Em “Live At
Oude Klooster Kapel Brecht”, Hugo Costa, Dirk Serries e Friso Van Wijck
entregam-se à magia insondável da improvisação.
O percurso de
Hugo Costa não cessa de surpreender. Há muito radicado em Roterdam, Países
Baixos, o saxofonista português tem trabalhado sobretudo nos terrenos da
improvisação livre e da música de vanguarda, explorando a abstração melódica e
textural com recurso a técnicas estendidas. Os seus predicados têm sido
vertidos em projetos diversos, como Albatre, Anticlan, Real Mensch, no duo com
o baterista alemão Philipp Ernsting, no trio Land Over Water (com o
contrabaixista Raoul van der Weide e o baterista Onno Govaert) e no trio
Garuda, este já com dois interessantes registros discográficos, com destaque
para o mais recente “Tongues of Flames”, que a jazz.pt resenhou aqui. Hugo
Costa surge agora numa gravação ao vivo registrada em setembro de 2023 numa
capela belga, acompanhado pelo guitarrista e produtor belga Dirk Serries e o
percussionista neerlandês Friso Van Wijck, também editado pela Subcontinental
Records, muito provavelmente a única editora independente indiana ligada a
domínios musicais mais experimentais. Artista multifacetado, Serries explora há
quatro décadas o difuso campo entre a vanguarda, o industrial, o experimental e
o ambiental. Lançou os seus primeiros trabalhos sob o pseudônimo vidnaObmana
até 2007, altura em que encerrou este projeto, deixando uma extensa
discografia. Integra outros projetos como Fear Falls Burning e a sua série
Microphonics fizeram-no colaborar com vários músicos importantes como Steven
Wilson, Justin K. Broadrick, Cult Of Luna, Steve Roach e Rodrigo Amado. Friso
Van Wijck é um compositor, percussionista e baterista com uma trajetória
diversificada que incorpora elementos do metal, jazz, contemporânea e
improvisação; a sua abordagem é ao mesmo tempo poderosa e precisa. A ideia para
esta colaboração como trio partiu do português, que já conhecia bem o trabalho
de Serries e Van Wijck e prospectava o que poderia ser uma colaboração
interessante.
A primeira
vez que tocaram juntos foi em 2021, num evento da Solace Music na bela Noorse
Kerk (igreja norueguesa) em Roterdam. A música evoluiu então de forma fluida,
com cada diálogo a conduzir a algo novo e interessante, tendo o resultado sido
disponibilizado em edição de autor. Passou um ano até que o trio se voltasse a
encontrar novamente, desta vez em concerto ao vivo na capela Oude Klooster, em
Brecht, Bélgica, onde este álbum foi gravado (na sequência de um convite do
guitarrista). Tudo se passou como se esse lapso temporal não tivesse existido:
a interação entre o saxofonista, o percussionista e o guitarrista foi
igualmente dinâmica e comovente. «Este é um álbum de improvisação livre com uma
atmosfera introspetiva, que explora uma vasta paisagem sonora», começa por
dizer Hugo Costa à jazz.pt. Palavras secundadas por Dirk Serries, que reforça o
sucesso do modus operandi e da química criativa do trio: «este segundo encontro
ao vivo é confirmação de que o trio funciona de fato e que tem coisas muito
interessantes para contar.» Com uma configuração instrumental especial, o trio
conta com Serries a tocar guitarra acústica e Van Wijck a ater-se a um vasto
conjunto de instrumentos de percussão, como bombo e gongos, mas também em
acessórios como blocos de madeira, azulejos e metais. A acústica da capela
também desempenha um papel fundamental. Trata-se de uma antiga capela renovada
que é utilizada apenas para eventos culturais e sociais. «A reverberação é
perfeita em termos de duração, com um pouco de modulação no final, o que faz
com que não nos atinja instantaneamente», explica Serries. «A capela também não
é demasiado grande, o que a torna perfeita para dinâmicas detalhadas e
flutuantes, tornando a conversa entre nós fácil e não forçada.»
A música
revela-se sutil nas dinâmicas, com passagens contrastantes, mais enérgicas e
intensas ou mais contemplativas, com o volume contido. Isto não será alheio à
natureza imprevisível, e particularmente intrigante, do trio e de quem os três
são individualmente enquanto músicos. A empatia pitagórica que se estabelece é
também sublinhada pelo guitarrista: «É uma música que requer muita atenção,
pois nunca sabemos onde as coisas vão parar ou como a música vai evoluir.»
«Acredito que todos nós somos músicos únicos, cada um com o seu próprio estilo
e visão, mas de alguma forma, devido à atenção cuidadosa de todos os três uns
pelos outros, a química funciona, misturando o abstrato e imprevisível com o
lírico», diz o guitarrista belga. Atentos ao que cada um ia propondo e fazendo,
os três músicos entregaram-se a jogos de ação e reação – a dois ou a três –,
com harmonias e ritmos densos e diferentes, num modo organicamente espontâneo
(espontaneamente orgânico também se aplicaria), abrindo novas partes para a
evolução dos temas e contribuindo igualitariamente para o cômputo sonoro. Para
Hugo Costa, «a música flui naturalmente, com uma narrativa muito melódica,
abstrata, feita de pequenas estórias ou miniaturas com diferentes estéticas.»
Serries completa: «Uma determinada ação leva a algo novo e interessante e,
embora seja por vezes um pouco difícil encontrar essa abertura ou resposta para
um ou dois de nós, é a combinação e a diversidade dos nossos estilos que faz
com que funcione.»
“Atopia”
começa com o sopro primordial de Costa, feito de notas longas, a que logo se
vêm juntar a guitarra de Serries, com frases melódicas fragmentadas e harmonias
ambíguas, e depois as percussões de Van Wijck. A peça vai-se construindo
paulatinamente, sem protagonismos ou hierarquias. Isto apesar de cada um se
posicionar, a espaços, no centro do que acontece. Fazendo um uso breve de tongue
slap e multifônicos, Costa sopra aqui com uma serenidade que contrasta com
outras propostas suas, permitindo que fios melódicos ganhem outra espessura;
Serries é um notável construtor de texturas e Friso Van Wijck surpreende com
detalhes de filigrana rítmica. Mas este é sobretudo um exercício coletivo, com
a atmosfera da peça, geralmente serena e contemplativa, ganhando por vezes
intensidade, prenhe de detalhes e subtilezas, a atravessar diferentes
geografias e tempos, com o silêncio a desempenhar um papel essencial neste
teatro sonoro de luzes e sombras. Em “Olber’s Paradox” (em astrofísica, o
paradoxo de Olbers expõe a contradição entre a escuridão do céu e a hipótese de
um universo infinito e estático) a conversa é serena entre a guitarra e as
percussões até à entrada do saxofone, que se mantém próximo desse registo
meditativo, não introduzindo disrupção. Os três músicos reduzem o nível sonoro
ao mínimo, com o saxofone de Costa a tomar conta da cena, assumindo um registo
de grande espiritualidade, com frases melódicas a alternarem com outras mais
angulosas, por vezes flamejantes. Tudo volta então a aquietar-se e o que se
escuta transporta-nos para uma dimensão hipnótica, mágica, que nos envolve até
final.
Músicos : Hugo
Costa— saxofone alto; Dirk Serries— guitarra; Friso Van Wijck— percussão
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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