Foca?
Estávamos em 2021 quando este grupo se deu a conhecer ao mundo, na edição desse
ano da Festa do Jazz, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. E que grupo, logo
pensamos: ao leme, o guitarrista André Fernandes, Mário Laginha ao piano, José
Pedro Coelho no saxofone tenor, João Hasselberg no contrabaixo e João Pereira
na bateria. Que música nos traziam? Verti uma primeira resposta a esta questão
na reportagem desse concerto, que tomo a liberdade de replicar: «O grupo
ofereceu uma música sóbria e melodicamente requintada, mas sempre espreitando o
ensejo para tergiversar. Mestre Laginha voou alto, ladeado pela elegância
formal da guitarra de Fernandes e pela fluidez discursiva de Coelho,
saxofonista que, independentemente do contexto, é sempre capaz de surpreender.
O elemento mais disruptivo da formação terá sido, contudo, João Hasselberg,
pela forma inteligente como tornou as suas injeções eletrônicas fundamentais
para o som global do grupo. Toda a inventividade rítmica de João Pereira, tanto
na potência como no detalhe, foi bem notada.» Mais de dois anos volvidos, e
escutado o registo inaugural do quinteto, que acaba de ser editado pela
Timbuktu Records (nova editora gerida por André Fernandes, já lá vamos)
mantenho tudo o que então escrevi. Ou quase. Compreensivelmente, no registo de
estúdio o grupo vai mais além nalgumas das características basilares do seu
som.
O guitarrista
recorda à jazz.pt a gênese do grupo: «Foi-me pedido para criar um grupo que
considerasse especial de alguma forma, e decidi falar com estes músicos por
algumas razões, entre as quais querer voltar a tocar com o Mário, achar que a
conjugação do Mário com o Zé Pedro e o João Pereira seria provavelmente muito
interessante por ter a certeza que o colocaria num contexto diferente do seu
habitual, e por último a vontade de fazer algo com o Hasselberg,
particularmente no seu lado eletrônico, com uso do Ableton live para
manipulação do som em tempo real.» O grupo reuniu para um ensaio para esse
concerto na Festa do Jazz em que cada músico levou consigo material próprio.
Fernandes decidiu partilhar o repertório entre todos, correndo o risco de o
resultado ser algo demasiadamente disperso entre as composições de músicos tão
diferentes entre si. «Olhando para os papéis fiquei com receio de que pudesse
vir a ser um repertório com coisas muito distintas umas das outras», conta o
guitarrista. «Escrevi um tema mais enérgico chamado “Foca”. O Mário levou um
outro enérgico a que chamou “Morsa” (risos), e o “Falar”, que tem mais o
espírito do seu trio. O Hasselberg levou dois temas lindos, muito leves e
simples. O Pereira levou um blues muito original, e o Zé Pedro levou um arranjo
de um tema de Ligeti. Por isso havia uma receita para o desastre.» Ao invés, o
resultado acaba por ser deveras surpreendente. «Tudo caiu no sítio de forma
muito natural e instintiva, havendo uma adaptação mútua constante, e na minha
opinião, criou um som próprio do grupo, uniforme e consistente, o que veio
comprovar que estes são músicos que para além de terem todas as ferramentas de
que precisam, tocam sempre para o bem da música, e não de si próprios.»Depois
veio o concerto e a ideia de gravar ficou a germinar. Aconteceu em outubro de
2022. Juntar músicos com agendas tão preenchidas não terá sido propriamente
fácil. «Havendo vontade, e todos a temos em grandes quantidades, é sempre
possível».
