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sábado, 30 de novembro de 2024

KiMiKus - MODUS NOVOS (Edição de autor)

Kiko Pereira e Miguel Ângelo são há muito figuras centrais do jazz nacional, sobretudo focados na fervilhante cena do Porto. Depois de múltiplos projetos individuais, decidiriam formar o duo KiMiKus, em que assumem alter egos: Miguel Ângelo – ele próprio licenciado em Informática e Matemática Aplicada – é o Prof. Mikelius e Kiko Pereira o Dr. K. Acabam de lançar o seu álbum de estreia, “Modus Novos”. Neste álbum, começa por explicar Miguel Ângelo à jazz.pt, «convivem harmoniosamente canções, improvisação, experimentação e uma variedade de géneros musicais. Representa mais um passo no meu processo de busca, criação e desenvolvimento pessoal e musical.» Também para Kiko Pereira, «este álbum oferece uma perspectiva diferente da “voz” em comparação com os demais, é uma experiência musical que nos leva para além do comum.» Este projeto surgiu de um desafio que se transformou num encontro e depois numa natural convergência de vontades. «A nossa ligação remonta ao século passado, com uma história de encontros e desencontros ao longo do tempo. Este é o nosso primeiro projeto junto, algo que parece incrível, considerando a nossa amizade de longa data», conta o contrabaixista. O cantor também faz um balanço de um trajeto com muitos pontos de contato: «Apesar de sermos amigos há muitos anos, este é o nosso primeiro projeto conjunto, o que parece um tanto contraditório, dado que partilhamos um percurso paralelo no mundo da arte, nos estudos e nas nossas carreiras.» O destino quis que se encontrassem no espaço Maus Hábitos, no Porto, onde a «KiMiKa entre nós se iniciou e as faíscas criativas nunca mais cessaram».

Há muito que conhecemos a abordagem de Miguel Ângelo. Notável improvisador, o seu contrabaixo é complexo e profundo, mas ao mesmo tempo dotado de capacidades que vão muito além de mero suporte rítmico, vertidas em álbuns do seu quarteto, como “Branco” (2013), “A Vida de X” (2016) e “A Dança dos Desastrados” (2021), do trio MAU (“Utopia”, de 2019) ou a solo no excelente “I think I´m going to eat dessert” editado pela Creative Sources em 2017. Nascido nos Estados Unidos, em Newark, Nova Jérsia, Kiko Pereira é dos mais reconhecidos cantores do panorama nacional do jazz e blues. O seu primeiro disco, “Raw”, data do já longínquo ano de 2003. Em 2012, lançou “L’USA” com o projeto Kiko & the Jazz Refugees. Com os Kite, formados em 2016, editou o álbum “Hamsa”, e em 2020 o seu disco mais recente, “Threadbare”. À voz, de largo espectro, junta um exímio domínio do palco. “Modus Novos” é uma proposta diferente, mas com bastantes pontos de contato com o trabalho prévio de ambos. Todos os sons são apenas de voz e contrabaixo, por vezes processados e ou manipulados.  Miguel Ângelo aborda o processo criativo empreendido em “Modus Novos”, também ele singular, porque «foi sendo construído, guiado pelas músicas.» «Algumas ideias eram minhas e que andava a amadurecer e o Kiko trouxe algumas soluções melódicas que as complementavam.» Para Kiko, «foram importantes os contributos do concerto improvisado no Maus Hábitos de onde retiramos muitas ideias e até letras que forma surgindo naturalmente. Não houve um processo de composição formal.» Tentaram manter esse formato nos concertos, onde existe uma linha orientadora, mas que por vezes é subvertida, modificada ou mesmo abolida. Para a música que agora propõem convergem influências diversas, de elementos clássicos do jazz, a texturas contemporâneas, indie experimental, pop e spoken word. «Não impusemos qualquer tipo de restrições; aliás, essa é uma das linhas mestras do nosso trabalho – sem complexos, sem barreiras ou restrições estéticas», diz Miguel Ângelo. Para o cantor, «o álbum é uma expressão do que fomos acumulando ao longo das nossas vidas, como ouvintes, intérpretes e exploradores musicais.» «Abandonar esse conhecimento adquirido seria rendermo-nos à banalidade, e isso é algo que queremos evitar a todo custo», acrescenta. Apesar desta diversidade estética e temática, existe um conceito aglutinador, um «fio condutor», que para Miguel Ângelo surge naturalmente, como resultado da «sinceridade e comprometimento» colocadas no processo. «Esse caminho estava lá, invisível inicialmente, mas foi revelado a cada passo. Primeiro veio o encontro, depois a música, em seguida a identidade que é KiMiKus, depois a imagem, a narrativa e finalmente a ilustração que materializa essa jornada», reforça Kiko. A música que apresentam é ilustrada com uma mini história em forma de banda desenhada, criada com as fotos de Anabela Trindade e os desenhos de Yasmin Machado sobre textos de Kiko Pereira.

