Do
trompetista Rob Mazurek (Exploding Star Orchestra, Chicago Underground Duo, São
Paulo Underground e Black Cube SP) podemos sempre esperar pelo menos duas
coisas: beleza e mudança. Mesmo em contextos muito radicais, as suas gravações
e concertos têm estruturas claras e poesia.
Em “Milan” o “chicagoan”
usa uma ideia que tem sido aflorada por vários compositores, mas fá-lo de uma
forma diferente: usar o piano não apenas como instrumento musical, mas como um
espaço acústico.
Esta ideia,
como referimos, não é totalmente nova. A compositora Annea Lockwood, por
exemplo, criou nos anos 60 criou a série “Piano Transplants” em que submete o
piano em diversas situações e grava o resultado; em “Piano Burning” (1968), por
exemplo, grava a música de um piano vertical a arder (o pianista de jazz Yōsuke
Yamashita também tocou num piano a arder em 1973). “Piano Drowning” (1972) é o
som produzido pela submersão (o que acontece debaixo de água é um tema a que
voltará consistentemente) e em “Piano Planting” (1969-1970) o piano é
compostado pela natureza.
Frank Zappa,
em “Civilization Phase III” usa a ideia de gravar vocalizações de uma
“civilização” que vive dentro de um piano. A ideia surge em 1967, e é usada em
“Lumpy Gravy”, mas concretiza-se em pleno em 1991.
Em “Milan” o
piano também é um espaço acústico que Mazurek usa para produzir vários sons,
com instrumentos ou outros dispositivos. Desde o trompete até ao próprio piano.
Apesar do disco se ouvir como uma só peça arrojada (foi gravada e transmitida
no programa de rádio italiano “Jazz Anhology” na Radio Popolare de Milão), está
dividido em oito partes, que de fato são oito momentos musicais distintos, cada
um princípio, meio e fim.
A música soa
a um cerimonial luminoso. Na verdade é um solo, mas com tantos instrumentos a
serem tocados ao mesmo tempo soa a um grupo de vários músicos unidos
telepaticamente. As improvisações têm frequentemente um passo lento, como se
tivessem a incoerência melodiosa e bela do canto dos pássaros.
Ouvem-se
percussões (egg shakers), sinos, flauta, voz... a reverberar no piano (com o
pedal permanentemente premido para aumentar a reflexão). Por vezes a música
aproxima-se de alguns compositores que usam o espaço entre as notas como
matéria-prima - ex: Giacinto Scelsi ou Morton Feldman; noutras vezes
sentimo-nos mais pertos do jazz ritualista africano do Art Ensemble of Chicago
ou de Don Cherry com Ed Blackwell.
O disco
começa rarefeito com os sons pontuais espaçados de um tambor (balde de
plástico?). Acaba saturado com a rítmica de uma eletrônica desconjuntada, por
onde entram gravações flautas e vários sons não identificáveis. Entre estes
dois polos está um mundo de sons bem organizados e sempre surpreendentes.
“Milan” é um disco de Mazurek: quer isto dizer que tem música que cruza
fronteiras, incorpora com audácia várias músicas, está aberto e atento aos sons
e entusiasma o ouvinte pela beleza e arrojo. Entre o profundamente pessoal -
quase religioso - e uma música que constrói comunidades de partilha, a música
deste novo disco ouve-se em “repeat”.
Faixas
1. Magic Yellow Bucket (for Marcello Lorrai) 05:20
2.Bar Basso (for Corrado Beldi) 08:13
3. Sbagliato 05:42
4. Collectors of Bones (for Fabio Poletti) 06:31
5. Moss Covered Hips 05:22
Músicos: Rob Mazurek— piano, trompete, percussões, sampler, Magic Yellow Bucket, sinos, shakers, flautas, voz
Fonte: Gonçalo
Falcão
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