O segundo registo do trio Amiira é uma peça-chave do
catálogo da Arjunamusic, editora do baterista e músico eletrônico Samuel
Rohrer, que tem vindo a construir uma estética própria. Este coletivo composto
pelo clarinetista e saxofonista Klaus Gesing, o baixista Björn Meyer e o
próprio Rohrer, todos eles figuras de destaque da cena europeia, apresenta-nos
uma música eletroacústica extremamente fluida, tão acessível quanto desafiante.
Fundada em 2012 pelo músico suíço Samuel Rohrer, hoje a
residir em Portugal, a Arjunamusic tem-se afirmado como uma editora
independente de referência no campo de uma certa música eletrônica e
eletroacústica, com um pé na ambiência mais aventurosa e outro nas músicas de
dança de pendor minimalista. Mas tem também editado algum pop experimental e
música improvisada totalmente acústica, assumindo-se assim como uma editora
versátil. Versátil, mas de forte coerência estética: aliás, ao invés, de
procurarmos classificar os diferentes “gêneros” abarcados pelo seu catálogo, é
mais pertinente observar que, com ele, Rohrer tem vindo a criar uma estética
sui generis, o seu próprio universo sonoro. A sensibilidade que lhe
reconhecemos enquanto um dos principais bateristas europeus atuais, com uma
abordagem muito aberta e detalhada e uma profunda atenção ao som (mas também
capaz de “groovar” intensamente quando a música assim o pede), é
igualmente visível no seu trabalho de produtor discográfico: álbuns muito bem
arquitetados, que se ouvem com prazer do princípio ao fim, com excelente
qualidade de som, capas apelativas e um grafismo irrepreensível. Em suma,
podemos dizer que o catálogo da Arjuna, no seu todo, corresponde à obra de
Rohrer enquanto artista criativo: «um trabalho de composição a todos os
níveis», como o próprio nos confessou em entrevista.
“Curious Objects”, segundo registo do trio Amiira (sucessor
do seu álbum homónimo de 2016), que junta o baterista e produtor ao
clarinetista e saxofonista Klaus Gesing e ao baixista Björn Meyer, ambos
músicos bem conhecidos na cena europeia, é uma peça-chave desse mesmo catálogo.
À partida, poderíamos perguntar, porventura intrigados: como pode a referida
coerência estética verificar-se quando nele encontramos propostas tão díspares
quanto, por exemplo, o trio do pianista João Paulo Esteves da Silva e as
colaborações de Rohrer com o conhecido DJ Ricardo Villalobos? Ora, é justamente
um álbum como este que vem, por assim dizer, resolver o quebra-cabeças. Por um
lado, um pouco à semelhança do que acontece com o referido trio de piano,
ouvimos aqui ambientes concisos, partes de um universo em que o lirismo e a
exploração sônica coabitam; e embora, neste caso, existam várias composições
predeterminadas (em geral, coletivas, à exceção de uma peça assinada apenas por
Gesing e outra pela harpista e cantora de origem iraniana Asita Hamidi),
intercaladas com algumas composições espontâneas, a música soa sempre tão
fluida que acaba por não ser perceptível qualquer ruptura entre os elementos
predeterminados (certas melodias, balanços, etc.) e aquilo que resulta da
interação do trio em tempo real. Por outro, este é um álbum de música
eletroacústica, com Gesing e Meyer a recorrer a diversos efeitos e Rohrer a
servir-se, além da bateria, de sintetizadores modulares, e no qual se ouvem por
vezes ecos das referidas músicas de dança associadas à estética da Arjuna,
nomeadamente através dos subtis beats que vão aqui e ali surgindo no seio de
uma toada geral que diríamos flutuante (Faixas como “Dare to Dance” ou “Ways of
Paradox” são bons exemplos de como estas duas dimensões se fundem aqui).
As intervenções mais líricas de Gesing são contidas e
sofisticadas, evitando sentimentalismos; e ouvimo-lo também numa abordagem mais
experimental, como na breve, mas belíssima “Refraction of Glass”, momento de
pura alquimia sônica e torção de elementos melódicos. Meyer é músico
extraordinário: tem um dos mais belos sons de baixo elétrico que vamos
encontrando por estes dias e uma elasticidade que muito contribui para a leveza
do conjunto; é além disso, um exímio melodista, trocando por vezes de papéis
com Gesing, num jogo delicioso em que, desafiando convenções, ouvimos
momentaneamente o baixista enquanto frontman e o clarinetista a
ocupar-se da estrutura (A este respeito, ouça-se “Concentric”, a faixa mais
longa do álbum e quiçá o seu ápice, propelida por um intenso ostinato). E julgo
que seria difícil tecer maior elogio a Rohrer do que afirmar que estamos aqui
perante uma das suas mais inspiradas prestações em disco, exemplo perfeito das
várias qualidades que acima lhe reconheci.
O resultado final tanto pode ser apreciado enquanto pano de
fundo sonoro, muito agradável, como proporcionar uma experiência imersiva, de
atenção máxima. Atenção essa que vai revelando o quão rica em detalhes é esta
música: debaixo de uma superfície que diria geralmente acessível - aveludada
(no melhor sentido possível) - escondem-se múltiplas camadas, microelementos em
permanente fluxo. É como se a música se pautasse por dois movimentos
simultâneos: por um lado, aquele que segue o fio condutor principal, o curso do
rio, digamos; por outro, o movimento (interior) dos inúmeros organismos que
nele habitam. Julgo ser em grande medida essa dualidade que, aliada ao som excepcional
- tão nítido quanto envolvente - desse mestre que é o técnico Gérard de Haro,
faz este um álbum tão belo e inebriante.
Faixas
1.Garden
of Silence 06:01
2.Dare
to Dance 04:39
3.On
Second Thought 04:42
4.Ways
of Paradox 03:48
5.Now
That We Finally Met 04:43
6.Refraction
01:42
7.Concentric
07:57
8.Nostalgia
02:06
9.Gravity
Inn 06:41
10.Where
We Go From Here 05:30
Músicos: Klaus Gesing— clarinete baixo, saxofone soprano, efeitos; Björn Meyer— baixo elétrico, efeitos; Samuel Rohrer— bateria, sintetizadores modulares.
Fonte: JOÃO ESTEVES DA SILVA (jazz.pt)
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