Kiko Pereira e Miguel Ângelo são há
muito figuras centrais do jazz nacional, sobretudo focados na fervilhante cena
do Porto. Depois de múltiplos projetos individuais, decidiriam formar o duo
KiMiKus, em que assumem alter egos: Miguel Ângelo – ele próprio licenciado em
Informática e Matemática Aplicada – é o Prof. Mikelius e Kiko Pereira o Dr. K.
Acabam de lançar o seu álbum de estreia, “Modus Novos”. Neste álbum, começa por
explicar Miguel Ângelo à jazz.pt, «convivem harmoniosamente canções,
improvisação, experimentação e uma variedade de géneros musicais. Representa
mais um passo no meu processo de busca, criação e desenvolvimento pessoal e
musical.» Também para Kiko Pereira, «este álbum oferece uma perspectiva
diferente da “voz” em comparação com os demais, é uma experiência musical que
nos leva para além do comum.» Este projeto surgiu de um desafio que se
transformou num encontro e depois numa natural convergência de vontades. «A
nossa ligação remonta ao século passado, com uma história de encontros e
desencontros ao longo do tempo. Este é o nosso primeiro projeto junto, algo que
parece incrível, considerando a nossa amizade de longa data», conta o
contrabaixista. O cantor também faz um balanço de um trajeto com muitos pontos
de contato: «Apesar de sermos amigos há muitos anos, este é o nosso primeiro
projeto conjunto, o que parece um tanto contraditório, dado que partilhamos um
percurso paralelo no mundo da arte, nos estudos e nas nossas carreiras.» O
destino quis que se encontrassem no espaço Maus Hábitos, no Porto, onde a
«KiMiKa entre nós se iniciou e as faíscas criativas nunca mais cessaram».
Há muito que conhecemos a abordagem
de Miguel Ângelo. Notável improvisador, o seu contrabaixo é complexo e
profundo, mas ao mesmo tempo dotado de capacidades que vão muito além de mero
suporte rítmico, vertidas em álbuns do seu quarteto, como “Branco” (2013), “A
Vida de X” (2016) e “A Dança dos Desastrados” (2021), do trio MAU (“Utopia”, de
2019) ou a solo no excelente “I think I´m going to eat dessert” editado pela
Creative Sources em 2017. Nascido nos Estados Unidos, em Newark, Nova Jérsia,
Kiko Pereira é dos mais reconhecidos cantores do panorama nacional do jazz e
blues. O seu primeiro disco, “Raw”, data do já longínquo ano de 2003. Em 2012,
lançou “L’USA” com o projeto Kiko & the Jazz Refugees. Com os Kite,
formados em 2016, editou o álbum “Hamsa”, e em 2020 o seu disco mais recente,
“Threadbare”. À voz, de largo espectro, junta um exímio domínio do palco.
“Modus Novos” é uma proposta diferente, mas com bastantes pontos de contato com
o trabalho prévio de ambos. Todos os sons são apenas de voz e contrabaixo, por
vezes processados e ou manipulados.
Miguel Ângelo aborda o processo criativo empreendido em “Modus Novos”,
também ele singular, porque «foi sendo construído, guiado pelas músicas.»
«Algumas ideias eram minhas e que andava a amadurecer e o Kiko trouxe algumas
soluções melódicas que as complementavam.» Para Kiko, «foram importantes os
contributos do concerto improvisado no Maus Hábitos de onde retiramos muitas
ideias e até letras que forma surgindo naturalmente. Não houve um processo de
composição formal.» Tentaram manter esse formato nos concertos, onde existe uma
linha orientadora, mas que por vezes é subvertida, modificada ou mesmo abolida.
