playlist Music

sábado, 14 de setembro de 2024

ISABEL RATO - VALE DAS FLORES (Nischo)

Volvidos 50 anos desde «o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio» – como Sophia magistralmente descreveu o dia 25 de abril de 1974 –, tempo de alívio e libertação, vivemos um terremoto político cujos estragos o tempo se encarregará de evidenciar. Ao quarto disco, intitulado “Vale das Flores”, a pianista, compositora e arranjadora Isabel Rato não se exime desse combate político e humanista: «Este disco vem numa perspectiva das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, em que, mais do que nunca, penso que é fundamental lutarmos pela liberdade, pelos direitos das pessoas, pela dignidade das pessoas», começa por dizer à jazz.pt. Este é um disco com os pés bem assentes na música portuguesa e na referência aos cantautores mais ligados à Revolução dos Cravos, como José Afonso e Sérgio Godinho, cooptados para o universo musical da formação que dirige. «A ideia foi sempre trazer para a nossa linguagem estas canções, providas de mensagens vitais, e também de uma enorme riqueza melódica e harmônica», prossegue. Este disco surge também da necessidade que sentiu de «fazer os arranjos, de um disco totalmente dedicado à música portuguesa.» Neste novo álbum, Isabel Rato conta com os préstimos dos seus colaboradores habituais: João David Almeida na voz, João Capinha nos saxofones e clarinete, João Custódio no contrabaixo e Alexandre Alves na bateria, além de vários músicos convidados: Ana Bacalhau, Cuca Roseta, Marta Pereira da Rocha e o Quarteto Arabesco. A luta continua, uma luta que não é apenas sua, mas que se estende a quem consigo embarcou neste projeto. «Os meus companheiros são bastante ativos politicamente e muito assertivos em relação a todas estas matérias, por isso, a música é uma das formas que temos de expressar e lutar pelo que acreditamos. Sempre foi e sempre será.» O fato de serem todos os membros do grupo serem professores também lhes confere um quadro especial de responsabilidades, que assumem por inteiro: «Quero acreditar, e tento fazer por isso, por ter também um papel ativo na formação dos jovens e das pessoas em geral, na área das artes nomeadamente através da música.»

Depois de em 2016 ter editado o seu álbum de estreia em nome próprio, “Para Além da Curva da Estrada”, pela Sintoma, seguiram-se “Histórias do Céu e da Terra”, de 2019, e “Luz”, de 2022. O percurso de Isabel Rato fala por si, mas o novo disco tem um significado especial, não apenas pelo teor da mensagem que transmite, como pelo próprio desenrolar do processo criativo. «Ouvi muita música mesmo quando decidi avançar para este projeto», explica. «As que fui selecionando são de fato alguns dos meus temas preferidos no que diz respeito aos textos, às melodias, à harmonia, como tudo se conjuga e flui. Foi importante também conhecer muita música que ainda não tinha ouvido, relembrar muita coisa, e perceber quais as canções que mais me tocavam e emocionavam», realça. De “Vale das Flores” fazem ainda parte um tema original de João Capinha e também canções do cancioneiro tradicional português. Os arranjos são elegantes, mantendo intacta o traço original das canções, mas ao mesmo tempo interpelando-as à luz de uma realidade necessariamente diferente. «A responsabilidade e o desafio serão sempre respeitar e honrar os autores em questão. Respeitar as canções e as suas melodias que fazem parte da nossa cultura, da nossa história», salienta Isabel Rato, que pensou neste material como portas que abrem para uma imensidão de novas possibilidades para a música viver ou soar de outra forma, com outras características. «Uma canção é todo um universo a explorar, depois acabo por fazer escolhas e tomar muitas decisões do que me parece melhor, e do que faz mais sentido para mim, e da mensagem que desejo passar, também do ponto de vista estético», sublinha. Ressalta claro também um certo propósito de contenção, em que «menos é mais», como refere. «Então é ir fazendo a gestão de todas as ideias e ver o que funciona melhor tanto na música como também para os instrumentos e para os músicos.»

“Era Um Redondo Vocábulo”, canção escrita em 1973 por José Afonso aquando da sua prisão em Caxias, conhece um arranjo sóbrio de que ressaltam a voz de João David Almeida e o decisivo saxofone de João Capinha. “Liberdade”, de Sérgio Godinho, escrita em 1974 logo após o 25 de Abril, é uma canção de mensagem atualíssima, que veicula lutas e inquietações. Mais solene é a versão de “Manhã”, canção de Pedro Abrunhosa escrita para Carlos do Carmo, com um belo arranjo para cordas interpretado pelo Quarteto Arabesco – ganhando distância do original (Isabel Rato vinca que os arranjos de cordas são uma das suas grandes paixões. “Cantiga Bailada” – tradicional da Beira Baixa – conhece um arranjo talhado para a energia da voz de Ana Bacalhau. A guitarra portuguesa de Marta Pereira da Costa e a voz de Cuca Roseta – com margem para soltar amarras – aportam especial portugalidade ao caráter inabalável de “Que Amor Não Me Engana”, outra canção de Mestre Afonso, aqui exemplarmente gerida em termos de espaço e harmonia. “Cantigas do Maio”, gravada em 1971 – ano pivotal para a revolução antes da revolução, como lhe chamou Luís de Freitas Branco num livro recente – é outro monumento afonsino que conhece aqui leitura plena de graciosidade. “Barca dos Amantes”, de Sérgio Godinho e Milton Nascimento (está no álbum “Coincidências”, de 1983, a revisitar sempre), traz uma solenidade tocante, com o saxofone soprano em diálogo próximo com a voz delicada de João David Almeida, num arranjo escrito pelo compositor e pianista Luís Barrigas para o Quarteto Arabesco. A fluidez do piano da líder empresta um balanço suingado a “Balança”, tema de João Capinha com poema de José Saramago), em que o cantor se entrega a um exercício de scat. A fechar, um olhar fresco sobre “Olha o Velho, Olha o Velho”, canção satírica de Bragança. Com “Vale das Flores”, Isabel Rato reforça o sentido perene destas canções, juntando a sua voz ao esforço conjunto para qual coro de Zéfiros, soprar para longe as nuvens negras que pairam sobre as nossas cabeças.

Faixas

1 Era Um Redondo Vocábulo

2 Liberdade

3 Manhã

4 Cantiga Bailada

5 Que Amor Não Me Engana

6 Cantigas Do Maio

7 A Barca Dos Amantes

8 Balança

9 Olha O Velho, Olha O Velho

Músicos: Isabel Rato— piano, arranjos; João David Almeida— voz; João Capinha— saxofones e clarinete; João Custódio— contrabaixo; Alexandre Alves— bateria; Quarteto Arabesco— quarteto de cordas; Ana Bacalhau— voz; Cuca Roseta— voz; Marta Pereira da Costa— guitarra portuguesa.

Para conhecer um pouco deste trabalho, assistam ao vídeo abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=KbqN255mmHM

Fonte: ANTÓNIO BRANCO (jazz.pt)

 

Nenhum comentário: