No budismo tantra tibetano, Garuda é uma figura mitológica,
meio homem e meio pássaro, simbolizando a ligação entre o céu e a terra, a união
dos opostos. Garuda é frequentemente representado atrás da cabeça de Buda,
agindo como protetor e devorando o inimigo, a serpente (naga, em sânscrito),
simbolizando o estado desperto da mente. Garuda é também o nome do trio que
reúne o saxofonista alto Hugo Costa (que conhecemos de grupos como Albatre,
Anticlan ou Real Mensch), o sempre irrequieto e poliédrico Hernâni Faustino no
contrabaixo (RED Trio, Wire Quartet de Rodrigo Amado, Nau Quartet de José
Lencastre, No Nation Trio, Staub Quartet, de entre uma constelação de
diferentes projetos) e João Valinho, baterista que também se desmultiplica por
várias formações, em múltiplos contextos e configurações instrumentais. O trio
começou a ganhar forma no verão de 2021, quando Hugo Costa – há muito radicado em
Roterdã, Países Baixos – convidou os outros dois, quando de uma passagem por
Lisboa, para uma sessão de trabalho, ficando logo evidente que havia ali uma
química especial entre os três. A formação editou em 2022 o seu registo de
estreia homónimo na Subcontinental Records, muito possivelmente a única editora
independente indiana de música experimental.
Dois anos depois, o trio regressa com uma companhia
especial, o pianista Rodrigo Pinheiro, no álbum “Tongues of Flames”, com selo
da A New Wave of Jazz, do guitarrista, explorador sonoro e produtor Dirk
Serries (onde Costa já havia editado “The Art of Crashing”, em duo com o
baterista alemão Philipp Ernsting). Os músicos encontram-se numa rede apertada
de cumplicidades (Pinheiro e Faustino no mui saudoso RED Trio, com João Valinho
a juntar-se-lhes em vários outros projetos partilhados), embora nunca, até
aqui, tivessem tocados todos juntos. Esta miríade de conexões musicais
telepáticas radica em cumplicidades artísticas, mas também pessoais. «Esta
colaboração com o Rodrigo surgiu após um concerto que fizemos em trio, eu, o
Rodrigo e o João Valinho no Cossoul», começa por explicar Hugo Costa à jazz.pt.
«O Rodrigo, o Hernâni e o João são uma secção rítmica fantástica e já têm muita
experiência a tocar juntos.» «O concerto correu muito bem, gostamos da
interação e da cumplicidade que se desenvolveu. No dia seguinte, tínhamos uma
sessão marcada em estúdio com o Garuda Trio e achei que seria interessante se o
Rodrigo se juntasse a nós.» Costa, que conheceu pessoalmente Pinheiro nessa
noite, não perdeu tempo: fez-lhe o convite, aceitado sem delongas, o que
acelerou todo o processo. «Obviamente que conhecia a sua música, da qual sou um
grande fã. Em termos de interação a tocar juntos, houve imediatamente uma forte
empatia musical entre nós», acrescenta o saxofonista. Os quatro seguiram então
para estúdio e tocaram juntos pela primeira vez durante duas horas, a com a
música a «fluir naturalmente.»
A proposta sonora do trio continua solidamente fundada na
linguagem do free jazz, da improvisação livre e da música contemporânea
europeia, sem premissas pré-estabelecidas e com os músicos predispostos para
explorar diferentes abordagens. Mais uma vez, tudo o que aqui se escuta foi
completamente improvisado, engendrado numa lógica de espontaneidade e interação
em tempo real, com o piano a aditar todo um amplo espetro de novas
possibilidades. «O Rodrigo é um músico genial, com uma linguagem moderna e uma
abordagem única que se mescla muito bem com a música do trio. Ele traz todas
essas qualidades para a música: harmonias atípicas, o acompanhamento, o ritmo,
faz com que o trio fica com uma sonoridade muito diferente», sublinha Hugo
Costa. A música revela diferentes densidades e intensidades, sem descurar uma
vertente mais contemplativa e espiritual. Não há aqui hierarquias ou ordens,
antes uma distribuição equitativa nos papéis, que se revela central para o
cômputo sonoro. «É uma interação igualitária, pode haver momentos de
improvisação coletiva e outros momentos em que um instrumento se destaca, mas
não existem subordinações.»
Notável exercício de coesão sonora, “Raw” – peça de abertura
e a mais extensa das três peças do álbum – é introduzida pelas notas cavas do
contrabaixo, com os outros instrumentos a juntarem-se-lhe, enveredando por
caminhos de uma serenidade detalhada. O saxofone de Costa deambula a vários
níveis de altitude (mais focado, mais livre), o piano de Pinheiro é cristalino,
o contrabaixo como sólida âncora, a bateria minuciosa. Os quatro músicos vão
estabelecendo elos, trocando frases e estabelecendo diálogos, explorando
motivos que surgem e logo se desvanecem, ressurgindo adiante, num jogo
permanente de estímulos cruzados em crescendo paulatino de intensidade. Costa
recorre ao registo altíssimo, com mudanças de timbre e frases em espiral; a
bateria entra em ebulição, com o piano a juntar ornamentos e riffs rápidos.
Piano e bateria ficam em duo, explorando um motivo melódico expandido rítmica e
harmonicamente. Costa regressa usando uma surdina na campânula do saxofone, não
poupando nos multifônicos. Faustino pega no arco e com golpes fortes lança uma
espécie de onda de alta tensão, para depois tudo serenar. De cunho vincadamente
ayleriano, a peça-título é mais nervosa e agitada, exponenciando os níveis de
interação. Costa sopra flamejante, Pinheiro propõe uma desafiante base
harmónica (da qual emana, a dado instante, um notável solo de traços angulosos;
contrabaixo e bateria, em ebulição constante, acrescentam graus de liberdade.
Alguma da tensão vai sendo lentamente libertada. “If We Dance” começa por
trazer um suíngue esdrúxulo, rápido, com os quatro instrumentos numa dança
frenética, entrelaçando as suas linhas. O piano surge mais lírico, a bateria
aporta uma torrente de ritmos e o contrabaixo uma pulsação vigorosa. Instala-se
uma atmosfera calma, emergindo micromotivos, estruturas frágeis, fios de som.
Entramos numa espécie de meditação, com o saxofone a tocar harmónicos em forma
de melodia e Faustino a recorrer ao arco trazendo gravidade. Na derradeira
secção, saxofone e piano entabulam uma conversa, a que se junta o contrabaixo,
e a música salta para altos níveis energéticos.
Faixas
1.Raw
18:08
2.Tongues
Of Flames 05:59
3.If We
Dance 15:01
Músicos: Hugo Costa— saxofone alto; Hernâni Faustino— contrabaixo; João Valinho— bateria; Rodrigo Pinheiro— piano.
Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)
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