“Vagar” é o
novo projeto do saxofonista e compositor Carlos Martins, que junta o jazz ao
canto alentejano e aos sons do Mediterrâneo. Uma ode à desaceleração num mundo
a enegrecer.
Terceira
prateleira, lado esquerdo. Sopramos o pó do dicionário. Cá está: “vagar: verbo
transitivo e intransitivo: deixar ou ficar vago; deixar ou estar livre ou
desocupado; verbo transitivo: (tempo) sobrar (a) entregar-se (a); dedicar-se
(a); nome masculino: lentidão; tempo livre; ócio; ensejo, ocasião,
oportunidade”. Expressão mais comum a sul do Tejo, é um traço cultural, um modo
de vida, uma identidade. “Vagar” é, certamente por isso, o nome do mais recente
projeto do saxofonista e compositor Carlos Martins, que junta o jazz ao canto
alentejano (reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela
UNESCO desde 2014) no seu enquadramento mediterrânico. Músico de jazz e homem
do mundo, Carlos Martins – alentejano de Grândola, vila onde nasceu em 1961 –
pensou diferente e arriscou. Exorta-nos a que atentemos no valor do tempo, da
pausa para a escuta, da contemplação. Inspirado na música e na cultura
alentejanas, terra onde as coordenadas espaço-temporais adquirem contornos
peculiares, pede-nos que respiremos e convida-nos a «parar a estranha
normalidade dos nossos dias». Carlos Martins explica: «a ideia central de
composição inspira-se na tradição alentejana da respiração que sustenta o
vagar, dos espaços vastos, do mar, da planície, dos tempos das gentes, da luz e
dos contrastes de sombra, da fraternidade e da construção humanista e criativa
do mundo.» O escritor José Luís Peixoto, autor de várias das letras, sublinha a
ideia: «nascemos no interior desta paisagem, desta pronúncia, deste tempo. A terra
tem uma voz, somos capazes de escutá-la. Os sobreiros, sob o peso da sua idade,
têm uma voz. Os mortos, gerações encadeadas, têm uma voz. Somos capazes de
distinguir todas essas vozes, são levadas pela aragem que também arrasta o
silêncio.»
“Vagar”,
disco editado pela Nischo, é também uma reflexão sobre o devir, como sempre foi
o vagar alentejano, e é uma proposta que coloca em causa o papel da música na
sociedade atual, contribuindo para repensar o seu valor imaterial e espiritual.
Para o saxofonista, «o maior desafio foi escrever música que contivesse em si
as mesmas pistas para os códigos humanos ancestrais sob o prisma da
improvisação ou de uma certa liberdade interpretativa e democrática que dela
advém.» Carlos Martins destila influências e erige um repertório em que através
da tradição se pode ousar trilhar novos caminhos. Tenhamos presente que o jazz
e o canto alentejano, exemplos de solidariedade e resistência, são artes de
natureza eminentemente coletiva; a coabitação dialética entre o indivíduo e o
grupo, e destes com o espaço que os envolve. A ideia central para este projeto
assenta numa visão cosmopolita da tradição alentejana, numa avassaladora
tranquilidade, onde os ponteiros do relógio têm outra velocidade, nos
contrastes vincados entre luz e sombra (magnificamente captados pela lente de
José Manuel Rodrigues), em paisagens sonoras que desafiam as diferentes
ecologias sociais e territoriais. Rejeitam-se “jazzificações” inconsequentes e
apropriações oportunistas. A linguagem do jazz é empregada como pedra angular
para um processo de construção que transcende a tradição para a repensar e
reinventar criativamente. «A coexistência para a cocriação e coevolução,
expressas neste trabalho, exigiu contenção, tempo e espaço para resolver essas
tensões, promovendo saudavelmente o confronto como plataforma para a celebração
ritual de algo maior do que cada um de nós», sublinha o saxofonista.