O registo de
estreia dos Foca é um dos cinco álbuns que marcam o nascimento da Timbuktu
Records, o novo projeto editorial de André Fernandes, sucedâneo da saudosa Tona
of a Pitch. «Criei a TOAP por necessidade, e acabou por ser uma das editoras de
jazz mais importantes para o desenvolvimento artístico em Portugal na altura, e
incluiu dezenas de músicos de todo o país e também de fora de Portugal»,
sublinha o músico. Hoje, mais de duas dezenas de anos volvidos, o panorama do
jazz no retângulo é radicalmente diferente, com várias editoras ativas, pelo
que a razão para criar a Timbuktu foi outra. Fernandes esteve sempre ligado a
várias áreas musicais, não só o jazz, trabalhando com músicos de jazz de todo o
mundo, sim, mas também com artistas de hip hop, rock e pop. «Estive uns anos só
a fazer música, quer a tocar e escrever como em estúdio, e agora quero ter a
possibilidade de desenvolver a sério todos esses meus focos de interesse, e
para isso juntei-me com uma série de jovens músicos, e outros não tão jovens, e
criamos a Associação Timbuktu, que tem várias frentes, uma delas a Timbuktu
Records, outra a produção musical, também a programação de concertos, masterclasses,
e um canal de Youtube que dá acesso a entrevistas, documentários, etc.»
A música dos
Foca é etérea, a espaços parece flutuar – com uma certa aura ECM, é impossível
fugir dela –, com mais chão em alguns momentos. De grande sofisticação
melódica, mesmo as passagens mais agitadas surgem envolvidas numa névoa de
leveza e plasticidade que, assevera André Fernandes, «surgiu sem ser planeada»,
mas que acaba se tornar o centro da proposta sonora da formação. É majoritariamente
um disco sem baixo, com algumas exceções de baixo elétrico e baixo sintetizador,
o que também marca o som do grupo. O tipo de processamento que João Hasselberg
faz do piano e saxofone acontece sobretudo através de reverbs e delays,
o que, no caso do reverb, é uma marca do selo germânico, cujos
engenheiros de som são mestres em fazê-lo desde os anos 1970. «O fato deste
estar mais próximo disso, é para mim interessante», diz Fernandes. O álbum abre
com a serenidade tonitruante de “Walden Pond”, original de Hasselberg,
verdadeiro bálsamo para os tempos acelerados que vivemos, com a monumental
melodia desenhada pelo saxofone e as notas do piano cristalino, a que se junta a
guitarra e uma dupla rítmica prenhe de detalhes. “Falar”, original de Laginha,
tem um início mais dinâmico, que logo acalma, com o saxofone de novo de
destaque, dando a vez à guitarra de Fernandes e às eletrônicas sutis; é então
ocasião para o piano assumir a condução da peça, com uma bela declaração, que o
saxofone remata elegantemente. O piano introduz “Música Ricercata”, arranjo do
José Pedro Coelho de uma peça de Ligeti. O saxofone pega na melodia para
entabular profícuo diálogo com a guitarra e as eletrônicas; a fusão entre o
ostinatoeletrônico e o piano adquirem um paulatino protagonismo na construção
do edifício sonoro. A peça desenvolve-se conhecendo diferentes matizes.
“Sirens”, outra peça de Hasselberg, magnífica, começa com o sopro elegante de
Coelho, como que um chamamento distante, repetitivo, aflito; a bateria pontua,
com espantosa delicadeza, as eletrônicas sublinham a atmosfera de uma tranquila
inquietude. Qual fio de Ariadne, o motivo melódico é retomado e a peça
resolve-se num tom melancólico. “Foca”, original do guitarrista, começa o piano
solene, eletrônicas novamente discretas, para logo se transformar numa peça
rápida e nervosa, guiada pelos uníssonos entre guitarra e saxofone, que lançam
um balanço alimentado pelo baixo elétrico pulsante e pela bateria em permanente
reboliço. Notas misteriosas de piano servem de mote para “Joker”, peça que
navega em águas tranquilas, um blues – com swing, tema e solos –, sempre com
nuvens no horizonte. Belo solo de Coelho, em alta neste disco. “Morsa”, de
Laginha, encerra o álbum com energia a rodos.
Sem bola de
cristal, até porque ainda estamos no início do ano, mas já temos um disco que o
marcará.
Faixas
1.WALDEN POND 05:51
2.FALAR 07:18
3.MUSICA RICERCATA VII 08:27
4.SIRENS 10:48
5.FOCA 07:15
6.JOKER 07:03
7.MORSA 04:38
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
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