O panorama
português da música improvisada continua numa espantosa ebulição, com o
surgimento quase diário de novos projetos e formações, mais ou menos estáveis,
em diferentes contextos estilísticos e geometrias instrumentais. O trio
lisboeta Sonic Tender – constituído pelo pianista Guilherme Aguiar, o
guitarrista João Carreiro e o baterista João Valinho – é mais um, e notável,
exemplo. Três músicos bastante ativos, cada qual com a sua personalidade
própria (muitas são as circunstâncias que o demonstram) e aportando dimensões
distintas à música que fazem em conjunto. São os próprios que se definem-se
como um trio «dedicado a transmutar fontes sônicas num objeto sonoro
unificado.» «O nosso objetivo principal», explicam à jazz.pt, «é unir os sons
de cada instrumento, de modo a tornar-se indistinguível quem faz o quê.»
»Pensamos no grupo como constituído por um só elemento pianoguitarrabateria,
um só músico, uma só fonte sonora.»
João Carreiro
e Guilherme Aguiar tocam em duo há vários anos. A sua intenção «sempre foi
unir, fundir o som do piano e guitarra num só.» Com o propósito de expandir
esta exploração, incluindo mais instrumentos, e alargar o espetro sonoro, mais
tarde juntou-se-lhes João Valinho. «Estamos os três interessados em
improvisação de um modo bastante horizontal, isto é, em termos de não
hierarquização da participação dos nossos instrumentos em grupo», sublinham. O
baterista realça o labor do trio na exploração da vertente tímbrica, tendo como
ponto de partida aquilo que os outros dois já vinham fazendo enquanto duo: «Com
a bateria deu-se, necessariamente, uma expansão de timbres, com uma atenção que
se manteve no cruzamento destes, e com um novo elemento que, por sua vez, em
função da sua versatilidade, cria igualmente uma incerteza na origem dos
diversos sons produzidos.» «Interessa-me bastante a experiência acusmática. E
considero forte e importante essa metáfora de uma procura muito ativa da
diluição das fronteiras entre instrumentos», completa.
Surpreendentemente,
embora os temas tenham uma componente forte de improvisação, são todos
compostos. Não obstante, nos títulos de cada um, o fato de os verbos serem
invariavelmente conjugados no gerúndio parece significar algo que está em
progresso, em permanente construção. «Cada faixa tem um processo de criação
único, umas surgem de ideias concretas para a junção pretendida dos
instrumentos, outras de improvisações que posteriormente fixamos em formas
específicas», explicam. «A escolha dos nomes teve o intuito de identificar as
ações que estariam associadas a cada tema, para nós.» Estamos, pois, perante um
modus operandi revelador de uma distribuição igualitária dos papéis dos vários
instrumentos no todo sonoro. «Há momentos em que a presença de um dos
instrumentos se destaca, mas não interessa desde que faça “sentido” sonoro para
o conjunto total. Potencialmente contribuímos todos da mesma forma, no som
total do conjunto.»
A música que
escutamos é orgânica e natural, por vezes tranquila, outras vezes mais tensa,
criando um universo sónico multirreferencial, demonstrativo, como sublinha João
Valinho, das «diversas possibilidades de articulação de cada instrumento no
processo musical, de forma unificada e consistente, naquilo que cada peça
apresenta.» Na auroral “Judging” os instrumentos interagem num triálogo em pé
de igualdade, a guitarra límpida, o piano a fornecer uma camada harmônica
instável, a bateria prenhe de detalhes. Intui-se que o resultado poderá ser
semelhante a performances anteriores, mas com a variabilidade injetada pela
improvisação. Em “Pointing” tudo parece tornar-se mais nervoso; motivos
telegráficos são explorados pelo piano, Carreiro assume um papel mais textural
e Valinho alimenta uma carga que teima em não se dissipar. “Pulsing” é
repetitivo e maquinal e “Descending I” serve de microintrodução para o
exploratório “Growing”. “Speaking” envolve-nos para atmosfera tranquila, mas ao
mesmo tempo inquietante, de uma tensão insidiosa, com as notas claras do piano,
os dedilhados da guitarra acústica, as percussões sempre a acrescentar
elementos de filigrana. “Descending II” é brevíssima antecâmara para a também
não muito longa “Shivering”, escura e claustrofóbica. Em “Partying” é o piano
que domina a cena com as suas angulosidades, parecendo convocar diferentes
espaços e tempos, do stride ao free jazz. De repente, tudo serena e o piano
deambula até convergir para o silêncio, culminando um álbum muito interessante
e que importa desvendar nos seus mais insondáveis recantos.
Faixas
1.Judging
06:45
2.Pointing
08:38
3.Pulsing
04:42
4.Descending
I 00:11
5.Growing
02:56
6.Speaking
05:56
7.Descending
II 00:12
8.Shivering
01:14
9.Partying
04:55
Músicos: Guilherme Aguiar— piano; João Carreiro— guitarra; João Valinho— bateria
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
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