Num momento
civilizacional em que o planeta vive acima das suas possibilidades, tem ganho
terreno um pensamento alternativo, que procura focar o desenvolvimento (não
necessariamente crescimento) balizando-o em termos daqueles que são os recursos
disponíveis, naturalmente finitos. Um dos conceitos que tem emergido com
particular vigor é o de “economia circular”, entendida como um modelo de
produção e consumo em que se procura dissociar a atividade económica da
extração de matérias-primas e da produção de resíduos, em contraste com o
modelo econômico linear, transformando o que hoje utilizamos em novos recursos
para a economia. Num livro revolucionário, a economista britânica Kate Raworth
chamou-lhe a “economia donut”.
Não sei se
terá sido esta a premissa de que partiu o pianista, compositor e arranjador
Carlos Azevedo, para apresentar o seu mais recente trabalho solo, a que chamou
“Inner Monologues”, jornada sonora também com muito de revolucionária, mas
parece. Depois de anos a viver, não apenas, mas sobretudo, para a Orquestra
Jazz de Matosinhos –, Carlos Azevedo colecionou vários pequenos objetos de áudio
e musicais: alguns são temas deixados de fora de uma mistura final ou pequenos
gestos instrumentais guardados com propósito incerto. Extirpados do seu
contexto original, estes objetos adquirem uma nova alma e veem-se investidos de
um amplo leque de potencialidades expressivas. “Inner Monologues” emerge da
compilação e processamento de muitos desses objetos – eletronicamente e ao piano – em estruturas
que podem ser ouvidas ao longo destes oito exercícios de diálogo interior.
Carlos
Azevedo entende este disco como «uma outra abordagem ao ato de compor.» Com
esta ousadia pretende transmitir o mesmo que em vários dos projetos que já
empreendeu no passado: a principal diferença está no fato de neste caso
controlar «o processo do princípio ao fim», explica à jazz.pt. Azevedo utiliza
como matéria-prima para subsequente manipulação a guitarra de Miguel Moreira, o
saxofone de João Mortágua, o contrabaixo de Miguel Ângelo, a bateria de Mário
Costa e Diogo Alexandre. Como bem nota Luís Tinoco em notas de apresentação do
álbum, e como tantas vezes acontece com grandes compositores e improvisadores,
depois de longas carreiras tocando e escrevendo para diferentes formações e em
múltiplos contextos, «chega um momento em que se sente necessidade de introspeção,
de sistematização e de reflexão sobre o ato de criar música.»
Após esse
trabalho no contexto de uma formação alargada, Carlos Azevedo atravessa uma
fase de exploração de formatos mais reduzidos, quarteto, duo (Calcanhar, com
João Mortágua, que recentemente editou o notável “Jump” na Clean Feed), agora
estas explorações solos. «Acho que surge de forma natural, embora tivesse feito
algumas participações em projetos de formações pequenas com as quais gravei.
Acho que agora tenho mais tempo para me dedicar a outro tipo de trabalhos»,
sublinha. Durante dois anos, Azevedo trabalhou sozinho, coligindo, reciclando e
improvisando sobre material muito diverso, que chamou para abordar como sendo
seu, expandindo um universo sonoro pessoal já de si vasto (dos combos de jazz
às big bands, da música para orquestra sinfônica a obras de pendor mais
camerístico ou ao teatro musical), acrescentando novas áreas ao escopo de
trabalho que lhe conhecíamos. Este é o aspeto mais surpreendente ao escutarmos
a riqueza e a fantasia que emergem destes “Inner Monologues”. «É um interesse
que vem desde os tempos em que tirei o curso de composição», refere. «Nessa
altura, estudei e ouvi bastante música eletroacústica e música concreta.
Interessei-me em especial pela música realizada por Pierre Schaeffer,
engenheiro eletrotécnico, e compositor Pierre Henry; ambos criaram o grupo
Groupe de Recherche de Musique Concrète.»
Trata-se, no
fundo, de «uma outra forma de pensar composição.» Um processo oficinal de
trabalhar que considera «muito semelhante ao tradicional», com materiais com
diferentes características, heterogêneo, conferindo-lhe, no final, uma
unicidade e coerência assinaláveis. «O maior desafio é não nos perdermos no
processo, uma vez que estamos constantemente a ter o resultado sonoro do que
fazemos; um outro problema é que estes meios podem ser muito deslumbrantes e
por isso podemos perder o controle facilmente, ou até sermos enganados por um
mundo sonoro que por si só já transporta muita riqueza», reforça. Esta só
poderia ser obra de um músico muito experiente e conhecedor das peças que
judiciosamente selecionou e reconfigurou. A música que encontramos em “Inner
Monologues”, poliédrica e camaleônica, espelha o seu interesse em vários
domínios musicais, do jazz ao drum´n´bass, do rock progressivo às eletrônicas
mais experimentais e à música erudita contemporânea. Esta multiplicidade de
referências, que sempre reconhecemos no seu trabalho, tem sido um estímulo
permanente para procurar novos caminhos.
“Run Over by
a Grooming Machine” entrega-se a explorações eletrônicas, um drum’n’bass
vertiginoso, espelho do mundo hodierno, temperado por um saxofone etéreo
(Mortágua dixit). “The Tightrope Man” é de um abstracionismo surrealista
particularmente imagético, onde eletrônicas se cruzam com as notas límpidas de
piano, uma guitarra pontual, bateria contida. Em “Disrupted Sleep” são os sons
perturbantes de vidros a estilhaçar que interrompem o sono (o sonho?),
espoletando sinapses ziguezagueantes propulsionadas pela bateria de Diogo Alexandre.
“Carefully Regulated Moments” aproxima-se de certas experiências jazz-rock mais
espaciais; a pouco mais de um minuto do final tudo se aquieta, elevando-se uma
certa solenidade. “Airport” traz eletrônicas ambientais, uma contagem
decrescente, vozes que nos indicam certa localização ou nos chamam a atenção
para algo, refletindo a tensão de quem se prepara (acaba) para sair (de
regressar) do (ao) seu elemento natural. Aterramos. “Let’s Dance” é de uma
beleza ao mesmo tempo esdrúxula e intemporal. “Damaged Music Boxes” retoma uma
atmosfera onírica e singular, criando um mundo de fantasia muito especial.
Em “Inner Monologues”, Carlos Azevedo transporta-nos numa jornada surpreendente e altamente recompensadora.
Faixas
1 - Run
Over By A Grooming Machine
2 - The
Tightrope Man
3 - Disrupted
Sleep
4 - Carefully
Regulated Moments
5 - Airport
6 - An
Ethereal Dream
7 - Let´s
Dance
8 -Damaged Music Boxes
Músicos: Carlos Azevedo— piano, composição, manipulação eletrônica; Miguel Moreira- guitarra; João Mortágua-saxofone; Miguel Angelo-contrabaixo; Mário Costa- bateria; Diogo Alexandre- bateria (03 Disrupted Sleep)
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
Nenhum comentário:
Postar um comentário