pedro Coelho no saxofone tenor, João Hasselberg no contrabaixo e João Pereira na bateria. Que música nos traziam? Verti uma primeira resposta a esta questão na reportagem desse concerto, que tomo a liberdade de replicar: «O grupo ofereceu uma música sóbria e melodicamente requintada, mas sempre espreitando o ensejo para tergiversar. Mestre Laginha voou alto, ladeado pela elegância formal da guitarra de Fernandes e pela fluidez discursiva de Coelho, saxofonista que, independentemente do contexto, é sempre capaz de surpreender. O elemento mais disruptivo da formação terá sido, contudo, João Hasselberg, pela forma inteligente como tornou as suas injeções eletrônicas fundamentais para o som global do grupo. Toda a inventividade rítmica de João Pereira, tanto na potência como no detalhe, foi bem notada.» Mais de dois anos volvidos, e escutado o registo inaugural do quinteto, que acaba de ser editado pela Timbuktu Records (nova editora gerida por André Fernandes, já lá vamos) mantenho tudo o que então escrevi. Ou quase. Compreensivelmente, no registo de estúdio o grupo vai mais além nalgumas das características basilares do seu som.

O guitarrista recorda à jazz.pt a gênese do grupo: «Foi-me pedido para criar um grupo que considerasse especial de alguma forma, e decidi falar com estes músicos por algumas razões, entre as quais querer voltar a tocar com o Mário, achar que a conjugação do Mário com o Zé Pedro e o João Pereira seria provavelmente muito interessante por ter a certeza que o colocaria num contexto diferente do seu habitual, e por último a vontade de fazer algo com o Hasselberg, particularmente no seu lado eletrônico, com uso do Ableton live para manipulação do som em tempo real.» O grupo reuniu para um ensaio para esse concerto na Festa do Jazz em que cada músico levou consigo material próprio. Fernandes decidiu partilhar o repertório entre todos, correndo o risco de o resultado ser algo demasiadamente disperso entre as composições de músicos tão diferentes entre si. «Olhando para os papéis fiquei com receio de que pudesse vir a ser um repertório com coisas muito distintas umas das outras», conta o guitarrista. «Escrevi um tema mais enérgico chamado “Foca”. O Mário levou um outro enérgico a que chamou “Morsa” (risos), e o “Falar”, que tem mais o espírito do seu trio. O Hasselberg levou dois temas lindos, muito leves e simples. O Pereira levou um blues muito original, e o Zé Pedro levou um arranjo de um tema de Ligeti. Por isso havia uma receita para o desastre.» Ao invés, o resultado acaba por ser deveras surpreendente. «Tudo caiu no sítio de forma muito natural e instintiva, havendo uma adaptação mútua constante, e na minha opinião, criou um som próprio do grupo, uniforme e consistente, o que veio comprovar que estes são músicos que para além de terem todas as ferramentas de que precisam, tocam sempre para o bem da música, e não de si próprios.»Depois veio o concerto e a ideia de gravar ficou a germinar. Aconteceu em outubro de 2022. Juntar músicos com agendas tão preenchidas não terá sido propriamente fácil. «Havendo vontade, e todos a temos em grandes quantidades, é sempre possível».

O registo de estreia dos Foca é um dos cinco álbuns que marcam o nascimento da Timbuktu Records, o novo projeto editorial de André Fernandes, sucedâneo da saudosa Tona of a Pitch. «Criei a TOAP por necessidade, e acabou por ser uma das editoras de jazz mais importantes para o desenvolvimento artístico em Portugal na altura, e incluiu dezenas de músicos de todo o país e também de fora de Portugal», sublinha o músico. Hoje, mais de duas dezenas de anos volvidos, o panorama do jazz no retângulo é radicalmente diferente, com várias editoras ativas, pelo que a razão para criar a Timbuktu foi outra. Fernandes esteve sempre ligado a várias áreas musicais, não só o jazz, trabalhando com músicos de jazz de todo o mundo, sim, mas também com artistas de hip hop, rock e pop. «Estive uns anos só a fazer música, quer a tocar e escrever como em estúdio, e agora quero ter a possibilidade de desenvolver a sério todos esses meus focos de interesse, e para isso juntei-me com uma série de jovens músicos, e outros não tão jovens, e criamos a Associação Timbuktu, que tem várias frentes, uma delas a Timbuktu Records, outra a produção musical, também a programação de concertos, masterclasses, e um canal de Youtube que dá acesso a entrevistas, documentários, etc.»

