Nascido em
Brighton e a vivendo em Londres, John Butcher (n. 1954) é um saxofonista cujo
trabalho poliédrico varia entre a improvisação – com diferentes graus de
liberdade –, as suas próprias composições, peças com múltiplas camadas sonoras,
explorações com feedback, acústicas invulgares e momentos que não são
propriamente concertos. O seu percurso como explorador sonoro a solo ou
integrando formações em diferentes contextos e configurações instrumentais, tem
uma característica perene que é o envolvimento com um sentido de lugar. O álbum
de 2018 “Resonant Spaces”, por exemplo, é uma coleção de atuações gravadas
durante uma digressão por locais invulgares na Escócia continental e nas ilhas
Órcades. Após doutorar-se em cromodinâmica quântica, Butcher deixou o mundo
acadêmico e concentrou-se na música. Desde então, colaborou com centenas de
artistas como Derek Bailey, John Stevens (Spontaneous Music Ensemble), Rhodri
Davies, Last Dream of the Morning (com John Edwards e Mark Sanders), Steve
Beresford, Matthew Shipp, Gerry Hemingway, Chris Burn, Thermal (com Andy Moor e
Thomas Lehn), Eddie Prévost, Okkyung Lee, John Russell, Phil Minton ou o luso
RED Trio (Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino e Gabriel Ferrandini), no
magnífico “Summer Skyshift”, editado pela Clean Feed em 2016, entre uma miríade
de outros. Butcher também gosta dos desafios colocados por encontros ocasionais
– desde grandes grupos como o London Skyscraper de Butch Morris, o t'nonet de
Fred van Hove, a WDR Sinfonieorchester e a EX Orkestra, até concertos em duo
com Sophie Agnel, Joe McPhee, Keiji Haino, David Toop, Akira Sakata, Eli
Keszler, John Tilbury, Fred Frith, Ute Kanngiesser e Otomo Yoshihide. As suas
composições tanto podem ser para grandes formações no Huddersfield Contemporary
Music Festival (HCMF), dois quartetos de saxofones, para o Futurist
Intonarumori, Tarab Cuts (baseada em gravações árabes antigas), e para a London
Sinfonietta e CEPRO (criada para ser apresentada um convento do século XVI na
Cidade do México).
O trabalho
mais recente de John Butcher é “Fluid Fixations”, uma encomenda do HCMF,
editado pela Weight of Wax. Catorze músicos com diferentes personalidades são
colocados numa estrutura construída a partir de instruções que orientam sub-formações
e materiais sonoros, numa teia de relações em permanente mudança. A obra foi
informada por aquilo a que Butcher apelida de «orquestração psicológica» –
imaginar como pessoas específicas podem reagir a ideias particulares e à
«companhia sônica» de que fazem parte. «Em geral, não sou apreciador de tocar livremente
em grandes grupos, mas estou interessado numa espécie de paradoxo, como dar
instruções a conjuntos maiores sem perder as coisas únicas que advêm da
improvisação sem instruções», diz John Butcher à jazz.pt. “Fluid Fixations” é a
continuação de uma abordagem que começou com o ensemble de Chris Burn nos anos
1990. Criar peças para determinados músicos e moldar as suas contribuições,
como em “somethingtobesaid” (2008) e “Isola” (2012) serão outros exemplos.
«Este novo trabalho», prossegue Butcher, «é para o maior grupo até agora e eu
queria tentar manter a agilidade de um pequeno grupo a improvisar, mas também
fazer com que acontecessem coisas que nunca sairiam de uma improvisação
aberta.» Os desafios foram vários, nestes jogos entre ideias pré-definidas e a
forma como os vários músicos reagem a tais estímulos. «Como fazer com que as
personalidades sónicas dos músicos se sintam parte integrante das estruturas e
das instruções. A obra deve soar como se estivesse a crescer à frente dos
nossos ouvidos e não como algo que foi colado a partir de mundos diferentes»,
sublinha o saxofonista. «Escolhi músicos que têm realmente algo a dizer, mas ao
mesmo tempo estão especialmente sintonizados com as sensibilidades da
colaboração.» Butcher já tinha colaborado no passado com todos eles – num mapa
de cumplicidades com múltiplas interseções, espécie de diagrama de Venn da
música experimental, com diversas sobreposições. John Butcher acaba por ser o
denominador comum: as pessoas do grupo não haviam tocado todas umas com as
outras e há algumas que nem sequer se conheciam.
