“For Beauty Is Nothing But the Beginning of Terror”, título
extraído da primeira elegia de Duíno de Rilke, é o registo de estreia daquele
que julgo ser o mais sólido – a par de The Rite of Trio – e quiçá mais promissor
projeto de Pedro Melo Alves até à data: o trio HIIT, coletivo sem líder que,
apesar de bastante recente, é já uma verdadeira working band. O pianista
Simone Quatrana e o contrabaixista Andrea Grossi, músicos excepcionais da nova
geração italiana e que dificilmente se poderiam afigurar parceiros mais
compatíveis, são os restantes vértices deste triângulo equilátero.
A introdução do clássico trio de piano, contrabaixo e
bateria na música do século XX foi, sem dúvida, um dos mais importantes legados
da tradição jazzística: isto porque se trata de uma das mais versáteis
combinações instrumentais imagináveis, passível de funcionar como um grupo de
câmara intimista, um trio poderoso ou mesmo uma pequena orquestra. Os HIIT
fazem plena justiça a este aspeto, explorando o espectro dinâmico disponível
praticamente na sua totalidade: tanto são capazes de uma sutileza
característica de intérpretes de Morton Feldman como de uma energia (violência,
até) própria de metaleiros – e de quase tudo entre ambas. A este respeito,
Quatrana destaca-se como um pianista poderosíssimo e de uma resistência física
impressionante, capaz de disparar autênticos turbilhões de notas – quase sempre
audíveis individualmente, tal a clareza da sua articulação – durante períodos
de tempo bem superiores àqueles que deixariam o comum dos mortais com cãibras
nos antebraços, mas também de intervenções bastante sensíveis. Por outro lado,
também a imensa gama de sonoridades e cores que o trio de piano tem para
oferecer é explorada com resultados particularmente satisfatórios. Já
conhecíamos Melo Alves como um exímio colorista, mas não podemos deixar de
realçar aqui o trabalho de Grossi, nomeadamente quando se serve do arco (e não
só): que variedade e que beleza de som!
Além das afinidades estéticas serem evidentes (e estamos a
falar de músicos que por certo ouviram muita música e dominam múltiplas
linguagens), o entrosamento entre os três é já assinalável: ouvem-se, por
exemplo, momentos em que os dedos do pianista e as baquetas do baterista
parecem mover-se como partes de um só corpo. Ouvem-se também momentos em que as
habituais funções de cada instrumento se vêm subvertidas: este é basicamente um
conjunto de cordas e percussão em que que qualquer um dos instrumentos pode
desempenhar ambos os papéis, instalando-se por vezes uma deliciosa dúvida
relativamente à proveniência dos sons que vão produzindo.
Quem quer que seja que assuma dicotomias como música
erudita/outras músicas (entre as quais o jazz) ou composição/improvisação, não
tem como enquadrar a música dos HIIT. No plano estético, diríamos que esta
tanto vai beber no jazz (dito de vanguarda, mas também a uma certa ECM) e à
livre improvisação como à chamada música erudita contemporânea, sobretudo à que
se inspira declaradamente em Cage e Feldman, como é o caso dos compositores
associados ao grupo Wandelweiser. “Urbe” será porventura a peça mais jazzística
(e americana) do disco e a belíssima “Concetto Spaziale” a que mais se enquadra
num universo pós-feldmaniano, havendo depois casos em que esses dois mundos de
alguma maneira se fundem, chamando a atenção para a arbitrariedade das
barreiras que muitas vezes se colocam entre eles.
Mas, acima de tudo, o que daqui resulta é uma estética una e
coerente, tão orgânica quanto estruturada, o que, por sua vez, nos remete para
o plano metodológico, ao nível do qual os HIIT abalam a dicotomia
composição/improvisação: por um lado, não existem partituras, sendo a maior
parte da sua música composta em tempo real; por outro, no entanto, essa
composição largamente espontânea é condicionada por certos enquadramentos
particulares, abertos mas sugestivos de paisagens sonoras bastante específicas,
resultantes de um cuidadoso processo de análise de gravações anteriores do trio
em modo de livre improvisação. Desta forma, adotam técnicas e vocabulários das
músicas improvisadas e dão-lhes todo um polimento adicional: um rigor ou foco
composicional que, ainda assim, em momento algum compromete a organicidade da
música ou a possibilidade de esta seguir cursos imprevistos.
Este talvez não seja ainda a declaração definitiva dos HIIT,
mas a qualidade e frescura deste primeiro cartão de visita são tais que me
arrisco desde já a antever que poderá muito bem ter aqui surgido um dos grandes
grupos da presente década – daqueles que contribuirão para moldar aquilo a que
Agustí Fernández chamou “a música antiga do século XXII”.
Músicos: Simone Quatrana— piano; Andrea Grossi— contrabaixo;
Pedro Melo Alves— bateria, percussão
Fonte: JOÃO ESTEVES DA SILVA (jazz.pt)
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