A música dos Foca é etérea, a espaços parece flutuar – com uma certa aura ECM, é impossível fugir dela –, com mais chão em alguns momentos. De grande sofisticação melódica, mesmo as passagens mais agitadas surgem envolvidas numa névoa de leveza e plasticidade que, assevera André Fernandes, «surgiu sem ser planeada», mas que acaba se tornar o centro da proposta sonora da formação. É majoritariamente um disco sem baixo, com algumas exceções de baixo elétrico e baixo sintetizador, o que também marca o som do grupo. O tipo de processamento que João Hasselberg faz do piano e saxofone acontece sobretudo através de reverbs e delays, o que, no caso do reverb, é uma marca do selo germânico, cujos engenheiros de som são mestres em fazê-lo desde os anos 1970. «O fato deste estar mais próximo disso, é para mim interessante», diz Fernandes. O álbum abre com a serenidade tonitruante de “Walden Pond”, original de Hasselberg, verdadeiro bálsamo para os tempos acelerados que vivemos, com a monumental melodia desenhada pelo saxofone e as notas do piano cristalino, a que se junta a guitarra e uma dupla rítmica prenhe de detalhes. “Falar”, original de Laginha, tem um início mais dinâmico, que logo acalma, com o saxofone de novo de destaque, dando a vez à guitarra de Fernandes e às eletrônicas sutis; é então ocasião para o piano assumir a condução da peça, com uma bela declaração, que o saxofone remata elegantemente. O piano introduz “Música Ricercata”, arranjo do José Pedro Coelho de uma peça de Ligeti. O saxofone pega na melodia para entabular profícuo diálogo com a guitarra e as eletrônicas; a fusão entre o ostinatoeletrônico e o piano adquirem um paulatino protagonismo na construção do edifício sonoro. A peça desenvolve-se conhecendo diferentes matizes. “Sirens”, outra peça de Hasselberg, magnífica, começa com o sopro elegante de Coelho, como que um chamamento distante, repetitivo, aflito; a bateria pontua, com espantosa delicadeza, as eletrônicas sublinham a atmosfera de uma tranquila inquietude. Qual fio de Ariadne, o motivo melódico é retomado e a peça resolve-se num tom melancólico. “Foca”, original do guitarrista, começa o piano solene, eletrônicas novamente discretas, para logo se transformar numa peça rápida e nervosa, guiada pelos uníssonos entre guitarra e saxofone, que lançam um balanço alimentado pelo baixo elétrico pulsante e pela bateria em permanente reboliço. Notas misteriosas de piano servem de mote para “Joker”, peça que navega em águas tranquilas, um blues – com swing, tema e solos –, sempre com nuvens no horizonte. Belo solo de Coelho, em alta neste disco. “Morsa”, de Laginha, encerra o álbum com energia a rodos.

Sem bola de cristal, até porque ainda estamos no início do ano, mas já temos um disco que o marcará.

Faixas

1.WALDEN POND 05:51

2.FALAR 07:18

3.MUSICA RICERCATA VII 08:27

4.SIRENS 10:48

5.FOCA 07:15

6.JOKER 07:03

7.MORSA 04:38

 Músicos: André Fernandes— guitarra; Mário Laginha— piano; José Pedro Coelho— saxofone tenor; João Hasselberg— baixo elétrico, baixo sintetitizado, eletrônica; João Pereira— bateria

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

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