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sábado, 15 de junho de 2024

FEDERICO CALCAGNO OCTET - MUNDUS INVERSUS (Habitable)

Federico Calcagno é um jovem músico, mas não é propriamente um novato. Natural de Milão, clarinetista e compositor, tem centrado a sua atividade sobretudo no eixo entre a Itália e a Holanda. Como líder e colíder, já ergueu um interessante corpo de trabalho em álbuns como “From Another Planet” (2019), “Liquid Identities” (2020), “Urlo d'Ebano” e “Piranha” (2021), editados em 2021, “Live Fast, Die a Legend” e “Confini Labili”, ambos de 2022. Já venceu vários galardões internacionais como o prémio Giorgio Gaslini em 2020, o prêmio para Melhor Novo Talento Italiano pela Música Jazz 2020 Top Jazz e o prémio Nuova Generazione Jazz 2021. Calcagno surge agora à frente de um novo consórcio internacional, um octeto formado por músicos oriundos de diferentes países: para além do líder nos clarinetes, oficiam o trombonista belga Nabou Claerhout, o saxofonista português José Soares, o violoncelista espanhol Pau Sola, o vibrafonista esloveno Aleksander Sever, o pianista espanhol Adrián Moncada, o contrabaixista brasileiro Pedro Ivo Ferreira e o baterista grego Nikos Thessalonikefs. “Mundus Inversus” é o registo de estreia da formação, com selo da Habitable Records, editora criada em 2021 por membros do Composers and Improvisers Community Project, como o próprio Calcagno, Camila Nebbia, Francesca Remigi, Max Diller, Killinck Hinds e Samuel Gapp, e sede em Lisboa.

O “mundo invertido” é um tópos literário em que a ordem natural das coisas é derrubada e as hierarquias sociais são invertidas, embora a expressão possa também significar uma inversão simbólica de qualquer natureza. «O álbum gravita em torno deste conceito, expresso pelas pinturas de Hieronymus Bosch e pela figura da carta do tarot, o enforcado», começa por dizer Federico Calcagno à jazz.pt. Na capa do álbum vemos a esfera como representação do mundo, uma citação de “A Criação do Mundo” de Bosch. Um olhar mais atento revela um outro pormenor da maior importância: o fumo cinzento e o sapo são gerados por um incêndio (a imagem é real, captada por satélite). «Quis acrescentar um novo significado a “Mundus Inversus”, uma espécie de “inversão da inversão”: a saúde do nosso planeta está em perigo neste momento. O mundo já está de cabeça para baixo por causa das atividades humanas autodestrutivas, como guerras, violência, poluição, exploração de recursos naturais», explica o músico. (Isso ajuda a compreender títulos de peças como “Liquid War” e “The Other Side of Silence”). «A parte central do álbum tem como foco a figura do enforcado, alguém que é capaz de mudar a nossa visão das coisas para realizar transformações radicais e trazer reações positivas na nossa sociedade», prossegue. «Neste sentido, vejo a música como um meio para inverter novamente o mundo e possivelmente trazê-lo para um estado de bem-estar pacífico.» (“Perseverance” e “Recovery” simbolizam dois elementos-chave neste tipo de ação.)

As composições que escutamos em “Mundus Inversus”, escritas entre 2020 e 2023, revelam elegância e riqueza tímbrica, dando de certa forma continuidade ao trabalho que Calcagno levou a cabo com o seu quinteto Liquid Identities, baseado em Amsterdã (com clarinete, saxofone alto, violoncelo, piano e bateria). Esta banda expandiu-se para octeto porque o músico italiano quis experimentar com mais instrumentos e cores. «Os três instrumentos adicionados são contrabaixo, vibrafone e trombone, elementos que fortalecem a seção rítmica e também a seção de sopros», refere o clarinetista. A música foi escrita tendo em atenção as características específicas dos músicos em presença, seguindo a máxima ellingtoniana de, por um lado, dar espaço a cada um, e, ao mesmo tempo, ultrapassar os limites de todo o conjunto. «O principal desafio é encontrar um bom equilíbrio entre individualidade e coletividade, improvisação e material escrito», sublinha.

