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sábado, 8 de junho de 2024

CARLOS AZEVEDO - INNER MONOLOGUES (Timbuktu)

Num momento civilizacional em que o planeta vive acima das suas possibilidades, tem ganho terreno um pensamento alternativo, que procura focar o desenvolvimento (não necessariamente crescimento) balizando-o em termos daqueles que são os recursos disponíveis, naturalmente finitos. Um dos conceitos que tem emergido com particular vigor é o de “economia circular”, entendida como um modelo de produção e consumo em que se procura dissociar a atividade económica da extração de matérias-primas e da produção de resíduos, em contraste com o modelo econômico linear, transformando o que hoje utilizamos em novos recursos para a economia. Num livro revolucionário, a economista britânica Kate Raworth chamou-lhe a “economia donut”.

Não sei se terá sido esta a premissa de que partiu o pianista, compositor e arranjador Carlos Azevedo, para apresentar o seu mais recente trabalho solo, a que chamou “Inner Monologues”, jornada sonora também com muito de revolucionária, mas parece. Depois de anos a viver, não apenas, mas sobretudo, para a Orquestra Jazz de Matosinhos –, Carlos Azevedo colecionou vários pequenos objetos de áudio e musicais: alguns são temas deixados de fora de uma mistura final ou pequenos gestos instrumentais guardados com propósito incerto. Extirpados do seu contexto original, estes objetos adquirem uma nova alma e veem-se investidos de um amplo leque de potencialidades expressivas. “Inner Monologues” emerge da compilação e processamento de muitos desses objetos –   eletronicamente e ao piano – em estruturas que podem ser ouvidas ao longo destes oito exercícios de diálogo interior.

Carlos Azevedo entende este disco como «uma outra abordagem ao ato de compor.» Com esta ousadia pretende transmitir o mesmo que em vários dos projetos que já empreendeu no passado: a principal diferença está no fato de neste caso controlar «o processo do princípio ao fim», explica à jazz.pt. Azevedo utiliza como matéria-prima para subsequente manipulação a guitarra de Miguel Moreira, o saxofone de João Mortágua, o contrabaixo de Miguel Ângelo, a bateria de Mário Costa e Diogo Alexandre. Como bem nota Luís Tinoco em notas de apresentação do álbum, e como tantas vezes acontece com grandes compositores e improvisadores, depois de longas carreiras tocando e escrevendo para diferentes formações e em múltiplos contextos, «chega um momento em que se sente necessidade de introspeção, de sistematização e de reflexão sobre o ato de criar música.»

Após esse trabalho no contexto de uma formação alargada, Carlos Azevedo atravessa uma fase de exploração de formatos mais reduzidos, quarteto, duo (Calcanhar, com João Mortágua, que recentemente editou o notável “Jump” na Clean Feed), agora estas explorações solos. «Acho que surge de forma natural, embora tivesse feito algumas participações em projetos de formações pequenas com as quais gravei. Acho que agora tenho mais tempo para me dedicar a outro tipo de trabalhos», sublinha. Durante dois anos, Azevedo trabalhou sozinho, coligindo, reciclando e improvisando sobre material muito diverso, que chamou para abordar como sendo seu, expandindo um universo sonoro pessoal já de si vasto (dos combos de jazz às big bands, da música para orquestra sinfônica a obras de pendor mais camerístico ou ao teatro musical), acrescentando novas áreas ao escopo de trabalho que lhe conhecíamos. Este é o aspeto mais surpreendente ao escutarmos a riqueza e a fantasia que emergem destes “Inner Monologues”. «É um interesse que vem desde os tempos em que tirei o curso de composição», refere. «Nessa altura, estudei e ouvi bastante música eletroacústica e música concreta. Interessei-me em especial pela música realizada por Pierre Schaeffer, engenheiro eletrotécnico, e compositor Pierre Henry; ambos criaram o grupo Groupe de Recherche de Musique Concrète.»

Trata-se, no fundo, de «uma outra forma de pensar composição.» Um processo oficinal de trabalhar que considera «muito semelhante ao tradicional», com materiais com diferentes características, heterogêneo, conferindo-lhe, no final, uma unicidade e coerência assinaláveis. «O maior desafio é não nos perdermos no processo, uma vez que estamos constantemente a ter o resultado sonoro do que fazemos; um outro problema é que estes meios podem ser muito deslumbrantes e por isso podemos perder o controle facilmente, ou até sermos enganados por um mundo sonoro que por si só já transporta muita riqueza», reforça. Esta só poderia ser obra de um músico muito experiente e conhecedor das peças que judiciosamente selecionou e reconfigurou. A música que encontramos em “Inner Monologues”, poliédrica e camaleônica, espelha o seu interesse em vários domínios musicais, do jazz ao drum´n´bass, do rock progressivo às eletrônicas mais experimentais e à música erudita contemporânea. Esta multiplicidade de referências, que sempre reconhecemos no seu trabalho, tem sido um estímulo permanente para procurar novos caminhos.

“Run Over by a Grooming Machine” entrega-se a explorações eletrônicas, um drum’n’bass vertiginoso, espelho do mundo hodierno, temperado por um saxofone etéreo (Mortágua dixit). “The Tightrope Man” é de um abstracionismo surrealista particularmente imagético, onde eletrônicas se cruzam com as notas límpidas de piano, uma guitarra pontual, bateria contida. Em “Disrupted Sleep” são os sons perturbantes de vidros a estilhaçar que interrompem o sono (o sonho?), espoletando sinapses ziguezagueantes propulsionadas pela bateria de Diogo Alexandre. “Carefully Regulated Moments” aproxima-se de certas experiências jazz-rock mais espaciais; a pouco mais de um minuto do final tudo se aquieta, elevando-se uma certa solenidade. “Airport” traz eletrônicas ambientais, uma contagem decrescente, vozes que nos indicam certa localização ou nos chamam a atenção para algo, refletindo a tensão de quem se prepara (acaba) para sair (de regressar) do (ao) seu elemento natural. Aterramos. “Let’s Dance” é de uma beleza ao mesmo tempo esdrúxula e intemporal. “Damaged Music Boxes” retoma uma atmosfera onírica e singular, criando um mundo de fantasia muito especial.

Em “Inner Monologues”, Carlos Azevedo transporta-nos numa jornada surpreendente e altamente recompensadora.

Faixas

1 - Run Over By A Grooming Machine

2 - The Tightrope Man

3 - Disrupted Sleep

4 - Carefully Regulated Moments

5 - Airport

6 - An Ethereal Dream

7 - Let´s Dance

8 -Damaged Music Boxes

Músicos: Carlos Azevedo— piano, composição, manipulação eletrônica; Miguel Moreira- guitarra; João Mortágua-saxofone; Miguel Angelo-contrabaixo; Mário Costa- bateria; Diogo Alexandre- bateria (03 Disrupted Sleep)

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

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