playlist Music

sábado, 19 de outubro de 2024

HUGO COSTA / DIRK SERRIES / FRISO VAN WIJCK - LIVE AT OUDE KLOOSTER KAPEL BRECHT (Subcontinental)

Em “Live At Oude Klooster Kapel Brecht”, Hugo Costa, Dirk Serries e Friso Van Wijck entregam-se à magia insondável da improvisação.

O percurso de Hugo Costa não cessa de surpreender. Há muito radicado em Roterdam, Países Baixos, o saxofonista português tem trabalhado sobretudo nos terrenos da improvisação livre e da música de vanguarda, explorando a abstração melódica e textural com recurso a técnicas estendidas. Os seus predicados têm sido vertidos em projetos diversos, como Albatre, Anticlan, Real Mensch, no duo com o baterista alemão Philipp Ernsting, no trio Land Over Water (com o contrabaixista Raoul van der Weide e o baterista Onno Govaert) e no trio Garuda, este já com dois interessantes registros discográficos, com destaque para o mais recente “Tongues of Flames”, que a jazz.pt resenhou aqui. Hugo Costa surge agora numa gravação ao vivo registrada em setembro de 2023 numa capela belga, acompanhado pelo guitarrista e produtor belga Dirk Serries e o percussionista neerlandês Friso Van Wijck, também editado pela Subcontinental Records, muito provavelmente a única editora independente indiana ligada a domínios musicais mais experimentais. Artista multifacetado, Serries explora há quatro décadas o difuso campo entre a vanguarda, o industrial, o experimental e o ambiental. Lançou os seus primeiros trabalhos sob o pseudônimo vidnaObmana até 2007, altura em que encerrou este projeto, deixando uma extensa discografia. Integra outros projetos como Fear Falls Burning e a sua série Microphonics fizeram-no colaborar com vários músicos importantes como Steven Wilson, Justin K. Broadrick, Cult Of Luna, Steve Roach e Rodrigo Amado. Friso Van Wijck é um compositor, percussionista e baterista com uma trajetória diversificada que incorpora elementos do metal, jazz, contemporânea e improvisação; a sua abordagem é ao mesmo tempo poderosa e precisa. A ideia para esta colaboração como trio partiu do português, que já conhecia bem o trabalho de Serries e Van Wijck e prospectava o que poderia ser uma colaboração interessante.

A primeira vez que tocaram juntos foi em 2021, num evento da Solace Music na bela Noorse Kerk (igreja norueguesa) em Roterdam. A música evoluiu então de forma fluida, com cada diálogo a conduzir a algo novo e interessante, tendo o resultado sido disponibilizado em edição de autor. Passou um ano até que o trio se voltasse a encontrar novamente, desta vez em concerto ao vivo na capela Oude Klooster, em Brecht, Bélgica, onde este álbum foi gravado (na sequência de um convite do guitarrista). Tudo se passou como se esse lapso temporal não tivesse existido: a interação entre o saxofonista, o percussionista e o guitarrista foi igualmente dinâmica e comovente. «Este é um álbum de improvisação livre com uma atmosfera introspetiva, que explora uma vasta paisagem sonora», começa por dizer Hugo Costa à jazz.pt. Palavras secundadas por Dirk Serries, que reforça o sucesso do modus operandi e da química criativa do trio: «este segundo encontro ao vivo é confirmação de que o trio funciona de fato e que tem coisas muito interessantes para contar.» Com uma configuração instrumental especial, o trio conta com Serries a tocar guitarra acústica e Van Wijck a ater-se a um vasto conjunto de instrumentos de percussão, como bombo e gongos, mas também em acessórios como blocos de madeira, azulejos e metais. A acústica da capela também desempenha um papel fundamental. Trata-se de uma antiga capela renovada que é utilizada apenas para eventos culturais e sociais. «A reverberação é perfeita em termos de duração, com um pouco de modulação no final, o que faz com que não nos atinja instantaneamente», explica Serries. «A capela também não é demasiado grande, o que a torna perfeita para dinâmicas detalhadas e flutuantes, tornando a conversa entre nós fácil e não forçada.»

A música revela-se sutil nas dinâmicas, com passagens contrastantes, mais enérgicas e intensas ou mais contemplativas, com o volume contido. Isto não será alheio à natureza imprevisível, e particularmente intrigante, do trio e de quem os três são individualmente enquanto músicos. A empatia pitagórica que se estabelece é também sublinhada pelo guitarrista: «É uma música que requer muita atenção, pois nunca sabemos onde as coisas vão parar ou como a música vai evoluir.» «Acredito que todos nós somos músicos únicos, cada um com o seu próprio estilo e visão, mas de alguma forma, devido à atenção cuidadosa de todos os três uns pelos outros, a química funciona, misturando o abstrato e imprevisível com o lírico», diz o guitarrista belga. Atentos ao que cada um ia propondo e fazendo, os três músicos entregaram-se a jogos de ação e reação – a dois ou a três –, com harmonias e ritmos densos e diferentes, num modo organicamente espontâneo (espontaneamente orgânico também se aplicaria), abrindo novas partes para a evolução dos temas e contribuindo igualitariamente para o cômputo sonoro. Para Hugo Costa, «a música flui naturalmente, com uma narrativa muito melódica, abstrata, feita de pequenas estórias ou miniaturas com diferentes estéticas.» Serries completa: «Uma determinada ação leva a algo novo e interessante e, embora seja por vezes um pouco difícil encontrar essa abertura ou resposta para um ou dois de nós, é a combinação e a diversidade dos nossos estilos que faz com que funcione.»

“Atopia” começa com o sopro primordial de Costa, feito de notas longas, a que logo se vêm juntar a guitarra de Serries, com frases melódicas fragmentadas e harmonias ambíguas, e depois as percussões de Van Wijck. A peça vai-se construindo paulatinamente, sem protagonismos ou hierarquias. Isto apesar de cada um se posicionar, a espaços, no centro do que acontece. Fazendo um uso breve de tongue slap e multifônicos, Costa sopra aqui com uma serenidade que contrasta com outras propostas suas, permitindo que fios melódicos ganhem outra espessura; Serries é um notável construtor de texturas e Friso Van Wijck surpreende com detalhes de filigrana rítmica. Mas este é sobretudo um exercício coletivo, com a atmosfera da peça, geralmente serena e contemplativa, ganhando por vezes intensidade, prenhe de detalhes e subtilezas, a atravessar diferentes geografias e tempos, com o silêncio a desempenhar um papel essencial neste teatro sonoro de luzes e sombras. Em “Olber’s Paradox” (em astrofísica, o paradoxo de Olbers expõe a contradição entre a escuridão do céu e a hipótese de um universo infinito e estático) a conversa é serena entre a guitarra e as percussões até à entrada do saxofone, que se mantém próximo desse registo meditativo, não introduzindo disrupção. Os três músicos reduzem o nível sonoro ao mínimo, com o saxofone de Costa a tomar conta da cena, assumindo um registo de grande espiritualidade, com frases melódicas a alternarem com outras mais angulosas, por vezes flamejantes. Tudo volta então a aquietar-se e o que se escuta transporta-nos para uma dimensão hipnótica, mágica, que nos envolve até final.

Músicos : Hugo Costa— saxofone alto; Dirk Serries— guitarra; Friso Van Wijck— percussão

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

Nenhum comentário: