No dia 4 de
outubro de 2022, o guitarrista Jorge Nuno sofreu um acidente vascular cerebral
e no ano seguinte foi submetido a uma delicada intervenção cirúrgica. O seu
novo álbum, "Labirinto", é parte do processo de cura.
Jorge Nuno
tem atrás de si um percurso abrangente, tanto feito de rock psicodélico e jazz
livre de rótulos (como no seminal Signs of the Silhouette) como na
amplitude sônica da música improvisada. Guitarrista de sonoridade
incandescente, tem sido esteio, entre outras formações, nos Uivo Zebra, nos
Anthropic Neglect do saxofonista José Lencastre, no No Nation Trio (com o
contrabaixista Hernâni Faustino e o baterista João Valinho), no Voltaic Trio
(ao lado do trompetista e manipulador de eletrônicas Luís Guerreiro e do mesmo
Valinho – não perder de vista “290421”, de 2021), no trio Sameer (com Felipe
Zenicola no baixo elétrico e Felice Furioso na bateria), ou no quarteto que
gravou o recente “Break it Down” (a par de Flak, na caixa de ritmos analógica,
José Lencastre e Hernâni Faustino). Integra também o coletivo da editora
Phonogram Unit. A vida decidiu pô-lo à prova: no dia 4 de outubro de 2022, o
músico lisboeta sofreu um acidente vascular cerebral e tudo parecia querer
começar do zero. Foi submetido a uma delicada intervenção cirúrgica no início
de fevereiro do ano seguinte para fechar um pequeno buraco no coração. E o que
tem a ver esta condição personalíssima com o seu novo disco a solo? Tudo.
“Labirinto” surge um ano depois e é uma prova de vida, um testemunho de
resiliência e de vitalidade, um momento pivotal que ainda está para saber do
quê. «Foi precisamente o fato de ter tido o AVC que motivou a gravação deste
disco a solo”», começa por dizer Jorge Nuno à jazz.pt. «Este é um disco muito pessoal
e desafiante para mim, tal como foi desafiante todo o processo de recuperação
que deixa sempre as suas marcas», refere. «O disco foi uma necessidade minha,
uma expressão pessoal.»
Musicalmente,
“Labirinto” é um passo em frente, apesar do uso da guitarra acústica como
veículo expressivo não ser uma novidade no seu percurso (“Habitation”, do No
Nation Trio, é exemplificativo). “Labirinto” é reflexo de um desejo fundo de
alargar a sua linguagem musical para domínios ainda por si inexplorados, indo além
de redutos pré-definidos. «Este disco é o meu “eu. Senti necessidade de o fazer
como forma de libertação interior. Apesar de aparentemente não ter ligação com
os meus trabalhos anteriores, o nosso passado é a nossa referência e acaba por
ter influência em nós», sublinha Jorge Nuno. O músico atira-se para o
desconhecido e gere as consequências em tempo real, sem rede ou preconceitos.
Admite que este álbum foi construído de forma diferente em termos sonoros,
muito influenciado pelos sons que o marcaram durante o internamento. Registado
nos estúdios Namouche, em Lisboa («o Joaquim Monte tinha que o gravar»), em
novembro de 2023 – a mistura e masterização judiciosas de Rodrigo Pinheiro
também em muito concorrem para a limpidez do resultado final –, “Labirinto”
espelha o labor de Jorge Nuno no sentido de nutrir a liberdade criativa através
do seu instrumento, no caso em modo acústico. «Ainda não sei se é o princípio
de algo novo ou o fim de um ciclo», admite. Um autodesafio. O certo é que o
guitarrista nos dá a escutar é um exercício de redução ao primordial, como se
nada mais contasse, como se tudo o resto fosse despiciendo. «Neste disco
sinto-me totalmente “despido” e esse foi o objetivo principal, pois também não
me sinto tão confortável com a guitarra acústica como com a elétrica e isso foi
propositado dado o contexto em que surge este disco.»
A música,
completamente improvisada, é crua e visceral, por vezes calma, noutras
frenética. Esta é, confessa o guitarrista, «uma forma de libertação»; o
resultado está relacionado com os «sentimentos ambíguos durante todo o processo
por mim vivido. A principal sequela com que fiquei após o AVC, foi a perda de
memória e dificuldade em expressar-me.» A abrir, o vigor urgente de “Sombras”,
convocando diferentes registos do instrumento. “Cérebro” é longa deambulação
introspetiva, com uma tênue linha melódica que emerge sob formas
distintas. Jorge Nuno aborda outra
função vital em “Respirar”, ora ofegante, por vezes à beira do descontrole, ora
parecendo serenar, ainda que tensa. “Esfera” traduz uma inquietação permanente;
não precisa de distorção ou outras eletrônicas para fazer tremer. A peça que dá título ao disco é mais caótica,
no seu dédalo de sons que conhecem várias dimensões, emaranhadas, tornando-se
difícil intuir uma saída. Em “Apneia” entramos num universo fluido, sem
referências e nele vagueamos em busca de sentido. A “Solidão” apazigua os
sentidos, mas ao mesmo tempo deixa entrar um silêncio inquisitivo. Do caos para
a ordem, “O Fim” é isso mesmo: o princípio de tudo. Num todo emocionalmente
impactante, à música juntam-se a fotografia de Nuno Martins, os vídeos de
Miguel Cravo (com quem já colaborara nos Signs of the Silhouette) e as palavras
do médico e escritor Rui Baião: «podia-se até suprimir o vazio, sob a córnea do
já enegrecido: as tais visões turvas — vergões sintéticos, repletos d’ânimo.
perdermo-nos na jaula insubmissa do sonho. por instantes, sermos o regresso
impossível ao casulo do rei. em vez de um inverno rigoroso, uma coisa inacabada.
como a pobreza e o horror.» Na sua autenticidade orgânica, “Labirinto” é também
um exercício espiritual de regeneração através da música.
Faixas
1.Sombras 04:22
2.Cérebro 07:44
3.Respirar 06:40
4.Esfera 06:56 vídeo
5.Labirinto 04:49 vídeo
6.Apneia 06:07
7.Solidão 05:01
8.O fim 04:08
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