Volvidos 50
anos desde «o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do
silêncio» – como Sophia magistralmente descreveu o dia 25 de abril de 1974 –,
tempo de alívio e libertação, vivemos um terremoto político cujos estragos o
tempo se encarregará de evidenciar. Ao quarto disco, intitulado “Vale das
Flores”, a pianista, compositora e arranjadora Isabel Rato não se exime desse
combate político e humanista: «Este disco vem numa perspectiva das comemorações
dos 50 anos do 25 de Abril, em que, mais do que nunca, penso que é fundamental
lutarmos pela liberdade, pelos direitos das pessoas, pela dignidade das
pessoas», começa por dizer à jazz.pt. Este é um disco com os pés bem assentes
na música portuguesa e na referência aos cantautores mais ligados à
Revolução dos Cravos, como José Afonso e Sérgio Godinho, cooptados para o
universo musical da formação que dirige. «A ideia foi sempre trazer para a
nossa linguagem estas canções, providas de mensagens vitais, e também de uma
enorme riqueza melódica e harmônica», prossegue. Este disco surge também da
necessidade que sentiu de «fazer os arranjos, de um disco totalmente dedicado à
música portuguesa.» Neste novo álbum, Isabel Rato conta com os préstimos dos
seus colaboradores habituais: João David Almeida na voz, João Capinha nos
saxofones e clarinete, João Custódio no contrabaixo e Alexandre Alves na
bateria, além de vários músicos convidados: Ana Bacalhau, Cuca Roseta, Marta
Pereira da Rocha e o Quarteto Arabesco. A luta continua, uma luta que não é
apenas sua, mas que se estende a quem consigo embarcou neste projeto. «Os meus
companheiros são bastante ativos politicamente e muito assertivos em relação a
todas estas matérias, por isso, a música é uma das formas que temos de
expressar e lutar pelo que acreditamos. Sempre foi e sempre será.» O fato de
serem todos os membros do grupo serem professores também lhes confere um quadro
especial de responsabilidades, que assumem por inteiro: «Quero acreditar, e
tento fazer por isso, por ter também um papel ativo na formação dos jovens e
das pessoas em geral, na área das artes nomeadamente através da música.»
Depois de em
2016 ter editado o seu álbum de estreia em nome próprio, “Para Além da Curva da
Estrada”, pela Sintoma, seguiram-se “Histórias do Céu e da Terra”, de 2019, e
“Luz”, de 2022. O percurso de Isabel Rato fala por si, mas o novo disco tem um
significado especial, não apenas pelo teor da mensagem que transmite, como pelo
próprio desenrolar do processo criativo. «Ouvi muita música mesmo quando decidi
avançar para este projeto», explica. «As que fui selecionando são de fato
alguns dos meus temas preferidos no que diz respeito aos textos, às melodias, à
harmonia, como tudo se conjuga e flui. Foi importante também conhecer muita
música que ainda não tinha ouvido, relembrar muita coisa, e perceber quais as
canções que mais me tocavam e emocionavam», realça. De “Vale das Flores” fazem
ainda parte um tema original de João Capinha e também canções do cancioneiro
tradicional português. Os arranjos são elegantes, mantendo intacta o traço
original das canções, mas ao mesmo tempo interpelando-as à luz de uma realidade
necessariamente diferente. «A responsabilidade e o desafio serão sempre
respeitar e honrar os autores em questão. Respeitar as canções e as suas
melodias que fazem parte da nossa cultura, da nossa história», salienta Isabel
Rato, que pensou neste material como portas que abrem para uma imensidão de
novas possibilidades para a música viver ou soar de outra forma, com outras
características. «Uma canção é todo um universo a explorar, depois acabo por
fazer escolhas e tomar muitas decisões do que me parece melhor, e do que faz
mais sentido para mim, e da mensagem que desejo passar, também do ponto de
vista estético», sublinha. Ressalta claro também um certo propósito de
contenção, em que «menos é mais», como refere. «Então é ir fazendo a gestão de
todas as ideias e ver o que funciona melhor tanto na música como também para os
instrumentos e para os músicos.»
“Era Um
Redondo Vocábulo”, canção escrita em 1973 por José Afonso aquando da sua prisão
em Caxias, conhece um arranjo sóbrio de que ressaltam a voz de João David
Almeida e o decisivo saxofone de João Capinha. “Liberdade”, de Sérgio Godinho,
escrita em 1974 logo após o 25 de Abril, é uma canção de mensagem atualíssima,
que veicula lutas e inquietações. Mais solene é a versão de “Manhã”, canção de
Pedro Abrunhosa escrita para Carlos do Carmo, com um belo arranjo para cordas
interpretado pelo Quarteto Arabesco – ganhando distância do original (Isabel
Rato vinca que os arranjos de cordas são uma das suas grandes paixões. “Cantiga
Bailada” – tradicional da Beira Baixa – conhece um arranjo talhado para a
energia da voz de Ana Bacalhau. A guitarra portuguesa de Marta Pereira da Costa
e a voz de Cuca Roseta – com margem para soltar amarras – aportam especial
portugalidade ao caráter inabalável de “Que Amor Não Me Engana”, outra canção
de Mestre Afonso, aqui exemplarmente gerida em termos de espaço e harmonia.
“Cantigas do Maio”, gravada em 1971 – ano pivotal para a revolução antes da
revolução, como lhe chamou Luís de Freitas Branco num livro recente – é outro
monumento afonsino que conhece aqui leitura plena de graciosidade. “Barca dos
Amantes”, de Sérgio Godinho e Milton Nascimento (está no álbum “Coincidências”,
de 1983, a revisitar sempre), traz uma solenidade tocante, com o saxofone
soprano em diálogo próximo com a voz delicada de João David Almeida, num
arranjo escrito pelo compositor e pianista Luís Barrigas para o Quarteto
Arabesco. A fluidez do piano da líder empresta um balanço suingado a “Balança”,
tema de João Capinha com poema de José Saramago), em que o cantor se entrega a
um exercício de scat. A fechar, um olhar fresco sobre “Olha o Velho,
Olha o Velho”, canção satírica de Bragança. Com “Vale das Flores”, Isabel Rato
reforça o sentido perene destas canções, juntando a sua voz ao esforço conjunto
para qual coro de Zéfiros, soprar para longe as nuvens negras que pairam sobre
as nossas cabeças.
Faixas
1 Era Um Redondo Vocábulo
2 Liberdade
3 Manhã
4 Cantiga Bailada
5 Que Amor Não Me Engana
6 Cantigas Do Maio
7 A Barca Dos Amantes
8 Balança
9 Olha O Velho, Olha O Velho
Músicos: Isabel Rato— piano, arranjos; João David Almeida— voz; João Capinha— saxofones e clarinete; João Custódio— contrabaixo; Alexandre Alves— bateria; Quarteto Arabesco— quarteto de cordas; Ana Bacalhau— voz; Cuca Roseta— voz; Marta Pereira da Costa— guitarra portuguesa.
Para conhecer
um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=KbqN255mmHM
Fonte: ANTÓNIO
BRANCO (jazz.pt)
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