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sábado, 26 de outubro de 2024

EDUARDO CARDINHO - NOT FAR FROM PARADISE (FRESH SOUND NEW TALENT)

Portugal não é um país particularmente pródigo em vibrafonistas de jazz, bem o sabemos. Ainda assim, há que nomear aqueles que entre nós elevam alto o papel do instrumento: Jeffery Davis, Paulo Santo, o jovem Duarte Ventura e... Eduardo Cardinho. Vibrafonista, compositor e produtor residente no Porto, Cardinho tem-se vindo a destacar como um dos músicos mais criativos da sua geração, conhecido pela abordagem ao vibrafone, rítmica e de sonoridade especial. Depois da estreia em nome próprio com “Black Hole”, em 2016, seguiu-se “Galip Cale”, com o quinteto Galip em 2018, ambos pelo Carimbo Porta-Jazz, e “In Search of Light”, de 2029, na Nischo. O vibrafonista integrou também a formação que gravou também o notabilíssimo “Home”, do acordeonista João Barradas. Do seu percurso avulta o trabalho com formações alargadas, como a Orquestra de Jazz de Espinho – de que é codiretor musical, partilhando a tarefa com Paulo Perfeito –, a Orquestra Jazz de Matosinhos ou a Big Band de Estarreja. A lista de colaborações é extensa e variada, dela ressaltando nomes como David Binney, Seamus Blake, Julian Argüelles, Ben Van Gelder, Ben Street, Carlos Bica, André Fernandes, Jeffery Davis, Ricardo Toscano e Demian Cabaud, para apenas mencionar alguns.

Depois de experimentar diferentes soluções, Eduardo Cardinho aposta em “Not Far From Paradise”, o seu novo álbum editado pela catalã Fresh Sound New Talent, de Jordi Pujol, sobretudo na vertente composicional, fazendo uso de um alargado espectro de referências sônicas, passadas e presentes. Ao longo dos últimos três anos, explorou de forma cada vez mais intensa as sonoridades dos sintetizadores, trocou o contrabaixo pelo baixo elétrico e adicionou percussões, e isso ressalta claro no resultado final. «Quando olho para trás e faço uma retrospectiva de todo o trabalho que criei até hoje, este é sem dúvida o projeto de que mais me orgulho», começa por dizer Eduardo Cardinho à jazz.pt. «Para além de gostar e de me identificar mais com esta minha nova música, penso que esta banda tem uma sonoridade muito poderosa.» Juntam-se-lhe nesta jornada os sintetizadores de José Diogo Martins, o acordeão midi de João Barradas, o saxofone alto (com efeitos) de João Mortágua e uma secção rítmica constituída por Frederico Heliodoro no baixo elétrico, Diogo Alexandre na bateria e Iúri Oliveira nas percussões. A ligação entre o vibrafone e o baixo elétrico foi uma espécie de rastilho: Cardinho conheceu Heliodoro no Brasil em 2017, num festival de jazz onde foi apresentar a sua música e desde então estreitou-se a relação musical entre ambos. O potencial explosivo que a música ganhava levou o vibrafonista, ato contínuo, a pensar em Diogo Alexandre, pela forma como o baterista é capaz de cruzar groove com a exploração de texturas. Essas caraterísticas levaram-no também a José Diogo Martins, que pontifica quer ao piano, acústico e Rhodes, quer nos sintetizadores e no desenho de som. Também a amplitude do sopro de Mortágua assenta como uma luva nesta música, até pelo uso de pedais, essencial para acrescentar outras cores. Chamado para gravar apenas um tema (“Jungle Bees”), Oliveira pegou de estaca no grupo, logo criando laços de cumplicidade com o baterista.