Carlos
Martins surge acompanhado nesta jornada por uma formação-base formada por Paulo
Bernardino (clarinete baixo e efeitos), João Bernardo (piano e sintetizador),
Carlos Barretto (contrabaixo), Joana Guerra (violoncelo e efeitos) e Alexandre
Frazão (bateria). Como convidados juntam-se-lhes Manuel Linhares (voz), André
Fernandes (guitarra) e João Barradas (acordeão). O canto alentejano está a
cargo de uma formação criada propositadamente para o projeto, o Grupo Procante,
mescla de seniores e jovens cantadores: Hugo Bentes, Pedro Calado, Francisco
Pestana, Luís Aleixo, Carlos Franco Nobre, Moisés Moura, Luís Soares e
Francisco Bentes. “Vagar” é o primeiro disco de Carlos Martins em que todas as
músicas são cantadas, com letras do próprio e de José Luís Peixoto. Os ensaios
decorreram em Beja, no coração do Baixo Alentejo, a partir de maio de 2023, em
inúmeras viagens entre a cidade grande e a pequena, com paragens em Grândola,
entre o mar e a planície. Martins recorda Sophia quando a poeta disse que
«quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.»
(Sim, o vagar do mar também está neste disco.) Estes encontros foram essenciais
para a composição e para adequar as letras às regras do canto, que as existem,
e suas misteriosas ressonâncias: «basta uma sílaba no lugar errado, uma palavra
que não permita o vaguear das vozes na respiração coletiva e a música não
acontece», sublinha Carlos Martins. Os detalhes foram burilados com labor de
ourives, num equilíbrio tão frágil quão desafiante entre tradição e risco.
Eleva-se um
canto gravíssimo, que vem da noite dos tempos, um “Canto Zen (A Fonte)”, a que Carlos
Barretto adiciona uma camada de solenidade recorrendo ao arco. É o piano e um
motivo proposto pelo contrabaixista que lançam “Rouxinol”, moda tradicional,
misturada com os sons africanos dos “Negros do Sado” (uma associação que,
diga-se, vem muito de trás, como se pode ler no livro “Os «Pretos do Sado»:
História e memória de uma comunidade alentejana de origem Africana (Séculos
XV-XX)”, da professora Isabel Castro Henriques). De contornos elegantes e mais
jazzísticos é “Ausência Presente”; um “pós-fado árabe”, “Mar-Planície” conta
com as intervenções do cantor Manuel Linhares (exímio quer no canto sem
palavras, quer quando as trabalha com afinação notável) e do guitarrista André
Fernandes, com Carlos Martins a soar devedor de Jan Garbarek. Em “Mal ou Bem” o
canto é de uma beleza arrepiante: Barretto lança um balanço inusitado, piano
solto, Frazão pulsante, o clarinete baixo de Paulo Bernardino a acrescentar
novas cores. “Eternidade” é uma bela balada, com Linhares a brilhar, Bernardo,
Barretto e Frazão soberbos no recato. “Mediterrâneo” remete para as origens da
cidade de Lisboa e ao mito de Ulisses, com toda a atenção centrada no canto e
no violoncelo de Joana Guerra. “Malgostosa” é de uma simplicidade e beleza
tocantes e o tema tradicional “Extravagante” («Chamaste-me extravagante / Por
eu ter uma noitada. / Não sou um rapaz brilhante, / Recolho de madrugada»)
conhece aqui um belo arranjo, que transporta a melodia-base para outra
dimensão, com os diálogos saxofone-clarinete baixo e um grande solo do saxofonista.
“Flor de Luz” – exercício prospetivo que nos transporta para Évora, 2027 –
assume um travo quase-camerístico, com o canto límpido de Linhares (sem
palavras) e João Barradas interventivo no acordeão. A fechar, “Romã”, outro
tema tradicional («Eu quero ir pra cidade / Porque o campo me aborrece / Que eu
lá na cidade tenho / Quem penas por mim padece»).
Um belo
disco, telúrico e intemporal.
Faixas
1.Cante Zen (A fonte) 02:46
2.Rouxinol (Negros do Sado - trad.) 04:27
3.Ausência Presente 04:47
4.Mar-Planície (Al-Andaluz, pós fado árabe) 06:36
5.Mal ou Bem (Não estou perdido no mundo) 05:26
6.Eternidade (No céu um calor frio) 04:50
7.Esta Voz (Esta terra quer cantar) 01:53
8.Mediterrâneo (Mães sem lar) 07:16
9.Alentejo, Terra Inteira 02:35
10.Malgostosa 02:26
11.Extravagante (Um rapaz brilhante - trad.) 03:43
12.Flor de Luz (Évora 2027) 07:28
13.Romã (A romãzeira do meu quintal - trad.) 03:49
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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