Federico Calcagno reitera em “Mundus Inversus” a sua atenção ao formato acústico, ao desenvolvimento de formas mais longas e à construção de novos arranjos e de texturas orquestrais, combinando elementos do jazz (clássico e contemporâneo) e da música clássica hodierna, amiúde com transições vincadas. Passagens suaves alternam com explosões poderosas, melodias temáticas, ritmos irregulares, estruturas complexas – o reflexo de um processo evolutivo como instrumentista e compositor que começou pela música clássica e moderna, depois pela descoberta do jazz, da música improvisada e da música contemporânea, acomodando na sua abordagem elementos desses grandes mundos. «Às vezes sentia-me um estranho em cada cena, não conseguia definir-me como um músico de jazz ou clássico. Às vezes tenho a mesma sensação agora», revela. «Se alguém me perguntar que tipo de música toco, diria que apenas gosto de tocar música criativa, música que realmente expressa sentimentos, ideias, imagens internas, não filtradas por outros objetivos.» O sempre delicado equilíbrio entre as estruturas formais e as partes improvisadas é conseguido através do espaço que concede a todos os músicos, para que cada voz individual se possa se expressar, ao mesmo tempo que aplica regras de precisão na direção da música. «A improvisação pode aparecer como um conteúdo extemporâneo numa forma prefixada ou pode tornar-se uma nova forma plástica e dinâmica que não foi determinada no início do processo.»

Da inicial e programática “Liquid War” – composta durante o primeiro confinamento de 2020 – avultam os jogos de interação entre diferentes vozes instrumentais e camadas rítmicas, sem que ninguém adquira particular protagonismo, com a força do coletivo a sobressair. “Hieronymus”, homenagem pessoal ao mestre neerlandês, é uma peça de recorte camerístico mais solene (com uma harmonia devedora de certas obras de Kurtág), focando aspectos melódicos e harmônicos, com uníssonos apertados dos sopros, o violoncelo a despontar, dramático, as notas límpidas do piano, e solos do líder e de Soares, que elevam a peça a um patamar de maior intensidade, até que, no ocaso, tudo serena. “The Other Side of Silence” é a única peça que não foi composta por Calcagno, mas pelo pianista Adrián Moncada, pianista baseado em Amsterdã; é outra peça dinâmica, em constante alternância de atmosferas de grande rigor formal, com a centralidade do clarinete do líder a vir ao de cima. “The Hanged Man”, núcleo central do álbum, é uma suíte em três andamentos, cada um simbolizando uma fase peculiar do processo de libertação da personagem do tarô de experiências e preconceitos adquiridos: “Paralysis”, “Ego Sacrifice” e “A New Trail”(«A sua visão invertida simboliza uma inversão completa de perspetivas, uma mudança positiva na forma de viver e de pensar, talvez estranha à das massas», diz Calcagno). A primeira parte é curto preâmbulo de uma tranquilidade inquieta; a segunda é apresentado pelos sopros, que lançam momentos agitados, com solo altivo de clarinete, que o saxofone de Soares contrasta, conduzindo a peça para uma secção de travo mais vintage. O último andamento é de intrincada relojoaria, dele sobressaindo o vibrafone ágil. O mesmo que introduz, com o clarinete baixo, “Perseverance”, peça escrita pelo clarinetista para outro projeto, Federico Calcagno & The Dolphians (sexteto italiano dedicado a Eric Dolphy, mas não só), a que aqui são acrescentados novos graus de liberdade. “Recovery” retoma um esquisso antigo e revela uma primeira parte mais melódica e serena, ecoando harmonias do jazz clássico; uma mudança de rumo transporta a peça para terrenos mais suingantes, assentes num motivo rítmico e com notáveis solos de contrabaixo e trombone, encerrando o disco num tom otimista.

“Mundus Inversus” é um álbum multímodo e deveras interessante.

Músicos: Federico Calcagno— clarinete baixo e clarinete; Nabou Claerhout— trombone; José Soares— saxofone alto; Pau Sola— violoncelo; Aleksander Sever— vibrafone; Adrián Moncada— piano; Pedro Ivo Ferreira— contrabaixo; Nikos Thessalonikefs— bateria.

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

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