A cidade de
Sint-Oedenrode, no centro dos Países Baixos, deve o seu nome a Santa Oda. A
saga conta-se depressa: Oda uma mulher cega nascida na Escócia (ou na Irlanda),
filha do rei Eugênio VII, foi enviada por este, por volta do ano 700 A.C.,
juntamente com um criado, em peregrinação ao continente. Oda ficou
milagrosamente curada da sua cegueira depois de ter visitado o túmulo de São
Lamberto de Maastricht, em Liège, e quis tornar-se freira. Regressou para junto
do pai, que entretanto lhe escolhera um marido, mas Oda recusou e fugiu de
regresso ao continente, onde viajou sem rumo certo, sempre em busca de locais
silenciosos para orar. Por fim, chegou a uma pequena povoação chamada Rode
(antiga palavra neerlandesa para um lugar aberto feito pelo homem na floresta),
onde os aldeões lhe construíram uma cabana e ela se estabeleceu como eremita.
Após a sua morte, os habitantes da aldeia começaram a receber peregrinos de
toda a região e passaram a chamar ao local Rode de Sint-Oda, que se tornou
Sint-Oedenrode, na língua atual. Foi nesta cidade, na Igreja de São Martinho
(católica) – que substituiu uma igreja com o mesmo nome construída em 1808 e
demolida em 1912, por sua vez erigida no local da medieval Igreja de Santa Oda
(o que resta é o coro alto de 1498) – que em outubro de 2023 o duo Tabula
Sonorum – formado pelo pianista, compositor e artista conceptual neerlandês
Bart van Dongen (n. 1959) e pelo contrabaixista português Gonçalo Almeida (n.
1978) – gravou “Sub Aere”, o seu novo álbum, o segundo, depois de um inaugural
homônimo em 2022, na editora El Negocito.
A partir de
Roterdam, cidade onde se fixou há vários anos, Gonçalo Almeida tem vindo a
empreender um trabalho verdadeiramente notável, em múltiplas frentes, contextos
e configurações, em formações como The Selva, Albatre, Ritual Habitual,
Spinifex e Lama, ou, mais recentemente, The Monkious e Sonitus Missarum. Não
sendo tarefa fácil, acompanhar a sua trajetória discográfica tem-se revelado
uma jornada deveras estimulante, pois as surpresas sucedem-se a uma cadência
assinalável. A solo, já editou cinco tomos: “Monologues Under Sea Level”
(2015), “Monólogos a Dois” (2021), “Improvisations on Amplified and Prepared
Double Bass” e “Compositions for Double Bass” (ambos de 2022) e o mais recente
“Ciclos”, de 2023. Já em 2024, o português editou em dueto
("Encounters") com outro oficiante do mesmo instrumento, o belga
Peter Jacquemyn. Almeida e Dongen quiseram desta vez experimentar os desafios e
as possibilidades colocadas pela associação entre o órgão de igreja (daí o
acrescento Organum) e o contrabaixo. Apesar da (significativa) alteração
instrumental, os propósitos da dupla mantiveram-se incólumes: a exploração da
música improvisada, com forte influência minimalista, indo além dos perímetros
sônicos tradicionais dos respectivos instrumentos.
Os dois
músicos mergulham numa variedade de preparações, experimentando técnicas não
convencionais para criar um espectro diversificado de sons. Os tons profundos e
ressonantes do contrabaixo misturam-se de forma natural com o som rico e
majestoso do órgão da igreja, em direção a um minimalismo meditativo. «O título
em latim “Sub Aere” significa “sob o ar”, dado que tem relação com o ar dos
enormes tubos do órgão e de estarmos como que por debaixo deles quando estamos
na igreja. A música acaba por ter esse lado etéreo», começa por dizer Gonçalo
Almeida à jazz.pt. A ideia para esta reconfiguração instrumental radicou no
trabalho prévio de Bart van Dongen na área da experimentação e composição com
órgão de igreja. «Em conversa surgiu a ideia de adaptarmos o duo a esse formato
de órgão de igreja e contrabaixo amplificado», prossegue o contrabaixista. «Foi muito interessante explorar estas ideias
de improvisação de caráter minimalista, ao lado deste peculiar instrumento e de
como o som se propaga numa enorme câmara.»
A música que
escutamos neste álbum é profunda, com passagens mais espirituais, outras
misteriosas, explorando uma grande amplitude de atmosferas. Apesar da natureza improvisada das quatro
peças, Dongen e Almeida trabalham ancorados em certos elementos específicos,
como o uso de drones, ambientes estáticos, de desenvolvimento lento e elementos
rítmicos repetitivos. A combinação destes dois instrumentos acaba por criar uma
sensação natural de grandeza e profundidade, com caráter espiritual e
dramático. Logo em “Sub Aere I” somos envolvidos pela massa sonora espessa, que
avança imparável; o contrabaixo tocado com arco e o órgão transportam-nos para
outro espaço e para outro tempo. Distinguem-se detalhes, subtis alterações de
rumo, frestas por entra uma luz tênue. Na peça seguinte, “Sub Aere II”, o órgão
urde a base grave para as pinceladas do contrabaixo que trazem lampejos
melódicos. O órgão adquire diferentes colorações, que tanto nos levam a uma
igreja barroca no século XVIII ou ao psicodelismo mais aceso da Inglaterra de
final de sessentas. Ele mesmo surge em todo o seu esplendor em “Sub Aere III”,
com o contrabaixo a aditar camada extra de gravidade. “Sub Aere IV” assenta
numa nota longuíssima, solene, intemporal, com nuances subtis, por vezes quase
imperceptíveis, que relativizam o significado do tempo; emerge um fio melódico,
um breve motivo, que logo se esfuma, para então sermos envolvidos numa nuvem
carregada que se rarefaz até se converter no mais profundo dos silêncios.
Faixas
1.Sub Aere I 13:27
2.Sub Aere II 10:15
3.Sub Aere III 04:20
4.Sub Aere IV 14:32
Fonte: António Branco (jazz.pt)
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