Este é um álbum onde escutamos diferentes ambientes sonoros, com referências diversas (jazz, hip hop, pop, rock, eletrônicas), muitas remetendo para fusões de setentas (está tudo na capa) ou para ritmos brasileiros. «O Fred ajudou-me a produzir este disco e trouxe imensas ideias de possíveis grooves de bateria que poderíamos usar, muitas delas têm muita influência da música de Minas Gerais», sublinha, assumindo a grande inspiração na música brasileira. A escrita é sóbria e inventiva, genericamente filiada em certo jazz-rock mais planante, mas transcendendo essas fronteiras óbvias, sobretudo por via das articulações entre o vibrafone do líder e os sintetizadores, que rasgam um vasto leque de possibilidades. Ao mesmo tempo cuidadosamente estruturada e admitindo amplo espaço para a improvisação, a música de Cardinho é um caldeirão no qual se misturam diversos ingredientes, em proporções distintas. «Tento não programar grande coisa ou padronizar», refere o vibrafonista, «tudo o que escrevo são melodias que me aparecem na cabeça, ou harmonias que descubro enquanto estou no meu Rhodes ou nos sintetizadores a explorar.» Por vezes tudo acontece de forma espontânea, outras vezes nem tanto: «Depois de a ideia estar formada tento estruturar a canção de forma a tentar contar uma história e como o que mais adoro fazer é improvisar, todas as minhas canções têm sempre algo de improvisação», acrescenta o músico.

“Not Far From Paradise” acaba por ser um álbum conceitual, perpassado por uma narrativa sônica que lhe confere um fio condutor. “It Was Just a Dream” funciona como declaração de propósitos, com a melodia onírica lançada em uníssono por vibrafone e saxofone, que leva a solos de guitarra e vibrafone, sempre envolvidos por um balanço descontraído, até ao reagrupamento, com o sintetizador a espessar o lado ambiental. “Anxiety” (confinamento pandêmico forçado), mais nervosa mas sem perder o sentido melódico, é introduzida pelo vibrafone do líder, que dialoga com o saxofone alto de Mortágua. A secção rítmica acrescenta octanas, sobretudo por via da irrequieta pulsação fornecida pela bateria de Alexandre. As atmosferas tranquilas regressam em “Life Contemplation”, uma quase-canção de melodia simples e harmonia sofisticada, com uma secção de improvisação livre que faz a peça disparar noutras direções. Alguns dos melhores momentos do álbum acontecem em “Jungle Bees”, com os níveis energéticos a subir a pique num festim rítmico. Uma nota no topo acrescenta movimento e traz um aditivo melódico, cantável até, contrastada por uma outra melodia, mais irreverente, tocada por vibrafone, saxofone e acordeão. “November 17” (data do falecimento do avô de Cardinho, a quem o disco é dedicado), começa sombria e tensa, com o vibrafonista a solar com leveza e requinte sobre tapete aveludado, evoluindo para uma melodia vívida (ou de como a dor do luto evolui para a felicidade das boas recordações). “The Beauty of Simple Things” é um piscar de olhos a certa pop soalheira, misturada com dose generosa de jazz e música brasileira. Mortágua sola altivo e Cardinho parte à aventura num ótimo solo de Rhodes (a primeira vez que gravou um solo de teclado num disco). A partir de um belo motivo melódico constrói-se “Distorted Thoughts”, outro dos zênites do álbum, com a sua riqueza de atmosferas. A fechar, “Hope” lembra que nos resta a esperança num mundo a enegrecer.

“Not Far From Paradise” é prova eloquente, se necessária fosse, da relevância de Eduardo Cardinho enquanto vibrafonista e compositor, aguçando expetativa para o que fará a seguir.

Faixas

1.It Was Just a Dream 07:10

2.Anxiety 04:59

3.November 05:34

4.Life Contemplation 06:50

5.Jungle Bees 05:09

6.The Beauty of Simple Things 06:48

7.Distorted Thoughts 07:57

8.Hope 04:33

Músicos: Eduardo Cardinho— vibrafone, sintetizadores; João Mortágua— saxofone alto; José Diogo Martins— piano elétrico Fender Rhodes, sintetizadores; Frederico Heliodoro— baixo elétrico; Diogo Alexandre— bateria; Iúri Oliveira— percussões; João Barradas— sintetizadores, acordeão

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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