Para a música que agora propõem convergem influências diversas, de elementos
clássicos do jazz, a texturas contemporâneas, indie experimental, pop e spoken
word. «Não impusemos qualquer tipo de restrições; aliás, essa é uma das
linhas mestras do nosso trabalho – sem complexos, sem barreiras ou restrições
estéticas», diz Miguel Ângelo. Para o cantor, «o álbum é uma expressão do que
fomos acumulando ao longo das nossas vidas, como ouvintes, intérpretes e
exploradores musicais.» «Abandonar esse conhecimento adquirido seria
rendermo-nos à banalidade, e isso é algo que queremos evitar a todo custo»,
acrescenta. Apesar desta diversidade estética e temática, existe um conceito
aglutinador, um «fio condutor», que para Miguel Ângelo surge naturalmente, como
resultado da «sinceridade e comprometimento» colocadas no processo. «Esse
caminho estava lá, invisível inicialmente, mas foi revelado a cada passo.
Primeiro veio o encontro, depois a música, em seguida a identidade que é
KiMiKus, depois a imagem, a narrativa e finalmente a ilustração que materializa
essa jornada», reforça Kiko. A música que apresentam é ilustrada com uma mini
história em forma de banda desenhada, criada com as fotos de Anabela Trindade e
os desenhos de Yasmin Machado sobre textos de Kiko Pereira.
“Para Nóias” traz uma atmosfera
planante sobre base eletrônica, contrabaixo fluido, num arranjo onde a
complexidade surge disfarçada de simplicidade com um refrão pop, mas com uma
intenção transformadora que é revelada no final: «Cada dia é um a menos».
Piscar de olhos a Frank Zappa e ao seu Central Scrutinizer, o blues assertivo
de “Jazz Police”, com a sua potente linha de contrabaixo, é quase um tema de
intervenção social e musical, muito a propósito dos 50 anos de Abril, abordando
a necessidade de controle e de padronização, que serve tanto para o jazz como
para tudo o resto (conhecemos alguns membros da força): «Hey I got the Jazz
police on my back / They’ll never catch me that’s a fact / I’ll never change my
act / ‘cause I don’t fit the mold.» Uma versão surpreendente de “Telepatia”
(música de Nuno Rodrigues e letra de Ana Zanatti) transporta a canção
popularizada por Lara Li no início dos anos oitenta para um outro plano. “Lazy
(Not Your Song)”, um dos pináculos do álbum, é um blues em crescendo,
introduzido por um motivo proposto pelo corpulento cordofone (que Kiko logo
associou a um tema de Eric Mingus), a que se junta a voz sempre expressiva, num
diálogo em evolução permanente que aborda a forma como algumas pessoas
classificam outras ou justificam a falta de “sucesso” com base na falta de
ambição, empenho e trabalho, o que nem sempre é verdade. Os contornos mais
exploratórios de “Jazz is Dying (Slowly)", com texto de Kiko, cáustico e
atento à realidade («Let it scream and holler and have a voice again! Make Jazz Great Again! /
Make Jazz Good Again, / Make Jazz Jazz Again. / Jazz is dying slowly, do you
feel alive? »). Ângelo recorre pontualmente ao
arco, deambulando como que a ilustrar o texto, mas também como metáfora de uma
busca de si próprio. A serenidade aconchegante de “Arinto” (repescado ao álbum
“Utopia” do trio MAU), mostra Kiko próximo de um Kurt Elling e é o único tema
sem letra, com bela a melodia a atapetar com graça o movimento do tema sem
necessidade de outro elemento narrativo. Da babel sonora, com vozes e outros
sons inquietantes, emerge uma lindíssima “Lullaby” (introduzida por sons de
piano de iPhone), tema do álbum a solo de Miguel Ângelo, que reclamava palavras,
e que aqui surge transformada num diálogo umbilical entre voz e contrabaixo. A
espaços deveras surpreendente, “Modus Novos” é um álbum que acrescenta pontos
significativos ao pecúlio já rico de Miguel Ângelo e Kiko Pereira.
Faixas
1.Para Nóias 04:44
2.Jazz Police 04:40
3.Telepatia 06:42
4.Lazy/Not
your song 05:41
5.Jazz
is dying (slowly) 06:27
6.Arinto 05:16
7.Lullaby 03:41
Músicos: Miguel Ângelo— contrabaixo, loops e efeitos; Kiko Pereira— voz e efeitos
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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