Quando tomou
a decisão de vir para Portugal, no já longínquo ano de 2003, um amigo argentino
ofereceu a Demian Cabaud (nascido em 1977) uma antologia de Octavio Paz com uma
dedicatória especial: «Pensa em mim com poesia no velho mundo.» O poema “Árbol
Adentro”, escrito pelo mexicano em 1987, ressoa dentro de si até hoje: «Faço a
analogia da árvore a crescer para dentro como se fosse uma ideia ou um
sentimento a crescer em mim», explicou o contrabaixista argentino em entrevista
recente a Nuno Catarino da jazz.pt «Poderia ser também o florescimento dos
temas, da banda e até o sentimento da cultura portuguesa que foi crescendo em
mim, devagarinho, até florescer.» («Uma árvore cresceu na minha testa / Cresceu
para dentro. / As suas raízes são veias, os seus ramos nervos, / a sua folhagem
confusa pensamentos. Os teus olhares iluminam-na e os seus frutos de sombras /
são laranjas de sangue, / são romãs de fogo.») Mais de duas décadas volvidas,
há muito que se afirmou como nome fundamental do jazz feito no retângulo. No
seu novo álbum, precisamente intitulado “Árbol Adentro”, mais uma vez com
edição do Carimbo Porta-Jazz – braço editorial da Associação portuense –, lidera
um quinteto de luxo, com os saxofonistas João Pedro Brandão e José Pedro
Coelho, o pianista João Grilo e o baterista Marcos Cavaleiro. Para além de um
notável percurso discográfico em nome próprio, Cabaud é também um músico muito
ativo na condição de acompanhante, colaborando com inúmeros projetos e
formações, tendo integrado as fileiras da incontornável Orquestra Jazz de
Matosinhos.
A juntar a
uma musicalidade ímpar, o que avulta em “Árbol Adentro” é a vertente
composicional, algo que tem estado sempre presente – para se poder expressar
como um todo –, mas que aqui se eleva a um outro patamar. «Nos últimos 18 anos
tive a oportunidade de liderar e editar com pequenas formações, nove álbuns de
música original que expressam as minhas raízes, vivências e a cumplicidade que
criei com músicos deste país», lê-se em notas de apresentação do álbum. Tudo
aconteceu desta vez de forma diferente. «Deixei que a música amadurecesse em
mim e na banda, ensaiamos e experimentamos ao longo de vários meses», disse
Cabaud na mesma entrevista. «Tinha música a mais e escolhemos juntos os temas
que combinavam melhor. Não costumo ensaiar muito antes de gravar, talvez por
motivos da minha agenda e do pessoal, ou pela frescura da música, mas senti a
diferença óbvia em rodar mais os temas neste disco.» Sendo a primeira vez que
repete uma banda, o que sente neste contexto é algo especial, confessa Cabaud.
Cada elemento tem uma voz musical própria e uma visão madura que confere novas
camadas de riqueza à música do argentino. Com o seu nome, este grupo existe há
quatro ou cinco anos (quando gravaram o disco anterior, “Otro Cielo”, editado
em 2021), mas fazem música juntos há mais de 15 anos, no âmbito da big band
matosinhense e não só.
Destes elos
de cumplicidade resulta um entendimento no domínio do telepático, ancorado numa
percepção instintiva, mas também na confiança e admiração mútuas. «Senti que
queria aprofundar nesse sentimento. Gosto muito do fato de todos terem uma
personalidade musical vincada porque as minhas composições vivem muito da
identidade e expressão individual no coletivo. Há muita flexibilidade para
explorar caminhos em grupo», diz Cabaud. Este é um projeto ambicioso no plano
artístico, que interpela os músicos a saírem das respetivas bolhas de conforto
e a estabelecerem relações criativas com outros domínios músicos, como o
folclore da Argentina e a música de câmara. Os cruzamentos entre estes
universos, aparentemente tão distintos, ganham aqui uma coerência e uma fluidez
assinaláveis. Se no disco anterior já haviam abordado vários ritmos
tradicionais argentinos com uma visão mais aberta, desta feita Cabaud mostrou
alguns exemplos e, sobretudo com Marcos Cavaleiro e João Grilo, foram falando
acerca de como poderiam explorá-los. «O Marcos já toca estes ritmos há muito
tempo, é-lhe muito natural. Neste disco tentei diluir mais o folclore
argentino», sublinha o contrabaixista.
A escrita
cuidada e elegante de Cabaud, que há muito lhe reconhecemos, dá um salto
notável em “Árbol Adentro”. O dinamismo de “GM” - peça dedicada ao trompetista
Gonçalo Marques -, peça de recorte audaz, marca pontos com solos de saxofone
soprano e tenor. “A Insustentável Leveza”, com um perfume de tango/milonga,
convida à introspeção, com Cabaud a aportar solenidade com o uso magistral do
arco; a bateria tem detalhes de filigrana e o saxofonista tenor sola com
propósito. Paulatinamente, a peça deixa entrar luz. Com a sua linha estável de
contrabaixo, “Palo Santo” exala uma melodia que se vai desvelando, cheia de
recantos; o diálogo entre os saxofones adquire centralidade na construção
sonora e torna-se progressivamente mais intenso, suportados pelo piano e pela
dupla rítmica que ferve em lume brando, até à reexposição final do tema, em
uníssono pungente. “Pampero” traz uma bela melodia desenhada pelo saxofone tenor
e acompanhada, de início, apenas pelo contrabaixo; a entrada de um piano
anguloso carreia a peça para outros domínios, onde a turbulência dá lugar à
serenidade. Muito interessante é “Pomeriggio”, longamente introduzida pelo
piano de João Grilo, juntam-se-lhes percussões, sopros vários, construindo um
retrato sonoro da paisagem estática da Toscana. “Tomi” – homenagem encomendada
pelo filho de Cabaud, Tomás – assume uma veia mais relaxada e pastoral, de
traços sóbrios, em que à simplicidade harmônica se junta uma melodia
libertadora. “Vento Frio na Cara” tem arranjo vívido, com os vários
instrumentos a cruzarem as suas linhas, numa estrutura organizada em torno de
um belo motivo, mas que admite outros graus de liberdade.
“Árbol
Adentro” é um notabilíssimo álbum que, reclamando vagar, nos recompensa
enormemente.
Faixas
1.Tomi 06:13
2.GM 05:25
3.Palo santo 09:19
4.A insustentável leveza 06:10
5.Pomeriggio 05:44
6.Pampero 07:43
7.Vento frio na cara 04:41
Músicos: Demian Cabaud— contrabaixo; João Pedro Brandão— saxofones alto e soprano; José Pedro Coelho— saxofone tenor; João Grilo— piano; Marcos Cavaleiro— bateria.
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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