O termo
“fluido” é particularmente bem aplicado a esta música; não há papéis fixos ou
subordinações tradicionais. Tudo é subvertido – as formas sonoras são
construídas, destruídas e reconstruídas, remetendo para os processos naturais
em constante renovação. De uma circularidade natural onde os materiais são
infinitamente reconfigurados, em diferentes tempos e espaços, e a distintas
velocidades. «Os conceitos pré-determinados – como dieb13 a improvisar com
gravações de vinil que fiz para a peça, ou a mudança de agrupamentos – podem
ser organizados para gerar uma sensação de fluidez», explica o músico
britânico. «Mas também queria trazer isso para as longas secções de tutti –
colocando instruções internas que definissem e alterassem o curso, mas que
ainda permitissem que a energia do grupo evoluísse de uma forma natural.» O
resultado final acabou por surpreender o próprio: «Fiquei muito satisfeito por
ter surgido tanta coisa que foi além do que eu poderia ter imaginado quando
escrevi a peça.» A música construída em “Fluid Fixations” é particularmente
imagética, sugerindo quadros em constante desenvolvimento. «Penso que isso
aumenta a sensação de que a música se move através do tempo em vez de existir
no tempo. Se quiser, muitas histórias estão a desenrolar-se – do abstrato ao
cinematográfico», realça John Butcher. Algumas secções utilizam imagens, na sua
maioria retiradas da natureza, para sugerir espaços onde os músicos podem
afastar-se da partitura para criar os seus próprios mundos.
“Slipstream”
abre com filigrana rítmica, até que os demais instrumentos se juntam,
interagindo em vários patamares, individualmente ou em núcleos que vão
coalescendo e ligando-se a outros, num jogo coletivo permanente de ação e reação.
“Ice Needles” é dominada por sons inusitados, numa mescla ignota de
organicidade e inputs eletrónicos, discernindo-se um violino e outros
cordofones. A delicada massa sonora desenvolve-se paulatinamente. Os músicos
convocam diferentes técnicas para alargar a paleta sonora. Em “Florid”
instala-se uma atmosfera auroral, num crescendo de vida. “Oyashio” traz ecos de
uma ancestralidade oriental. Os saxofones de Butcher adquirem algum
protagonismo, com a eletrónica a fazer bastante mais do que preencher interstícios
e a percussão sempre a aditar detalhes. “Cracked Mercury” é mais abstrata; as
cordas tangidas com arco conferem gravidade, notas esparsas do piano, o
saxofone soprano ziguezagueia, os sopros dialogam, numa massa sonora espessa em
plena metamorfose. “At Risk of Enchantment” traz ambientes oníricos que de
alguma forma servem de antecâmara para a surpreendente diversidade motívica de
“Metastable Bloom”, uma das peças mais interessantes do álbum (escuta-se de
novo o saxofone soprano de Butcher), a espaços assumindo contornos difusamente
camerísticos. “Ersa” é de uma tensão latente que tanto pode representar o fim
como o início de algo, num ciclo mágico e intemporal. A música de “Fluid
Fixations”, cuja estrutura reflete e refrata as auras únicas destes músicos, é
maravilhosa.
Faixas
1.Slipstream
06:01
2.Ice
Needles 06:24
3.Florid
07:38
4.Oyashio
13:14
5.Cracked
Mercury 05:28
6.At
Risk of Enchantment 03:24
7.Metastable Bloom 12:19
8.Ersa 09:55
Músicos: dieb13— toca-discos; Liz Allbee— trompete; Sophie Agnel— piano; Hannah Marshall— violoncello; Angharad Davies— violino; Pat Thomas— eletrônicas; Mark Sanders— percussão; John Edwards— contrabaixo; Ståle Liavik Solberg— bateria; Matthias Müller— trombone; Isabelle Duthois— voz, clarinete; Pascal Niggenkemper— contrabaixo; Aleksander Kolkowski— viola stroh, serra musical; John Butcher— saxofones, gravações, composição.
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
Nenhum comentário:
Postar um comentário