Os últimos
anos têm sido particularmente atarefados para André Matos no que novos projetos
e discos dizem respeito. Baseado em Nova Iorque desde 2008, o guitarrista tem
ampliado a sua atividade, partindo do que vem de trás – como o projeto que
mantém com Sara Serpa, que no ano passado frutificou no notabilíssimo “Night
Birds” – quer em formações que exploram sobretudo contextos mais intimistas, do
solo ao trio. Em 2021, trouxe-nos “Casa” – o último tomo de uma tetralogia solo
,“On the Shortness of Life”, conjunto de duos engendrados remotamente em plena
pandemia – “Estelar” (intitulado a partir da guitarra acústica Stella) – o EP
“Orbit”, e os álbuns gêmeos “Roam Free” e “Ritual”. Em 2022 chegou “Limbo”,
novamente a solo, e “Directo Ao Mar”, em trio, acompanhado pelo baixista João
Hasselberg e pelo baterista João Pereira. No ano passado apresentou “Wandering
Souls” ao lado do saxofonista Jeremy Udden. Para além de álbuns dos Marmota
(“Toca”, 2022) – com o trompetista Gonçalo Marques – e, “Tundra”, de 2020, com
os ¡Golpe! dos mesmos Marques e Pereira. «Olhando para o que vivi até agora,
constato que a música para mim tem sido um caminho de descoberta constante»,
começa por confessar André Matos à jazz.pt. «Por vezes tenho-me encontrado num
planalto, noutras escalando montanhas. Outras ainda, encontro-me à deriva num
oceano imenso. Aconteceu uma ou quatro vezes que, nesse oceano, ora calmo, ora
tempestuoso, dou comigo em ilhas de sonho em que tudo é facilidade. Este trio é
para mim uma dessas ilhas onde desembarquei com curiosidade.»
Retrato vivo
de como a música une as pessoas na Big Apple, independentemente da
nacionalidade ou cultura de que provenham, o trio Potions é um projeto coletivo
recente, iniciado em janeiro de 2023, que junta o luso-americano à vocalista
(também pianista, embora aqui não a escutemos nas 88 teclas)
canadiana-americana, de ascendência coreana, Yoon Sun Choi, e à contrabaixista coreana
Jeong Lim Yang. A viver em Nova Iorque desde 2000, Choi passou mais de duas
décadas a cativar os ouvintes com o seu estilo intransigente, livre e belo e
com a amplitude da sua visão musical. Os seus principais projetos são o duo
colaborativo de longa data com o pianista Jacob Sacks e o trabalho a solo de
voz/piano. Atuou e colaborou com artistas de renome como Jane Ira Bloom, Steve
Coleman, Mark Dresser, Mark Helias, Gerry Hemingway, Darius Jones, Oliver Lake,
Mat Maneri e Ben Monder, para apenas nomear alguns. Nativa da Coreia do Sul,
Yang atua extensivamente na cidade de nova Iorque desde 2011, ao lado de
figuras como Jason Palmer, Oscar Noriega e Kenny Wollesen. O seu álbum de
estreia como líder e compositora, intitulado “Déjà Vu” (2017), ganhou o prêmio
da rádio pública norte-americana (NPR) para “melhor álbum de estreia” nesse
ano. Criou o projeto experimental “Mute” (2020), sediado em Brooklyn, e em 2022
editou “Zodiac Suite: Reassured”, uma leitura pessoal da suíte “Zodiac” de Mary
Lou Williams (1945). Surpreende com o vincado lirismo e a versatilidade do seu
toque.
O primeiro
encontro entre os três foi impulsionado por um desejo partilhado de criar
música que se movesse em novas direções, seja através da combinação de
paisagens de guitarra (usando sons “tradicionais” de guitarra e sua manipulação
através de efeitos eletrónicos), vocalizações que vão de um registo quase
operático a técnicas estendidas e a línguas quase-inventadas, e um tratamento
do contrabaixo que vai muito além de convencionalidades, tomado amiúde como se
de um instrumento de percussão se tratasse.
