Passadas mais
de duas décadas depois de “Solo Pictórico”, o contrabaixista Carlos Barretto
tem novo álbum a solo, intitulado “Lonely Dog”. Sozinho, vogando livremente no
seu universo sonoro, soa como uma orquestra inteira.
O trabalho de
Carlos Barretto (n. 1957) está escrito na pedra da história do jazz em Portugal
nas últimas quatro décadas. Vai longe o instante em que influenciado pelo que
escutara no Festival de Jazz de Cascais, decide encostar a guitarra e
dedicar-se ao contrabaixo. É na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal que
estabelece as bases da sua relação com o jazz, que nunca mais largou, embora a
sua mundivisão sonora vá muito além. Barretto é um músico de jazz completo,
conhece a tradição toda, mas a sua abordagem radica na formação clássica,
cimentada pelos estudos na Academia Superior de Música de Viena, no início dos
anos 1980, e depois, de regresso a Lisboa, na Orquestra Sinfônica da RDP. A sua
atividade também se estendeu a vários projetos de exploração da música popular
portuguesa. Mas o meio português era então demasiado incipiente e Barretto
fixa-se em Paris, onde opta definitivamente pelo jazz e pela música improvisada.
Desde então tocou e gravou com uma infinidade de nome grandes, como Lee Konitz,
Mal Waldron, Art Farmer, Horace Parlan, George Cables, Cindy Blackman, John
Stubblefield, Bob Sands, Brad Mehldau, Kirk Lightsey, Don Moye, Gary Bartz, Joe
Chambers e Perico Sambeat, para apenas mencionar alguns. A sua presença é
decisiva nas formações que integra, tanto nas que lidera ou colidera –
porventura Lokomotiv (com Mário Delgado, José Salgueiro e, agora, Ricardo
Toscano), fundado em 1997, será o exemplo mais paradigmático; “25”, o mais
recente registo da formação, é notabilíssimo sinal de frescura e vitalidade –
ou noutros grupos como o trio de Bernardo Sassetti, onde era muitíssimo mais do
que mero sideman. Ainda vivo na memória está também o efêmero trio
Contra3aixos, com Zé Eduardo e Carlos Bica. Barretto reparte hoje a sua
atividade por grupos como o quarteto de Mário Barreiros, o duo Guitolão, com
António Eustáquio, o Lisboa String Trio, com José Peixoto, o projeto “Branco
toca Marco Paulo”, com Pedro Branco e João Sousa, ou o projeto Vagar, de Carlos
Martins, que alia o jazz ao canto alentejano.
Carlos
Barretto sempre gostou de duos – por exemplo, acompanhando a declamação de
poesia, ou com o guitarrista Mário Delgado – e de recitais a solo, por vezes
enquadrado por pinturas de sua autoria. Foi assim que surgiu “Solo Pictórico”,
o seu primeiro álbum a solo, editado no já longínquo ano de 2002 pela CBTM. O
contrabaixista regressa agora ao mais solitário dos formatos com “Lonely Dog”,
edição de autor (não está nas lojas físicas) com o apoio da GDA e da Antena 2,
algo que já havia avançado em entrevista a Nuno Catarino, da jazz.pt, onde
sublinhou o papel da criação em tempo real e deixou pistas sobre como queria
que tudo acontecesse: «levo alguns ambientes e sei que dentro de cada ambiente
vou improvisando e caminhando ao sabor do vento.» Para a gravação de “Lonely
Dog”, realizada ao longo de três dias em janeiro de 2024, Barretto utilizou um
instrumento Paul Claudot de 1850. (Claudot foi um famoso luthier de Mirecourt,
França, filho de outro célebre construtor de instrumentos, Augustin Claudot.)
E, desta vez, não juntou a sua pintura à equação: a capa do álbum é da artista
plástica Ellie Ali. A ligação de Carlos Barretto ao corpulento cordofone é de
uma espantosa intimidade. Será lugar-comum, mas aqui aplicado com propriedade
inatacável: o contrabaixo é entendido quase como um ser com vida própria, um
prolongamento natural do corpo do músico, numa relação biunívoca, fisicamente
intensa, de estímulos e contra estímulos, de ações e reações, num jogo de
cumplicidades que só os próprios compreenderão, mas de que nós, destinatários,
beneficiamos, numa intangível externalidade positiva.
O resultado
dessa relação é tão urgente quão natural, vertido um exercício de depuração e
redução ao essencial. Não há uma nota a mais, um ornamento supérfluo, um
polimento em excesso (Na lógica herbertiana: «Esta linguagem é pura. No meio
está uma fogueira e a eternidade das mãos. / Esta linguagem é colocada e
extrema e cobre, com suas lâmpadas, todas as coisas.»). Este é um álbum curto,
que não chega à meia-hora de duração. E tudo foi exemplarmente captado, o som
cavo e solene, os estalidos da madeira, a sinusoide respiratória. Em “Pitica”
vem logo à tona o imenso sentido melódico de Barretto, numa peça emersa numa
portugalidade nata. Em “Quarto Escuro” recorre ao arco – da forma magistral que
há muito reconhecemos – para construir uma peça de atmosfera inquietante e que
nos deixa os sentidos em sobressalto. “Underdog” é paulatina ruminação que vai
conhecendo contornos diferentes, sem jamais perder de vista a melodia e um swing
difuso. Em “Cleps on Roap”, o contrabaixista assume uma veia mais experimental,
com o recurso a acessórios para alargar as possibilidades sônicas do seu
instrumento. “Mother Echoes”, com sutil suporte eletrônico, é uma construção
monumental, feita de diferentes níveis em permanente articulação. “Fuga para a
Frente” mostra o vibrante pizzicato em diálogo apertado com as funções vitais
do músico. “Lonely Dog” é solene epílogo, que tanto se ancora numa certa
sobriedade camerística, como revela o desejo de continuar a perscrutar o
futuro. Mestre Barretto, sozinho, vogando livremente no seu universo sonoro,
soa como uma orquestra inteira.
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
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