Passo a
passo, Luke Stewart tem vindo a estabelecer-se com um dos mais relevantes e
requisitados contrabaixistas de jazz da atualidade, de tão tentacular que tem
sido a sua atividade nos anos mais recentes. Se olhássemos de forma menos
atenta para a realidade da música criativa de Washington D.C. poderíamos até
pensar que existem pelo menos quatro ou cinco Luke Stewart havendo apenas um,
espécie de “vários eus”, na acepção pessoana. É não só contrabaixista, mas
também saxofonista, produtor, radialista, escritor, ativista, integrando várias
comunidades musicais há quase duas décadas. Um par de anos depois de “The
Bottom”, na Cuneiform, “Unknown Rivers” é o novo álbum do seu Silt Trio com o
saxofonista Brian Settles e os bateristas Trae Crudup (membro original da
formação) e o veterano de Chicago Chad Taylor, que se sentam à vez no banco de
baterista. Stewart cresceu na cidade costeira de Ocean Springs, perto de
Biloxi, Mississippi, tocou saxofone nas bandas das escolas que frequentou. No
início da adolescência deixou-se atrair pelo baixo elétrico, fundou um grupo
punk e interessou-se pelas eletrônicas e pelo hip hop. A ligação ao jazz e à
improvisação surgiu por sua conta e risco, partilhada com amigos que nutriam os
mesmos interesses. A opção pelo contrabaixo não tardou. Tudo isto faz o muito
que é hoje.
Luke Stewart
vem aprofundando o jazz e outras formas da cultura negra, mas não só,
ramificando o seu trabalho por vários projetos, em diferentes áreas, do indie
rock dos Laughing Man aos projetos de hip hop com Grap Luva e Damu the
Fudgemunk, passando pelo trio experimental Mind Over Matter, Music Over Mind.
No jazz, foi um longevo membro do trio OOO, com o saxofonista Aaron Martin e o
baterista Sam Lohman. Criou o quinteto Exposure, com Edward Wilkerson, Jr., Ken
Vandermark, Jim Baker e Avreeayl Ra. É artista residente na Union Arts and
Manufacturing e apresenta semanalmente o programa de rádio “The Vibes” na WPFW,
via que lhe permitiu estabelecer ligações com figuras do jazz como Yusef
Lateef, Randy Weston, Muhal Richard Abrams, Amiri Baraka, James Brandon Lewis,
Nicole Mitchell, Nate Wooley, Moor Mother ou David Murray. É peça fundamental
em formações, que lidera ou colidera, como Blacks' Myths, Heart of the Ghost,
Six Six, Irreversible Entanglements e Heroes Are Gang Leaders. O Silt Trio é
apenas uma das facetas desta atividade poliédrica. “Unknown Rivers” marca a
estreia deste mesmo trio na Pi Recordings, mas há coisas que não mudam: o novo
registo volta a revelar um grupo sinérgico e uno na sua multiplicidade, aspectos
refletidos na música que faz – composta de antemão ou improvisada em tempo
real. Nos alvores da formação era Warren “Trae” Crudup III, alma gêmea musical
de Stewart, que se sentava à bateria (lançaram “No Trespassing”, na plataforma
digital Bandcamp, em março de 2020). Stewart conheceu Settles na primeira jam
session em que participou em DC. Taylor torna-se personagem desta aventura
quando Stewart, fã de longa data, gravou com ele numa residência no Pioneer
Works, em Brooklyn (onde compôs a maior parte do material que viu a luz do dia
em “The Bottom”), e com ele contactou no quadro de colaborações com o grupo Fly
or Die, da trompetista Jaimie Branch, entretanto precocemente desaparecida. O
novo álbum inclui quatro temas registados num estúdio de Baltimore – com Trae
Crudup na bateria – e outros três gravados ao vivo no Trinosophes, em Detroit,
com Chad Taylor. O que se escuta em “Unknown Rivers” parece dar ênfase
acrescido à acuidade rítmica, vincando as abordagens distintas à música dos
dois bateristas. Settles toca com uma intensidade tranquila, equilibrando de
modo notável um som que remete para luminárias de um passado distante
contrapondo-lhes o vocabulário disruptivo de um modernista. Stewart é senhor de
um balanço profundo e de largo espectro, que amortece e impulsiona, fazendo com
que todas as situações musicais em que se mova soem bem.
O Silt Trio
consegue esse equilíbrio mágico de tocar com uma espontaneidade crua, mantendo
a intenção e o foco. Apesar do protagonismo natural do saxofonista, os três
músicos estão sempre na linha da frente do que acontece. “Seek Whence” traz uma
atmosfera inicialmente descontraída, com o saxofone a pairar ágil sobre a rica
tapeçaria rítmica urdida por Stewart e Crudup. “Baba Doo Way” é lançada pelo
contrabaixista com um motivo que o saxofonista agarra em uníssono para
progressivamente dele se afastar, e voltar a aproximar, sempre com a dupla
rítmica em interação telepática. Em “You See?” é novamente a dupla rítmica que
engendra as bases para a intervenção do saxofonista, que constrói o seu
discurso ora com notas esparsas, sem pressas excessivas, ora aumentando o poder
de fogo. “The Slip” mostra o baterista a instalar um balanço que se desenvolve
paulatinamente, com os outros dois a aditarem contributos, em particular um
possante Stewart, em jogos tripartidos de ação e reação, com início conhecido,
mas destino ignoto. Primeiro de três temas registados ao vivo, “Amilcar” é
longamente introduzido por Chad Taylor, com um intenso jogo polirrítmico, a
que, em dado momento, se juntam contrabaixo e, depois, saxofone, num
desenvolvimento em crescendo de fulgor coltraneano, flamejante e perpassado por
uma espiritualidade quase palpável, até tudo tender para o silêncio. “Dudu”,
com os seus quase treze minutos de duração, é o pináculo da ruminação coletiva,
subil e de grande sensibilidade, que radica na mais profunda tradição do jazz.
O tema que dá título ao álbum encerra-o com os níveis energéticos em alta, num
epílogo revigorante, que estimula os rios desconhecidos de corpo e alma.
Faixas
1.Seek
Whence 05:33
2.Baba
Doo Way 05:41
3.You
See? 07:49
4.The
Slip 04:41
5.Amilcar
08:21
6.Dudu 12:50
7.Unknown Rivers 04:30
Fonte: António
Branco (jazz.pt)
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