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sábado, 27 de abril de 2024

SUMO – ÓRBITAS (Robalo Music)

Ensina-nos a astronomia que órbita é a trajetória elíptica e regular descrita por um corpo celeste em torno de outro que é o seu centro gravitacional; quando estamos perante dois corpos celestes, a órbita de intersecção ocorre quando estes têm as suas órbitas cruzando-se em algum ponto do espaço. Algo de semelhante acontece quando as órbitas dos guitarristas André Matos e João Carreiro se cruzaram para formar este duo exploratório a que chamaram Sumo – sim, uma referência à luta japonesa com dois corpos (não tanto celestes, mas volumosos) em competicão –, e que agora editam pela Robalo Music a sua estreia discográfica.

Nos últimos anos, Matos, radicado em Nova Iorque desde 2008, dedicou-se sobretudo a explorar contextos mais intimistas. Em 2021, trouxe-nos “Casa” – o último tomo de uma tetralogia a solo –, o magnífico “On the Shortness of Life”, também “Estelar”, o EP “Orbit”, e os álbuns gémeos “Roam Free” e “Ritual”. Em 2022 chegou “Limbo”, de novo a solo, e “Directo Ao Mar”, em trio, acompanhado pelo baixista João Hasselberg e pelo baterista João Pereira. Já em 2023 apresentou “Wandering Souls”, com o saxofonista Jeremy Udden, e “Night Birds”, o terceiro tomo da sua parceria criativa com a cantora Sara Serpa. João Carreiro estudou no Hot Clube de Portugal (onde atualmente é docente) e na Escola Superior de Música de Lisboa, onde se licenciou em guitarra jazz; o seu percurso tem-se repartido entre o jazz e a música improvisada, tendo em 2022 lançado o seu primeiro disco como líder, “Pequenos Desastres”, em quinteto com Gonçalo Marques, Albert Cirera, Demian Cabaud e João Pereira, também com selo da Robalo (de que é membro fundador). É um músico muito requisitado para participar em diferentes projetos, como Peixe-Boi, Fragoso Quinteto, Gapp/Carreiro/Sousa, Living with a Couple, Sonic Tender, Rodrigues/Carreiro/Furioso e o quarteto de André Murraças.

A ideia do duo terá começado a germinar na cabeça de ambos vai para dois anos; a relação deu passos avante quando no verão passado deram um concerto “Lota” da Robalo. Uns dias depois concretizou-se a oportunidade de fazerem uma sessão com microfones e improvisaram. «Foi simples e descomprometido», conta João Carreiro à jazz.pt. De uma simplicidade que radica numa empatia e admiração mútuas; «Temos uma cumplicidade rara, sobretudo entre músicos do mesmo instrumento. Eu já sigo a carreira do João com entusiasmo há muito tempo e neste momento há uma grande generosidade e abertura sobre aquilo que cada um de nós propõe musicalmente, mesmo quando um de nós é apenas ouvinte», realça André Matos. A réplica não se faz tardar: «O André é um músico incrível, versátil e generoso. Sinto que é muito natural tocar com ele. Há um estado de espírito e uma sensação de despreendimento que aprecio bastante, qualquer proposta que faça é bem-vinda», diz João Carreiro.

Gravado em Lisboa em julho de 2023, “Órbitas” é assim um disco de improvisação e exploração de guitarras em duo que representa o culminar de uma relação musical e pessoal que aguardava o momento ideal para frutificar. Fica logo claro que não estamos perante um álbum convencional de guitarras, desde logo porque quer um quer outro não são guitarristas convencionais. «Já toquei mais de 40 duos de guitarra ao longo dos últimos 20 anos e nem sempre tudo encaixa com naturalidade», sublinha Matos. Há aqui uma dose partilhada e substancial de experimentação e de atração pelo risco, sem que houvesse algo previamente planeado. «Improvisámos espontaneamente em certas direções», refere Carreiro. «Acho que é também uma manifestação das nossas procuras individuais no instrumento. A minha tem passado em parte pela experimentação e pela alteração do som quer por pedais ou materiais.» Matos realça o lado espontâneo e natural de todo o processo: «Apenas nos adaptámos e usámos aquilo que criámos no momento em que gravamos. Juntamo-nos um par de horas com dois microfones numa manhã da semana em que estava a acontecer o Festival Robalo/Antena 2, portanto uma semana intensa de muita música a acontecer à nossa volta.» As abordagens dos dois músicos são naturalmente distintas; não há uma luta de “egos”, antes uma complementaridade de estilos. Se Carreiro será porventura o mais flamejante e Matos o mais recatado, o que torna tudo muito mais estimulante é que nem sempre é assim, com frequentes trocas de papel na construção desse delicado – mas seminal – equilíbrio. A música do duo é muito textural e imagética, por vezes serena, noutras explorando atmosferas mais misteriosas e inquietantes. Há temas que têm uma estrutura, que quase parece planeada; se em algumas peças o desenvolvimento é lento e cerebral, noutras tudo se torna mais frenético e inconformado.

“Órbitas” é longa e bela introdução atmosférica, com os dedilhados a confrontarem-se com camadas mais texturais, intuindo-se, desde logo, ao que vem o duo; a construção de paisagens sonoras, muitas vezes tranquilas e planantes, outras mais abrasivas. “Dots and Dashes” é mais barulhenta e exploratória e reitera o desígnio de ambos de utilizarem a guitarra como instrumento total, fora do seu perímetro habitual, acoplando-a a dispositivos eletrônicos. Mais ambiental, “Espécies Antigas” transporta-nos para uma ancestralidade difusa e “Water and Metal”, com texturas mais acústicas, adentra-se numa dimensão primordial, elementar, sem espaço nem tempo. “Organismos” volta a trazer sons mais cristalinos, com a suavidade das guitarras em diálogo profícuo. Em “Botão Vermelho”, bastante processada com pedais, entramos novamente em território árido, até ao (quase) vazio. Miniatura de contornos espectrais, “On and Off” serve da porta de entrada para “Save the Bees”, com as várias linhas que paulatinamente interagem entre si, quase uma canção (João Carreiro associa-a a “The Sound of Someone You Love Who's Going Away and It Doesn't Matter” dos Penguin Cafe Orchestra.) “Futuro Imaginado” é um belíssimo exercício de prospetiva que traz serenidade, mas ao mesmo tempo deixa o nosso aparelho sensorial alerta para o que aí vem.

Faixas

1.Órbitas 05:13

2.Dots and dashes 03:37

3.Espécies antigas 04:05

4.Water and metal 04:49

5.Organismos 06:07

6.Botão vermelho 02:45

7.On and off 02:05

8.Save the bees 04:57

9.Futuro imaginado 05:11

 Músicos: André Matos— guitarra; João Carreiro— guitarra

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

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