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sábado, 28 de dezembro de 2024

DEMIAN CABAUD - ÁRBOL ADENTRO (Carimbo Porta-Jazz)

Quando tomou a decisão de vir para Portugal, no já longínquo ano de 2003, um amigo argentino ofereceu a Demian Cabaud (nascido em 1977) uma antologia de Octavio Paz com uma dedicatória especial: «Pensa em mim com poesia no velho mundo.» O poema “Árbol Adentro”, escrito pelo mexicano em 1987, ressoa dentro de si até hoje: «Faço a analogia da árvore a crescer para dentro como se fosse uma ideia ou um sentimento a crescer em mim», explicou o contrabaixista argentino em entrevista recente a Nuno Catarino da jazz.pt «Poderia ser também o florescimento dos temas, da banda e até o sentimento da cultura portuguesa que foi crescendo em mim, devagarinho, até florescer.» («Uma árvore cresceu na minha testa / Cresceu para dentro. / As suas raízes são veias, os seus ramos nervos, / a sua folhagem confusa pensamentos. Os teus olhares iluminam-na e os seus frutos de sombras / são laranjas de sangue, / são romãs de fogo.») Mais de duas décadas volvidas, há muito que se afirmou como nome fundamental do jazz feito no retângulo. No seu novo álbum, precisamente intitulado “Árbol Adentro”, mais uma vez com edição do Carimbo Porta-Jazz – braço editorial da Associação portuense –, lidera um quinteto de luxo, com os saxofonistas João Pedro Brandão e José Pedro Coelho, o pianista João Grilo e o baterista Marcos Cavaleiro. Para além de um notável percurso discográfico em nome próprio, Cabaud é também um músico muito ativo na condição de acompanhante, colaborando com inúmeros projetos e formações, tendo integrado as fileiras da incontornável Orquestra Jazz de Matosinhos.

A juntar a uma musicalidade ímpar, o que avulta em “Árbol Adentro” é a vertente composicional, algo que tem estado sempre presente – para se poder expressar como um todo –, mas que aqui se eleva a um outro patamar. «Nos últimos 18 anos tive a oportunidade de liderar e editar com pequenas formações, nove álbuns de música original que expressam as minhas raízes, vivências e a cumplicidade que criei com músicos deste país», lê-se em notas de apresentação do álbum. Tudo aconteceu desta vez de forma diferente. «Deixei que a música amadurecesse em mim e na banda, ensaiamos e experimentamos ao longo de vários meses», disse Cabaud na mesma entrevista. «Tinha música a mais e escolhemos juntos os temas que combinavam melhor. Não costumo ensaiar muito antes de gravar, talvez por motivos da minha agenda e do pessoal, ou pela frescura da música, mas senti a diferença óbvia em rodar mais os temas neste disco.» Sendo a primeira vez que repete uma banda, o que sente neste contexto é algo especial, confessa Cabaud. Cada elemento tem uma voz musical própria e uma visão madura que confere novas camadas de riqueza à música do argentino. Com o seu nome, este grupo existe há quatro ou cinco anos (quando gravaram o disco anterior, “Otro Cielo”, editado em 2021), mas fazem música juntos há mais de 15 anos, no âmbito da big band matosinhense e não só.

Destes elos de cumplicidade resulta um entendimento no domínio do telepático, ancorado numa percepção instintiva, mas também na confiança e admiração mútuas. «Senti que queria aprofundar nesse sentimento. Gosto muito do fato de todos terem uma personalidade musical vincada porque as minhas composições vivem muito da identidade e expressão individual no coletivo. Há muita flexibilidade para explorar caminhos em grupo», diz Cabaud. Este é um projeto ambicioso no plano artístico, que interpela os músicos a saírem das respetivas bolhas de conforto e a estabelecerem relações criativas com outros domínios músicos, como o folclore da Argentina e a música de câmara. Os cruzamentos entre estes universos, aparentemente tão distintos, ganham aqui uma coerência e uma fluidez assinaláveis. Se no disco anterior já haviam abordado vários ritmos tradicionais argentinos com uma visão mais aberta, desta feita Cabaud mostrou alguns exemplos e, sobretudo com Marcos Cavaleiro e João Grilo, foram falando acerca de como poderiam explorá-los. «O Marcos já toca estes ritmos há muito tempo, é-lhe muito natural. Neste disco tentei diluir mais o folclore argentino», sublinha o contrabaixista.

A escrita cuidada e elegante de Cabaud, que há muito lhe reconhecemos, dá um salto notável em “Árbol Adentro”. O dinamismo de “GM” - peça dedicada ao trompetista Gonçalo Marques -, peça de recorte audaz, marca pontos com solos de saxofone soprano e tenor. “A Insustentável Leveza”, com um perfume de tango/milonga, convida à introspeção, com Cabaud a aportar solenidade com o uso magistral do arco; a bateria tem detalhes de filigrana e o saxofonista tenor sola com propósito. Paulatinamente, a peça deixa entrar luz. Com a sua linha estável de contrabaixo, “Palo Santo” exala uma melodia que se vai desvelando, cheia de recantos; o diálogo entre os saxofones adquire centralidade na construção sonora e torna-se progressivamente mais intenso, suportados pelo piano e pela dupla rítmica que ferve em lume brando, até à reexposição final do tema, em uníssono pungente. “Pampero” traz uma bela melodia desenhada pelo saxofone tenor e acompanhada, de início, apenas pelo contrabaixo; a entrada de um piano anguloso carreia a peça para outros domínios, onde a turbulência dá lugar à serenidade. Muito interessante é “Pomeriggio”, longamente introduzida pelo piano de João Grilo, juntam-se-lhes percussões, sopros vários, construindo um retrato sonoro da paisagem estática da Toscana. “Tomi” – homenagem encomendada pelo filho de Cabaud, Tomás – assume uma veia mais relaxada e pastoral, de traços sóbrios, em que à simplicidade harmônica se junta uma melodia libertadora. “Vento Frio na Cara” tem arranjo vívido, com os vários instrumentos a cruzarem as suas linhas, numa estrutura organizada em torno de um belo motivo, mas que admite outros graus de liberdade.

“Árbol Adentro” é um notabilíssimo álbum que, reclamando vagar, nos recompensa enormemente.

Faixas

1.Tomi 06:13

2.GM 05:25

3.Palo santo 09:19

4.A insustentável leveza 06:10

5.Pomeriggio 05:44

6.Pampero 07:43

7.Vento frio na cara 04:41

Músicos: Demian Cabaud— contrabaixo; João Pedro Brandão— saxofones alto e soprano; José Pedro Coelho— saxofone tenor; João Grilo— piano; Marcos Cavaleiro— bateria.

Fonte: António Branco (jazz.pt)

 

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