«Tinha já tocado com ambas, mas muito de passagem», explica o
guitarrista. Há cerca de um ano e meio, Matos combinou fazer uma sessão com
Yoon Sun Choi para a qual chamaram Jeong Lim Yang e um baterista. A ausência
deste compeliu-os a tocar em trio. «Os três, munidos de composições, começámos
a improvisar e não tocámos nada da música escrita. Houve uma sensação de
permanência imediata, tornou-se um grupo que imediatamente tomou o seu lugar
nas nossas vidas artísticas», sublinha o músico português.
O trabalho do
trio está ancorado na improvisação livre e na exploração coletiva, esculpindo
um som de grupo muito peculiar. Cada um aporta a sua personalidade e cultura
para o processo criativo, resultando numa ligação profunda e envolvente, com
espaço amplo para ações e reações e estímulos cruzados. Tudo o que escutamos é
completamente improvisado. «Quer a Yoon quer a Lim são imensamente criativas,
só tenho que reagir à minha maneira», diz Matos. «O álbum está exatamente como
o gravamos, na mesma ordem, o primeiro tema foi o primeiro tema da sessão», o
que é revelador da urgência e espontaneidade do processo criativo. Acrescem
elementos certamente relacionados com o local onde gravaram – iBeam, em
Brooklyn, sala de ensaios onde acontece música a toda a hora –, mas também com
o caráter «algo amador da gravação, fui eu que gravei», confessa o português.
«Talvez haja mais espaço do que, por exemplo, nos concertos que fizemos até
agora, onde por vezes o resultado torna-se mais cru e intenso.» O guitarrista
acaba por desempenhar aqui um papel pivotal, explorando uma vertente mais
textural e exploratória de abordagem à guitarra, algo que tem sido
particularmente marcante nos seus álbuns mais recentes. «Há talvez um maior
cuidado da minha parte em providenciar apenas o essencial, e por outro há uma
certa abstração consciente ou inconsciente. Uma separação, por um lado, e um
reencontro, por outro, com a guitarra e com as técnicas estendidas em que me envolvo.»
O dinamismo
de “Solivagant”, nos seus mais de 11 minutos de duração, é cabal declaração das
intenções que definem o som do grupo, revelando desde logo a estreita interação
entre as construções texturais de filigrana da guitarra, a voz, com os múltiplos
e distintos registros – do operista ao jazzístico, passando por outros mais
exploratórios, por vezes em mudanças súbitas, e o contrabaixo a ser muito mais
do que pilar de sustentação, antes intervindo de modo decisivo, por vezes
recorrendo ao arco para aditar gravidade. “Warmth of Mouth”, a espaços mais
ambiental, noutras quase-metal, traz ainda mais à tona a espantosa
versatilidade vocal de Choi, aliada às notas esparsas propostas por Matos e à
pulsação esdrúxula proporcionada pelo contrabaixo. De ambiência mais meditativa
(embora irreverente), “Spoiled and Curled Up” constrói-se com a limpidez da
guitarra, o contrabaixo aveludado e a voz (do scat suingante ao registro
erudito e à declamação mais exploratória e a virtualmente tudo nos
interstícios), sempre a transportar-nos para os locais mais inusitados. O
contrabaixo adquire então maior centralidade, pairando sobre o tapete urdido
pelo guitarrista. “Extraterrestrial Communication” é mais etérea e planante,
sinais ininteligíveis de uma cultura distante. “Bunsen Burners” remete para
experiências de laboratório, fumegantes, perigosas, poções mágicas, ópera,
desenhos animados coreanos, com predomínio da voz, mas em que as fontes sonoras
acabam por se unificar, como que vincando o lado mais distintivo e surpreendente
da música do trio.
Faixas
1.Solivagant
11:21
2.Warmth
of mouth 06:04
3.Spoiled
and curled up 10:40
4.Extraterrestrial
communication 05:27
Músicos: Yoon Sun Choi— voz; Jeong Lim Yang— contrabaixo; André Matos— guitarra elétrica
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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