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sábado, 17 de agosto de 2024

CARLOS BARRETTO - LONELY DOG

Passadas mais de duas décadas depois de “Solo Pictórico”, o contrabaixista Carlos Barretto tem novo álbum a solo, intitulado “Lonely Dog”. Sozinho, vogando livremente no seu universo sonoro, soa como uma orquestra inteira.

O trabalho de Carlos Barretto (n. 1957) está escrito na pedra da história do jazz em Portugal nas últimas quatro décadas. Vai longe o instante em que influenciado pelo que escutara no Festival de Jazz de Cascais, decide encostar a guitarra e dedicar-se ao contrabaixo. É na Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal que estabelece as bases da sua relação com o jazz, que nunca mais largou, embora a sua mundivisão sonora vá muito além. Barretto é um músico de jazz completo, conhece a tradição toda, mas a sua abordagem radica na formação clássica, cimentada pelos estudos na Academia Superior de Música de Viena, no início dos anos 1980, e depois, de regresso a Lisboa, na Orquestra Sinfônica da RDP. A sua atividade também se estendeu a vários projetos de exploração da música popular portuguesa. Mas o meio português era então demasiado incipiente e Barretto fixa-se em Paris, onde opta definitivamente pelo jazz e pela música improvisada. Desde então tocou e gravou com uma infinidade de nome grandes, como Lee Konitz, Mal Waldron, Art Farmer, Horace Parlan, George Cables, Cindy Blackman, John Stubblefield, Bob Sands, Brad Mehldau, Kirk Lightsey, Don Moye, Gary Bartz, Joe Chambers e Perico Sambeat, para apenas mencionar alguns. A sua presença é decisiva nas formações que integra, tanto nas que lidera ou colidera – porventura Lokomotiv (com Mário Delgado, José Salgueiro e, agora, Ricardo Toscano), fundado em 1997, será o exemplo mais paradigmático; “25”, o mais recente registo da formação, é notabilíssimo sinal de frescura e vitalidade – ou noutros grupos como o trio de Bernardo Sassetti, onde era muitíssimo mais do que mero sideman. Ainda vivo na memória está também o efêmero trio Contra3aixos, com Zé Eduardo e Carlos Bica. Barretto reparte hoje a sua atividade por grupos como o quarteto de Mário Barreiros, o duo Guitolão, com António Eustáquio, o Lisboa String Trio, com José Peixoto, o projeto “Branco toca Marco Paulo”, com Pedro Branco e João Sousa, ou o projeto Vagar, de Carlos Martins, que alia o jazz ao canto alentejano.

Carlos Barretto sempre gostou de duos – por exemplo, acompanhando a declamação de poesia, ou com o guitarrista Mário Delgado – e de recitais a solo, por vezes enquadrado por pinturas de sua autoria. Foi assim que surgiu “Solo Pictórico”, o seu primeiro álbum a solo, editado no já longínquo ano de 2002 pela CBTM. O contrabaixista regressa agora ao mais solitário dos formatos com “Lonely Dog”, edição de autor (não está nas lojas físicas) com o apoio da GDA e da Antena 2, algo que já havia avançado em entrevista a Nuno Catarino, da jazz.pt, onde sublinhou o papel da criação em tempo real e deixou pistas sobre como queria que tudo acontecesse: «levo alguns ambientes e sei que dentro de cada ambiente vou improvisando e caminhando ao sabor do vento.» Para a gravação de “Lonely Dog”, realizada ao longo de três dias em janeiro de 2024, Barretto utilizou um instrumento Paul Claudot de 1850. (Claudot foi um famoso luthier de Mirecourt, França, filho de outro célebre construtor de instrumentos, Augustin Claudot.) E, desta vez, não juntou a sua pintura à equação: a capa do álbum é da artista plástica Ellie Ali. A ligação de Carlos Barretto ao corpulento cordofone é de uma espantosa intimidade. Será lugar-comum, mas aqui aplicado com propriedade inatacável: o contrabaixo é entendido quase como um ser com vida própria, um prolongamento natural do corpo do músico, numa relação biunívoca, fisicamente intensa, de estímulos e contra estímulos, de ações e reações, num jogo de cumplicidades que só os próprios compreenderão, mas de que nós, destinatários, beneficiamos, numa intangível externalidade positiva.

O resultado dessa relação é tão urgente quão natural, vertido um exercício de depuração e redução ao essencial. Não há uma nota a mais, um ornamento supérfluo, um polimento em excesso (Na lógica herbertiana: «Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira e a eternidade das mãos. / Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas lâmpadas, todas as coisas.»). Este é um álbum curto, que não chega à meia-hora de duração. E tudo foi exemplarmente captado, o som cavo e solene, os estalidos da madeira, a sinusoide respiratória. Em “Pitica” vem logo à tona o imenso sentido melódico de Barretto, numa peça emersa numa portugalidade nata. Em “Quarto Escuro” recorre ao arco – da forma magistral que há muito reconhecemos – para construir uma peça de atmosfera inquietante e que nos deixa os sentidos em sobressalto. “Underdog” é paulatina ruminação que vai conhecendo contornos diferentes, sem jamais perder de vista a melodia e um swing difuso. Em “Cleps on Roap”, o contrabaixista assume uma veia mais experimental, com o recurso a acessórios para alargar as possibilidades sônicas do seu instrumento. “Mother Echoes”, com sutil suporte eletrônico, é uma construção monumental, feita de diferentes níveis em permanente articulação. “Fuga para a Frente” mostra o vibrante pizzicato em diálogo apertado com as funções vitais do músico. “Lonely Dog” é solene epílogo, que tanto se ancora numa certa sobriedade camerística, como revela o desejo de continuar a perscrutar o futuro. Mestre Barretto, sozinho, vogando livremente no seu universo sonoro, soa como uma orquestra inteira.

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

 

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