Portugal não
é um país particularmente pródigo em vibrafonistas de jazz, bem o sabemos.
Ainda assim, há que nomear aqueles que entre nós elevam alto o papel do
instrumento: Jeffery Davis, Paulo Santo, o jovem Duarte Ventura e... Eduardo
Cardinho. Vibrafonista, compositor e produtor residente no Porto, Cardinho
tem-se vindo a destacar como um dos músicos mais criativos da sua geração,
conhecido pela abordagem ao vibrafone, rítmica e de sonoridade especial. Depois
da estreia em nome próprio com “Black Hole”, em 2016, seguiu-se “Galip Cale”,
com o quinteto Galip em 2018, ambos pelo Carimbo Porta-Jazz, e “In Search of
Light”, de 2029, na Nischo. O vibrafonista integrou também a formação que
gravou também o notabilíssimo “Home”, do acordeonista João Barradas. Do seu
percurso avulta o trabalho com formações alargadas, como a Orquestra de Jazz de
Espinho – de que é codiretor musical, partilhando a tarefa com Paulo Perfeito
–, a Orquestra Jazz de Matosinhos ou a Big Band de Estarreja. A lista de
colaborações é extensa e variada, dela ressaltando nomes como David Binney,
Seamus Blake, Julian Argüelles, Ben Van Gelder, Ben Street, Carlos Bica, André
Fernandes, Jeffery Davis, Ricardo Toscano e Demian Cabaud, para apenas
mencionar alguns.
Depois de
experimentar diferentes soluções, Eduardo Cardinho aposta em “Not Far From
Paradise”, o seu novo álbum editado pela catalã Fresh Sound New Talent,
de Jordi Pujol, sobretudo na vertente composicional, fazendo uso de um alargado
espectro de referências sônicas, passadas e presentes. Ao longo dos últimos
três anos, explorou de forma cada vez mais intensa as sonoridades dos
sintetizadores, trocou o contrabaixo pelo baixo elétrico e adicionou
percussões, e isso ressalta claro no resultado final. «Quando olho para trás e
faço uma retrospectiva de todo o trabalho que criei até hoje, este é sem dúvida
o projeto de que mais me orgulho», começa por dizer Eduardo Cardinho à jazz.pt.
«Para além de gostar e de me identificar mais com esta minha nova música, penso
que esta banda tem uma sonoridade muito poderosa.» Juntam-se-lhe nesta jornada
os sintetizadores de José Diogo Martins, o acordeão midi de João Barradas, o
saxofone alto (com efeitos) de João Mortágua e uma secção rítmica constituída
por Frederico Heliodoro no baixo elétrico, Diogo Alexandre na bateria e Iúri
Oliveira nas percussões. A ligação entre o vibrafone e o baixo elétrico foi uma
espécie de rastilho: Cardinho conheceu Heliodoro no Brasil em 2017, num
festival de jazz onde foi apresentar a sua música e desde então estreitou-se a
relação musical entre ambos. O potencial explosivo que a música ganhava levou o
vibrafonista, ato contínuo, a pensar em Diogo Alexandre, pela forma como o
baterista é capaz de cruzar groove com a exploração de texturas. Essas
caraterísticas levaram-no também a José Diogo Martins, que pontifica quer ao
piano, acústico e Rhodes, quer nos sintetizadores e no desenho de som. Também a
amplitude do sopro de Mortágua assenta como uma luva nesta música, até pelo uso
de pedais, essencial para acrescentar outras cores. Chamado para gravar apenas
um tema (“Jungle Bees”), Oliveira pegou de estaca no grupo, logo criando laços
de cumplicidade com o baterista.
