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sábado, 21 de setembro de 2024

CARLOS MARTINS – VAGAR (Nischo)

“Vagar” é o novo projeto do saxofonista e compositor Carlos Martins, que junta o jazz ao canto alentejano e aos sons do Mediterrâneo. Uma ode à desaceleração num mundo a enegrecer.

Terceira prateleira, lado esquerdo. Sopramos o pó do dicionário. Cá está: “vagar: verbo transitivo e intransitivo: deixar ou ficar vago; deixar ou estar livre ou desocupado; verbo transitivo: (tempo) sobrar (a) entregar-se (a); dedicar-se (a); nome masculino: lentidão; tempo livre; ócio; ensejo, ocasião, oportunidade”. Expressão mais comum a sul do Tejo, é um traço cultural, um modo de vida, uma identidade. “Vagar” é, certamente por isso, o nome do mais recente projeto do saxofonista e compositor Carlos Martins, que junta o jazz ao canto alentejano (reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO desde 2014) no seu enquadramento mediterrânico. Músico de jazz e homem do mundo, Carlos Martins – alentejano de Grândola, vila onde nasceu em 1961 – pensou diferente e arriscou. Exorta-nos a que atentemos no valor do tempo, da pausa para a escuta, da contemplação. Inspirado na música e na cultura alentejanas, terra onde as coordenadas espaço-temporais adquirem contornos peculiares, pede-nos que respiremos e convida-nos a «parar a estranha normalidade dos nossos dias». Carlos Martins explica: «a ideia central de composição inspira-se na tradição alentejana da respiração que sustenta o vagar, dos espaços vastos, do mar, da planície, dos tempos das gentes, da luz e dos contrastes de sombra, da fraternidade e da construção humanista e criativa do mundo.» O escritor José Luís Peixoto, autor de várias das letras, sublinha a ideia: «nascemos no interior desta paisagem, desta pronúncia, deste tempo. A terra tem uma voz, somos capazes de escutá-la. Os sobreiros, sob o peso da sua idade, têm uma voz. Os mortos, gerações encadeadas, têm uma voz. Somos capazes de distinguir todas essas vozes, são levadas pela aragem que também arrasta o silêncio.»

“Vagar”, disco editado pela Nischo, é também uma reflexão sobre o devir, como sempre foi o vagar alentejano, e é uma proposta que coloca em causa o papel da música na sociedade atual, contribuindo para repensar o seu valor imaterial e espiritual. Para o saxofonista, «o maior desafio foi escrever música que contivesse em si as mesmas pistas para os códigos humanos ancestrais sob o prisma da improvisação ou de uma certa liberdade interpretativa e democrática que dela advém.» Carlos Martins destila influências e erige um repertório em que através da tradição se pode ousar trilhar novos caminhos. Tenhamos presente que o jazz e o canto alentejano, exemplos de solidariedade e resistência, são artes de natureza eminentemente coletiva; a coabitação dialética entre o indivíduo e o grupo, e destes com o espaço que os envolve. A ideia central para este projeto assenta numa visão cosmopolita da tradição alentejana, numa avassaladora tranquilidade, onde os ponteiros do relógio têm outra velocidade, nos contrastes vincados entre luz e sombra (magnificamente captados pela lente de José Manuel Rodrigues), em paisagens sonoras que desafiam as diferentes ecologias sociais e territoriais. Rejeitam-se “jazzificações” inconsequentes e apropriações oportunistas. A linguagem do jazz é empregada como pedra angular para um processo de construção que transcende a tradição para a repensar e reinventar criativamente. «A coexistência para a cocriação e coevolução, expressas neste trabalho, exigiu contenção, tempo e espaço para resolver essas tensões, promovendo saudavelmente o confronto como plataforma para a celebração ritual de algo maior do que cada um de nós», sublinha o saxofonista.

