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sábado, 9 de novembro de 2024

ORQUESTRA DE JAZZ DE SETÚBAL - EM CADA ESQUINA UM AMIGO (Edição de autor)

O panorama das orquestras de jazz em Portugal encontra-se cada vez mais solidificado, com projetos que se vão afirmando de forma estruturada, de norte a sul e ilhas. Destaca-se a excelência da Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), mas há vários outros casos que se têm afirmando com consistência, como as orquestras de Leiria, Hot Clube, Angrajazz, Funchal, Gerajazz e Espinho. Temos agora que ter em conta mais uma, a Orquestra de Jazz de Setúbal (OJS). Nascida em 2021, a orquestra setubalense conta com direção artística e executiva de Luís Cunha e Sérgio Gabriel e desde logo reuniu um conjunto de músicos de diferentes gerações, entre jovens talentos e nomes já consagrados.

A edição do seu disco de estreia, “Em cada esquina um amigo”, foi concretizada com uma ação de angariação/crowdfunding, uma ação solidária que envolveu a comunidade – e foi bem-sucedida. Neste seu registo de estreia, a OJS homenageia a música de José Afonso (que teve uma forte ligação à cidade do Sado, tendo vivido lá uma parte da sua vida), através da recriação jazzística de uma seleção dos seus temas, trabalhados com arranjos originais. A orquestra aproveita a ocasião também para se associar à comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, uma vez que a música de José Afonso não foi apenas banda-sonora da revolução, é indissociável da mesma.

Para a gravação do disco, a orquestra convidou Carlos Azevedo que, além de pianista e compositor (editou em 2022 o excelente “Serpente”), trouxe consigo a experiência de duas décadas de ligação à OJM. Nas madeiras, juntaram-se Bernardo Tinoco, Tomás Boto, André Barbosa, Álvaro Pinto e Paulo Gaspar; nos trompetes, Ivo Rodrigues, Luís Cunha, Tomás Pimentel, Jorge Correia e Ruben Serrão; nos trombones, Ricardo Sousa, João Correia, Sérgio Gabriel e Mário Vicente. Juntaram-se João Espadinha (guitarra), Samuel Gapp (piano), Ricardo Marques (contrabaixo) e João Sousa (bateria). E a formação ficou completa com o acrescento de duas vozes: Marta Rodrigues e Mariana Dionísio. Ou seja, encontramos aqui muitos nomes que conhecemos associados a diversos projetos de música criativa.

A seleção das composições acaba por surpreender, ao juntar temas fundamentais/óbvios (“Que Amor Não Me Engana”, “Era um Redondo Vocábulo”, “A Morte Saiu à Rua”, “Maio Maduro Maio” e a inevitável “Grândola, Vila Morena”), com outros menos evidentes (“De Não Saber o Que Me Espera”, “Tenho Um Primo Convexo”, “A Acupuntura em Odemira” e “Benditos”); o conjunto acaba por revelar-se equilibrado. Os arranjos foram trabalhados por elementos da orquestra (André Barbosa, Samuel Gapp, Luís Cunha, Tomás Pimentel, João Espadinha e Mariana Dionísio) e dois músicos externos ao grupo – Johannes Krieger e Pedro Branco.

O disco abre com a canção “Que Amor Não Me Engana”. Após um breve arranque com sopros lentos e dramáticos, entram as vozes lentamente, até que a orquestra exibe a sua pujança, pelas intervenções dos naipes de sopros, crescendo – interpretação concisa, um dos temas mais breves do disco. Para “Era um Redondo...”, após um arranque em procura, de voz e sopros alinhados, o piano assume a forma e entra a voz a cantar a letra da canção, apoiada pela força do grupo; numa exploração mais longa, com mais contrastes, e inclui um momento em registo de spoken word. Em “Maio Maduro Maio” ouvimos uma exploração instrumental que se serve bem do contraste entre trompete e clarinete, seguindo-se boas intervenções.

Naturalmente, sobrava muita expectativa para perceber qual seria a abordagem ao hino “Grândola, Vila Morena”, inescapável – um tema que já foi alvo de revisões muito distintas (Charlie Haden e Carla Bley, Zé Eduardo Unit, Mário Laginha e Bernardo Sassetti, só para referirmos as mais notáveis). Em vez dos sapatos a raspar na gravilha, o ritmo é marcado pela respiração: ouvimos apenas inspiração e expiração, entra uma voz masculina que canta os primeiros quatro versos, junta-se uma segunda voz masculina, e depois vão-se juntando várias outras, numa amálgama coletiva, vozes que vão fazendo sublinhados e acentuações em diferentes registos, numa massa sonora grandiosa. Com menos solenidade, neste arranjo de Mariana Dionísio sobressai a liberdade.

Globalmente, os arranjos são reverentes às composições originais, mas estes são trabalhados de forma criativa para dar espaço à exploração e combinação de timbres e contrastes. Daqui resultam músicas que, criadas a partir dos originais de Zeca, assumem novas formas, mais complexas e elaboradas, com outras cores. Individualmente, destacam-se desde logo as duas vozes – Marta Rodrigues e Mariana Dionísio – que trabalham intervenções irrepreensíveis. Instrumentalmente, ouvem-se solos interessantes, mas a força do grupo sente-se sobretudo no envolvimento coletivo.

Nas notas do disco, podemos ler: «Dedicamos este álbum a todos aqueles que, em todo o mundo, continuam a usar as palavras e a música como armas na luta pela liberdade e pela democracia.» No passado dia 25 de abril, uma multidão enorme mostrou estar unida contra a sombra do fascismo que nos assombra. Neste tempo em que somos lembrados que o racismo, o fascismo, a homofobia e o conservadorismo retrógrado têm cada vez menos vergonha de sair da toca, é importante lembrar que os músicos podem usar a sua voz pública para a intervenção social e política. Este disco homenageia a obra de José Afonso, transformando-a, dando-lhe novas cores. E recorda-nos que tudo na vida é política, incluindo a música.

Faixas

1.Que Amor Não Me Engana 03:19

2.Era Um Redondo Vocábulo 06:40

3.A Morte Saiu à Rua 07:50

4.De Não Saber o Que Me Espera 05:05

5.Tenho Um Primo Convexo 07:41

6.A Acupuntura em Odemira 05:30

7.Benditos 09:20

8.Maio Maduro Maio 05:18

9.Grândola, Vila Morena 03:07

Orquestra de Jazz de Setúbal : Carlos Azevedo— direção; Bernardo Tinoco— saxofones; Tomás Boto— saxofones; André Barbosa— saxofones; Álvaro Pinto— saxofones; Paulo Gaspar— clarinete; Ivo Rodrigues— trompete; Luís Cunha— trompete; Tomás Pimentel— trompete; Jorge Correia— trompete; Ruben Serrão— trompete; Ricardo Sousa— trombone; João Correia— trombone; Mário Vicente— trombone; João Espadinha— guitarra; Samuel Gapp— piano; Ricardo Marques— contrabaixo; João Sousa— bateria; Marta Rodrigues— voz; Mariana Dionísio— voz

Fonte: Nuno Catarino (jazz.pt)

 

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