“Para Nóias” traz uma atmosfera planante sobre base eletrônica, contrabaixo fluido, num arranjo onde a complexidade surge disfarçada de simplicidade com um refrão pop, mas com uma intenção transformadora que é revelada no final: «Cada dia é um a menos». Piscar de olhos a Frank Zappa e ao seu Central Scrutinizer, o blues assertivo de “Jazz Police”, com a sua potente linha de contrabaixo, é quase um tema de intervenção social e musical, muito a propósito dos 50 anos de Abril, abordando a necessidade de controle e de padronização, que serve tanto para o jazz como para tudo o resto (conhecemos alguns membros da força): «Hey I got the Jazz police on my back / They’ll never catch me that’s a fact / I’ll never change my act / ‘cause I don’t fit the mold.» Uma versão surpreendente de “Telepatia” (música de Nuno Rodrigues e letra de Ana Zanatti) transporta a canção popularizada por Lara Li no início dos anos oitenta para um outro plano. “Lazy (Not Your Song)”, um dos pináculos do álbum, é um blues em crescendo, introduzido por um motivo proposto pelo corpulento cordofone (que Kiko logo associou a um tema de Eric Mingus), a que se junta a voz sempre expressiva, num diálogo em evolução permanente que aborda a forma como algumas pessoas classificam outras ou justificam a falta de “sucesso” com base na falta de ambição, empenho e trabalho, o que nem sempre é verdade. Os contornos mais exploratórios de “Jazz is Dying (Slowly)", com texto de Kiko, cáustico e atento à realidade («Let it scream and holler and have a voice again! Make Jazz Great Again! / Make Jazz Good Again, / Make Jazz Jazz Again. / Jazz is dying slowly, do you feel alive? »). Ângelo recorre pontualmente ao arco, deambulando como que a ilustrar o texto, mas também como metáfora de uma busca de si próprio. A serenidade aconchegante de “Arinto” (repescado ao álbum “Utopia” do trio MAU), mostra Kiko próximo de um Kurt Elling e é o único tema sem letra, com bela a melodia a atapetar com graça o movimento do tema sem necessidade de outro elemento narrativo. Da babel sonora, com vozes e outros sons inquietantes, emerge uma lindíssima “Lullaby” (introduzida por sons de piano de iPhone), tema do álbum a solo de Miguel Ângelo, que reclamava palavras, e que aqui surge transformada num diálogo umbilical entre voz e contrabaixo. A espaços deveras surpreendente, “Modus Novos” é um álbum que acrescenta pontos significativos ao pecúlio já rico de Miguel Ângelo e Kiko Pereira.

Faixas

1.Para Nóias 04:44

2.Jazz Police 04:40

3.Telepatia 06:42

4.Lazy/Not your song 05:41

5.Jazz is dying (slowly) 06:27

6.Arinto 05:16

7.Lullaby 03:41

 Músicos: Miguel Ângelo— contrabaixo, loops e efeitos; Kiko Pereira— voz e efeitos

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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