Este é um
álbum onde escutamos diferentes ambientes sonoros, com referências diversas
(jazz, hip hop, pop, rock, eletrônicas), muitas remetendo para fusões de
setentas (está tudo na capa) ou para ritmos brasileiros. «O Fred ajudou-me a
produzir este disco e trouxe imensas ideias de possíveis grooves de
bateria que poderíamos usar, muitas delas têm muita influência da música de
Minas Gerais», sublinha, assumindo a grande inspiração na música brasileira. A
escrita é sóbria e inventiva, genericamente filiada em certo jazz-rock mais
planante, mas transcendendo essas fronteiras óbvias, sobretudo por via das
articulações entre o vibrafone do líder e os sintetizadores, que rasgam um
vasto leque de possibilidades. Ao mesmo tempo cuidadosamente estruturada e
admitindo amplo espaço para a improvisação, a música de Cardinho é um caldeirão
no qual se misturam diversos ingredientes, em proporções distintas. «Tento não
programar grande coisa ou padronizar», refere o vibrafonista, «tudo o que
escrevo são melodias que me aparecem na cabeça, ou harmonias que descubro
enquanto estou no meu Rhodes ou nos sintetizadores a explorar.» Por vezes tudo
acontece de forma espontânea, outras vezes nem tanto: «Depois de a ideia estar
formada tento estruturar a canção de forma a tentar contar uma história e como
o que mais adoro fazer é improvisar, todas as minhas canções têm sempre algo de
improvisação», acrescenta o músico.
“Not Far From
Paradise” acaba por ser um álbum conceitual, perpassado por uma narrativa sônica
que lhe confere um fio condutor. “It Was Just a Dream” funciona como declaração
de propósitos, com a melodia onírica lançada em uníssono por vibrafone e
saxofone, que leva a solos de guitarra e vibrafone, sempre envolvidos por um
balanço descontraído, até ao reagrupamento, com o sintetizador a espessar o
lado ambiental. “Anxiety” (confinamento pandêmico forçado), mais nervosa mas
sem perder o sentido melódico, é introduzida pelo vibrafone do líder, que
dialoga com o saxofone alto de Mortágua. A secção rítmica acrescenta octanas,
sobretudo por via da irrequieta pulsação fornecida pela bateria de Alexandre.
As atmosferas tranquilas regressam em “Life Contemplation”, uma quase-canção de
melodia simples e harmonia sofisticada, com uma secção de improvisação livre
que faz a peça disparar noutras direções. Alguns dos melhores momentos do álbum
acontecem em “Jungle Bees”, com os níveis energéticos a subir a pique num
festim rítmico. Uma nota no topo acrescenta movimento e traz um aditivo
melódico, cantável até, contrastada por uma outra melodia, mais irreverente,
tocada por vibrafone, saxofone e acordeão. “November 17” (data do falecimento
do avô de Cardinho, a quem o disco é dedicado), começa sombria e tensa, com o
vibrafonista a solar com leveza e requinte sobre tapete aveludado, evoluindo
para uma melodia vívida (ou de como a dor do luto evolui para a felicidade das
boas recordações). “The Beauty of Simple Things” é um piscar de olhos a certa
pop soalheira, misturada com dose generosa de jazz e música brasileira.
Mortágua sola altivo e Cardinho parte à aventura num ótimo solo de Rhodes (a
primeira vez que gravou um solo de teclado num disco). A partir de um belo
motivo melódico constrói-se “Distorted Thoughts”, outro dos zênites do álbum,
com a sua riqueza de atmosferas. A fechar, “Hope” lembra que nos resta a
esperança num mundo a enegrecer.
“Not Far From
Paradise” é prova eloquente, se necessária fosse, da relevância de Eduardo
Cardinho enquanto vibrafonista e compositor, aguçando expetativa para o que
fará a seguir.
Faixas
1.It Was
Just a Dream 07:10
2.Anxiety
04:59
3.November
05:34
4.Life
Contemplation 06:50
5.Jungle
Bees 05:09
6.The
Beauty of Simple Things 06:48
7.Distorted Thoughts 07:57
8.Hope 04:33
Músicos: Eduardo Cardinho— vibrafone, sintetizadores; João Mortágua— saxofone alto; José Diogo Martins— piano elétrico Fender Rhodes, sintetizadores; Frederico Heliodoro— baixo elétrico; Diogo Alexandre— bateria; Iúri Oliveira— percussões; João Barradas— sintetizadores, acordeão
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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