O panorama
das orquestras de jazz em Portugal encontra-se cada vez mais solidificado, com
projetos que se vão afirmando de forma estruturada, de norte a sul e ilhas.
Destaca-se a excelência da Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), mas há vários
outros casos que se têm afirmando com consistência, como as orquestras de
Leiria, Hot Clube, Angrajazz, Funchal, Gerajazz e Espinho. Temos agora que ter em
conta mais uma, a Orquestra de Jazz de Setúbal (OJS). Nascida em 2021, a
orquestra setubalense conta com direção artística e executiva de Luís Cunha e
Sérgio Gabriel e desde logo reuniu um conjunto de músicos de diferentes
gerações, entre jovens talentos e nomes já consagrados.
A edição do
seu disco de estreia, “Em cada esquina um amigo”, foi concretizada com uma ação
de angariação/crowdfunding, uma ação solidária que envolveu a comunidade
– e foi bem-sucedida. Neste seu registo de estreia, a OJS homenageia a música
de José Afonso (que teve uma forte ligação à cidade do Sado, tendo vivido lá uma
parte da sua vida), através da recriação jazzística de uma seleção dos seus
temas, trabalhados com arranjos originais. A orquestra aproveita a ocasião
também para se associar à comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, uma vez que a
música de José Afonso não foi apenas banda-sonora da revolução, é indissociável
da mesma.
Para a
gravação do disco, a orquestra convidou Carlos Azevedo que, além de pianista e
compositor (editou em 2022 o excelente “Serpente”), trouxe consigo a
experiência de duas décadas de ligação à OJM. Nas madeiras, juntaram-se
Bernardo Tinoco, Tomás Boto, André Barbosa, Álvaro Pinto e Paulo Gaspar; nos
trompetes, Ivo Rodrigues, Luís Cunha, Tomás Pimentel, Jorge Correia e Ruben
Serrão; nos trombones, Ricardo Sousa, João Correia, Sérgio Gabriel e Mário
Vicente. Juntaram-se João Espadinha (guitarra), Samuel Gapp (piano), Ricardo
Marques (contrabaixo) e João Sousa (bateria). E a formação ficou completa com o
acrescento de duas vozes: Marta Rodrigues e Mariana Dionísio. Ou seja,
encontramos aqui muitos nomes que conhecemos associados a diversos projetos de
música criativa.
A seleção das
composições acaba por surpreender, ao juntar temas fundamentais/óbvios (“Que Amor
Não Me Engana”, “Era um Redondo Vocábulo”, “A Morte Saiu à Rua”, “Maio Maduro
Maio” e a inevitável “Grândola, Vila Morena”), com outros menos evidentes (“De
Não Saber o Que Me Espera”, “Tenho Um Primo Convexo”, “A Acupuntura em Odemira”
e “Benditos”); o conjunto acaba por revelar-se equilibrado. Os arranjos foram
trabalhados por elementos da orquestra (André Barbosa, Samuel Gapp, Luís Cunha,
Tomás Pimentel, João Espadinha e Mariana Dionísio) e dois músicos externos ao
grupo – Johannes Krieger e Pedro Branco.
O disco abre
com a canção “Que Amor Não Me Engana”. Após um breve arranque com sopros lentos
e dramáticos, entram as vozes lentamente, até que a orquestra exibe a sua
pujança, pelas intervenções dos naipes de sopros, crescendo – interpretação
concisa, um dos temas mais breves do disco. Para “Era um Redondo...”, após um
arranque em procura, de voz e sopros alinhados, o piano assume a forma e entra
a voz a cantar a letra da canção, apoiada pela força do grupo; numa exploração
mais longa, com mais contrastes, e inclui um momento em registo de spoken
word. Em “Maio Maduro Maio” ouvimos uma exploração instrumental que se
serve bem do contraste entre trompete e clarinete, seguindo-se boas
intervenções.
Naturalmente,
sobrava muita expectativa para perceber qual seria a abordagem ao hino
“Grândola, Vila Morena”, inescapável – um tema que já foi alvo de revisões
muito distintas (Charlie Haden e Carla Bley, Zé Eduardo Unit, Mário Laginha e
Bernardo Sassetti, só para referirmos as mais notáveis). Em vez dos sapatos a
raspar na gravilha, o ritmo é marcado pela respiração: ouvimos apenas
inspiração e expiração, entra uma voz masculina que canta os primeiros quatro
versos, junta-se uma segunda voz masculina, e depois vão-se juntando várias
outras, numa amálgama coletiva, vozes que vão fazendo sublinhados e acentuações
em diferentes registos, numa massa sonora grandiosa. Com menos solenidade,
neste arranjo de Mariana Dionísio sobressai a liberdade.
Globalmente,
os arranjos são reverentes às composições originais, mas estes são trabalhados
de forma criativa para dar espaço à exploração e combinação de timbres e
contrastes. Daqui resultam músicas que, criadas a partir dos originais de Zeca,
assumem novas formas, mais complexas e elaboradas, com outras cores. Individualmente,
destacam-se desde logo as duas vozes – Marta Rodrigues e Mariana Dionísio – que
trabalham intervenções irrepreensíveis. Instrumentalmente, ouvem-se solos
interessantes, mas a força do grupo sente-se sobretudo no envolvimento
coletivo.
Nas notas do
disco, podemos ler: «Dedicamos este álbum a todos aqueles que, em todo o mundo,
continuam a usar as palavras e a música como armas na luta pela liberdade e
pela democracia.» No passado dia 25 de abril, uma multidão enorme mostrou estar
unida contra a sombra do fascismo que nos assombra. Neste tempo em que somos
lembrados que o racismo, o fascismo, a homofobia e o conservadorismo retrógrado
têm cada vez menos vergonha de sair da toca, é importante lembrar que os
músicos podem usar a sua voz pública para a intervenção social e política. Este
disco homenageia a obra de José Afonso, transformando-a, dando-lhe novas cores.
E recorda-nos que tudo na vida é política, incluindo a música.
Faixas
1.Que Amor Não Me Engana 03:19
2.Era Um Redondo Vocábulo 06:40
3.A Morte Saiu à Rua 07:50
4.De Não Saber o Que Me Espera 05:05
5.Tenho Um Primo Convexo 07:41
6.A Acupuntura em Odemira 05:30
7.Benditos 09:20
8.Maio Maduro Maio 05:18
9.Grândola, Vila Morena 03:07
Orquestra de Jazz de Setúbal : Carlos Azevedo— direção; Bernardo Tinoco— saxofones; Tomás Boto— saxofones; André Barbosa— saxofones; Álvaro Pinto— saxofones; Paulo Gaspar— clarinete; Ivo Rodrigues— trompete; Luís Cunha— trompete; Tomás Pimentel— trompete; Jorge Correia— trompete; Ruben Serrão— trompete; Ricardo Sousa— trombone; João Correia— trombone; Mário Vicente— trombone; João Espadinha— guitarra; Samuel Gapp— piano; Ricardo Marques— contrabaixo; João Sousa— bateria; Marta Rodrigues— voz; Mariana Dionísio— voz
Fonte: Nuno
Catarino (jazz.pt)
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