Carlos Martins surge acompanhado nesta jornada por uma formação-base formada por Paulo Bernardino (clarinete baixo e efeitos), João Bernardo (piano e sintetizador), Carlos Barretto (contrabaixo), Joana Guerra (violoncelo e efeitos) e Alexandre Frazão (bateria). Como convidados juntam-se-lhes Manuel Linhares (voz), André Fernandes (guitarra) e João Barradas (acordeão). O canto alentejano está a cargo de uma formação criada propositadamente para o projeto, o Grupo Procante, mescla de seniores e jovens cantadores: Hugo Bentes, Pedro Calado, Francisco Pestana, Luís Aleixo, Carlos Franco Nobre, Moisés Moura, Luís Soares e Francisco Bentes. “Vagar” é o primeiro disco de Carlos Martins em que todas as músicas são cantadas, com letras do próprio e de José Luís Peixoto. Os ensaios decorreram em Beja, no coração do Baixo Alentejo, a partir de maio de 2023, em inúmeras viagens entre a cidade grande e a pequena, com paragens em Grândola, entre o mar e a planície. Martins recorda Sophia quando a poeta disse que «quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.» (Sim, o vagar do mar também está neste disco.) Estes encontros foram essenciais para a composição e para adequar as letras às regras do canto, que as existem, e suas misteriosas ressonâncias: «basta uma sílaba no lugar errado, uma palavra que não permita o vaguear das vozes na respiração coletiva e a música não acontece», sublinha Carlos Martins. Os detalhes foram burilados com labor de ourives, num equilíbrio tão frágil quão desafiante entre tradição e risco.

Eleva-se um canto gravíssimo, que vem da noite dos tempos, um “Canto Zen (A Fonte)”, a que Carlos Barretto adiciona uma camada de solenidade recorrendo ao arco. É o piano e um motivo proposto pelo contrabaixista que lançam “Rouxinol”, moda tradicional, misturada com os sons africanos dos “Negros do Sado” (uma associação que, diga-se, vem muito de trás, como se pode ler no livro “Os «Pretos do Sado»: História e memória de uma comunidade alentejana de origem Africana (Séculos XV-XX)”, da professora Isabel Castro Henriques). De contornos elegantes e mais jazzísticos é “Ausência Presente”; um “pós-fado árabe”, “Mar-Planície” conta com as intervenções do cantor Manuel Linhares (exímio quer no canto sem palavras, quer quando as trabalha com afinação notável) e do guitarrista André Fernandes, com Carlos Martins a soar devedor de Jan Garbarek. Em “Mal ou Bem” o canto é de uma beleza arrepiante: Barretto lança um balanço inusitado, piano solto, Frazão pulsante, o clarinete baixo de Paulo Bernardino a acrescentar novas cores. “Eternidade” é uma bela balada, com Linhares a brilhar, Bernardo, Barretto e Frazão soberbos no recato. “Mediterrâneo” remete para as origens da cidade de Lisboa e ao mito de Ulisses, com toda a atenção centrada no canto e no violoncelo de Joana Guerra. “Malgostosa” é de uma simplicidade e beleza tocantes e o tema tradicional “Extravagante” («Chamaste-me extravagante / Por eu ter uma noitada. / Não sou um rapaz brilhante, / Recolho de madrugada») conhece aqui um belo arranjo, que transporta a melodia-base para outra dimensão, com os diálogos saxofone-clarinete baixo e um grande solo do saxofonista. “Flor de Luz” – exercício prospetivo que nos transporta para Évora, 2027 – assume um travo quase-camerístico, com o canto límpido de Linhares (sem palavras) e João Barradas interventivo no acordeão. A fechar, “Romã”, outro tema tradicional («Eu quero ir pra cidade / Porque o campo me aborrece / Que eu lá na cidade tenho / Quem penas por mim padece»).

Um belo disco, telúrico e intemporal.

Faixas

1.Cante Zen (A fonte) 02:46

2.Rouxinol (Negros do Sado - trad.) 04:27

3.Ausência Presente 04:47

4.Mar-Planície (Al-Andaluz, pós fado árabe) 06:36

5.Mal ou Bem (Não estou perdido no mundo) 05:26

6.Eternidade (No céu um calor frio) 04:50

7.Esta Voz (Esta terra quer cantar) 01:53

8.Mediterrâneo (Mães sem lar) 07:16

9.Alentejo, Terra Inteira 02:35

10.Malgostosa 02:26

11.Extravagante (Um rapaz brilhante - trad.) 03:43

12.Flor de Luz (Évora 2027) 07:28

13.Romã (A romãzeira do meu quintal - trad.) 03:49

 Músicos: Carlos Martins— composição, arranjos, letras, saxofone tenor; Alexandre Frazão— bateria; Carlos Barretto— contrabaixo; João Bernardo— piano, sintetizador. Joana Guerra— violoncelo, efeitos; Grupo Procante: Hugo Bentes, Pedro Calado, Francisco Pestana, Luís Aleixo, Carlos Franco Nobre, Moisés Moura, Luís Soares, Francisco Bentes— voz; Manuel Linhares— voz; André Fernandes— guitarra; João Barradas— acordeão; José Luís Peixoto— letras

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

 

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